Candidatura a fundos para a agricultura acaba em queixa ao gabinete antifraude da UE

A exigência de garantias bancárias como condição para obter verbas motivou a denúncia de um agricultor ao organismo antifraude da Comissão Europeia. Ministério está a fazer levantamento dos casos em que houve exigências semelhantes.

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Exigência de garantias nos casos em que há um elevado risco de o projecto ter maus resultados não está previsto por lei REUTERS/Suzanne Plunkett

Luís Dias e Maria José Santos têm uma quinta na Zebreira, em Idanha-a-Nova, e um projecto para plantar amoras e bagas goji, que candidataram a fundos comunitários em Março de 2013. Mas o que começou como um simples pedido de adesão ao Programa de Desenvolvimento Rural (PDR), tornou-se num labirinto de reclamações, cartas e queixas que já chegaram ao Tribunal Europeu de Contas e ao Olaf, o organismo europeu de luta antifraude que investiga casos que lesam o orçamento da União Europeia.

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Luís Dias e Maria José Santos têm uma quinta na Zebreira, em Idanha-a-Nova, e um projecto para plantar amoras e bagas goji, que candidataram a fundos comunitários em Março de 2013. Mas o que começou como um simples pedido de adesão ao Programa de Desenvolvimento Rural (PDR), tornou-se num labirinto de reclamações, cartas e queixas que já chegaram ao Tribunal Europeu de Contas e ao Olaf, o organismo europeu de luta antifraude que investiga casos que lesam o orçamento da União Europeia.

Tudo começou com a aprovação do projecto de investimento para um total de seis hectares (quatro de amoras e dois de bagas goji), em nome de Maria José. Luís Dias conta que, depois de 20 meses de espera, em Novembro de 2014 conseguiram finalmente a aprovação de um apoio de 250 mil euros, a que acrescem 30 mil euros de prémio à instalação (um subsídio não reembolsável atribuído a jovens agricultores). Contudo, a Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Centro (DRAPC), numa carta enviada em Janeiro de 2015, informou que, “na sequência da aprovação” seria preciso uma garantia bancária de 110% sobre o valor do apoio aprovado. Dado que o apoio foi de 250 mil euros, a garantia a prestar “deverá ser de 275 mil euros”, lê-se no documento a que o PÚBLICO teve acesso.

Sem perceber o “porquê das garantias bancárias”, Maria José Santos começa uma intensa troca de emails com a DRAPC e, mais tarde, com a entidade gestora dos fundos para a agricultura, pedindo justificações e “fundamentos legais” por escrito.

“Deram-nos apenas 15 dias para constituir as garantias (uma condição para assinar o contrato) sob pena de o projecto ser anulado. Ou seja, para mais tarde podermos eventualmente beneficiar do apoio do PDR, tínhamos de gastar 180 mil euros na constituição da garantia bancária. Recusaram-se a pôr isto por escrito”, conta Luís Dias. Não satisfeitos, reclamaram. E receberam, finalmente, a informação de que havia dúvidas quanto à viabilidade da produção, o que justificou o pedido de caução. Voltaram a contestar, alegando que a intenção das entidades públicas ao colocar entraves era que desistissem.

No programa comunitário de apoio à agricultura no período de 2007 a 2013, o Proder – que antecedeu o actual PDR2020 -, as garantias bancárias estavam previstas quando era pedido um adiantamento das verbas em projectos de investimento na exploração agrícola e na instalação de jovens agricultores. Nesses casos, era preciso constituir “uma caução correspondente a 110% do montante do adiantamento”, lê-se nos regulamentos. Contudo, no site do Instituto do Financiamento de Agricultura e Pescas (IFAP) – a entidade que paga os fundos – acrescenta-se mais informação. A necessidade de garantias pode também “decorrer de uma exigência contratual formulada no quadro da análise de risco da operação e/ou beneficiário”.

Mas, ao que o PÚBLICO apurou, não é muito habitual serem solicitadas garantias bancárias nos projectos financiados, sobretudo quando não está em causa um adiantamento de verbas. E isso mesmo foi confirmado por fonte da Autoridade de Gestão do PDR, cuja gestão foi recentemente alterada, que admitiu que a situação de Maria José Santos e Luís Dias, “não é, nem deve ser, uma prática regular”.

A mesma fonte admitiu que o pedido de garantia exigido nos casos em que há um elevado risco de o projecto agrícola ter maus resultados não está previsto em qualquer lei ou regulamentação. Mas há “disposições que obrigam os Estados-Membros a, em nome da protecção dos interesses financeiros da União Europeia e da necessidade de acautelar o risco inerente para o fundo, adoptar quaisquer medidas necessárias para assegurar uma protecção eficaz desses interesses, em especial para prevenir, detectar e corrigir irregularidades e recuperar montantes indevidamente pagos”. Foi o que sucedeu numa série de projectos de produção de pequenos frutos e cogumelos aprovados no Proder. E ainda esta semana, o Bloco de Esquerda avançou com um projecto de resolução no Parlamento para que seja abandonada a exigência de apresentação de garantias bancárias, fruto de várias reclamações de produtores (neste caso de cogumelos) que se sentem “discriminados e prejudicados relativamente a agricultores que optaram por outras actividades”.

Projectos chave na mão

Voltemos ao caso de Maria José e Luís. Em Março do ano passado, a entidade gestora do PDR alterou as exigências iniciais: de pré-contratual, a garantia passou a ser necessária depois de assinado o contrato de financiamento. Ou seja, qualquer despesa feita com a produção de amoras e bagas goji só seria paga com verbas comunitárias depois de apresentada a garantia bancária exigida. Os fundos para a agricultura só chegam efectivamente aos produtores mediante a apresentação de facturas de despesas já feitas. É, por isso, necessário ter verbas próprias ou, por exemplo, recorrer à banca para ter capital e começar a investir.

“Na prática não mudou nada, mas permitiu-nos assinar o contrato e, com ele, obter um financiamento muito mínimo [junto da banca] para podermos plantar as amoras”, continua Luís Dias, acrescentando que perante a exigência das garantias os bancos fecharam portas. O contrato foi assinado em Julho e a plantação avançou, mas com muitas limitações financeiras. Decidiram suspender a das bagas goji.

A troca de cartas com as entidades públicas prosseguiu e, em Outubro, receberam uma resposta da gestora do PDR onde se detalham as razões para a prudência na atribuição dos fundos. Considerou-se o “projecto de elevado risco, com forte probabilidade de incumprimento do plano empresarial”. A necessidade de uma garantia bancária, continua o documento, “foi considerada transversalmente para os projectos de apoio de produção de cogumelos Shiitake apreciados na região no último trimestre de 2014”. Apesar de em causa estar uma produção de amoras e bagas goji e não de cogumelos, a entidade gestora dos fundos detalhava que existiam, no final do ano passado, “mais de 100 jovens agricultores instalados e os que chegaram ou estão a chegar às produções estão com dificuldades em vender o produto. Só alguns o conseguem”.

Tratam-se dos chamados “projectos chave na mão” em que fornecedores “fazem a candidatura, fornecem os equipamentos e os meios de produção e afirmam que escoarão o produto produzido”. “O que tem acontecido é que alguns destes fornecedores depois de terem recebido o dinheiro dos equipamentos e meios de produção, não estão a ajudar, sequer, a vender os cogumelos”, continua. Tendo em conta todos os riscos para o Estado – risco que só acontece quando são pagas as ajudas aos agricultores e não no acto do contrato desses fundos – faz sentido “dosear as garantias aos pagamentos”.

Luís Dias diz não saber “qualificar bem” o conteúdo da carta: “O que têm os cogumelos a ver connosco?”, questiona. Decidiu fazer queixa ao Tribunal de Contas Europeu ainda em Novembro do ano passado. Em resposta, este organismo disse que as informações “indiciam a possibilidade de ocorrência de irregularidades nas despesas da UE ou má gestão financeira”. Sem poder investigar ou instaurar acções penais, o tribunal refere que o caso terá de ser analisado pelo OLAF, o gabinete antifraude da Comissão Europeia que, em Fevereiro de 2016, recebeu a queixa dos produtores. Ainda não se sabe se decidiu abrir ou não um inquérito formal.

24 casos detectados

Fonte da autoridade de gestão do PDR adianta que, apesar de poder ser usado para assegurar que os fundos comunitários e públicos estão protegidos de eventuais riscos, o pedido de garantias bancárias deve “merecer uma adequada e profunda ponderação”. Além disso, o Ministério da Agricultura está “neste momento a proceder ao levantamento das situações em que foi exigida garantia bancária associada ao risco da operação”. Em alguns casos, foram feitas visitas ao local e, em função dos resultados, poderá ser levantada a exigência. “Este procedimento vai ser alargado a todos os promotores a quem foi exigida a constituição de garantia pelo que a situação terá evolução a curto prazo”, promete a entidade que gere os fundos da UE.

Questionado sobre o número de casos em que a condição foi imposta, a mesma fonte revela que no caso do Proder “essa prática foi adoptada apenas nos sectores dos cogumelos e pequenos frutos e abrangeu apenas 24 casos”. Em causa estão “ riscos identificados pela natureza do investimento de capital intensivo, a estrutura de custos e receitas, a especificidade do mercado para este tipo de produtos, a complexidade dos circuitos comerciais, a volatilidade dos preços, em muitos casos acrescido da inexperiência dos promotores”. Luís Dias volta a questionar: Se há elevado risco, porque se aprovam candidaturas?

O Proder - que terminou a sua vigência e foi substituído pelo PDR2020 - registou no total mais de 37.500 projectos. De acordo com informações anteriores do Ministério da Agricultura, alavancou um investimento superior a 7,6 mil milhões. Os apoios a jovens agricultores somaram 650 milhões de euros. E foram muitos os que, seduzidos pelo regresso aos campos, avançaram na produção agrícola com ajudas dos fundos comunitários e o aval das autoridades.