A felicidade dos livros em Bogotá
Há de tudo, de aulas de ioga a sósias de Elvis Presley, de sessões de autógrafos de jovens youtubers a novos fãs de Anne Frank, na Feira do Livro de Bogotá. Incluindo livros, e leitores, alguns dos quais apaixonados por quem escreve em português.
Conselho para quem sempre amou a literatura e se sente um pouco deprimido e obsoleto num mundo dominado pela cultura digital: invista numa viagem à Colômbia. Vir à Feira Internacional do Livro de Bogotá (FILBO), cuja 29.ª edição começou a 19 de Abril e decorre até 2 de Maio, é ser de novo feliz.
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Conselho para quem sempre amou a literatura e se sente um pouco deprimido e obsoleto num mundo dominado pela cultura digital: invista numa viagem à Colômbia. Vir à Feira Internacional do Livro de Bogotá (FILBO), cuja 29.ª edição começou a 19 de Abril e decorre até 2 de Maio, é ser de novo feliz.
“Procuro nos livros uma combinação de amor e fantasia”, diz Lina Bejarano, 22 anos, estudante de Design. “Procuro aventuras perfeitas, que não encontro na vida real. Não poderia viver sem livros."
São três amigas a passear pelo primeiro piso do Pavilhão 6. Lina, magra, de grandes óculos, é a mais romântica. Aguenta qualquer drama a meio das obras, desde que o final feliz esteja garantido. Exactamente como acontece nos livros da sua autora favorita, Cassandra Clare. Daniela Torres, muito alta, olhos indígenas, que tem a mesma idade e frequenta o mesmo curso, concorda com os finais felizes. Pelo meio pode ser muito pior. “Apenas leio ficção pós-apocalíptica. Distopias, a vida da humanidade depois de o mundo ter acabado, como acredito que vai acontecer. Adoro. Mas tem de ter final feliz." A terceira amiga, Pauline Rodriguez, 21 anos, estudante de Comunicação, diz que é viciada em livros. “Venho à feira todos os anos, desde criança, quando a minha escola organizava visitas de turma."
Pelos corredores dos enormes pavilhões, pelos 51 mil metros quadrados do recinto, a FILBO está cheia de crianças. Umas desfilando em bando atrás de um professor, outras em roda, sentadas no chão, com a farda do colégio. Toda as escolas de Bogotá, e mesmo algumas de outras cidades, organizam visitas à FILBO. Há pavilhões só com livros infantis, outro com material didáctico e lúdico, outro ainda com lojas de brinquedos, adereços e bugigangas.
Evelyn Rodriguez, 18 anos, gosta de livros de aventuras. Anda pelo piso superior do Pavilhão 6, pelo meio dos stands de artesanato, entre cadernos, blocos e canetas, autocolantes, emblemas, adereços e penduricalhos com motivos literários, imagens góticas ou de super-heróis. Há montras e escaparates com comic books, posters, sacos, mochilas, t-shirts e porta-chaves, há o stand dos Alcoólicos Anónimos, o das cartas e bolas de cristal da empresa Metafísica e Astral, o de Sebastian Barros, “o escritor mais jovem da FILBO”, como diz no cartaz com a foto (desactualizada) de um menino de cabelo comprido aos caracóis, agora com o mesmo cabelo mas já de barbas, a ler poemas ao ouvido de senhoras, e até o stand da Força Aérea, com balcão de recrutamento.
“O que gosto é de livros de mistério”, diz Juliana Santana, 18 anos, residente em Cucutá, amiga de Evelyn. Autores preferidos: Paulo Coelho e Gabriel García Márquez. Trabalha num stand de canetas “para poder comprar alguns livros”. Das nove da manhã às nove da noite.
Um casal, Andrés Martinez, 22 anos, funcionário judicial, e Maria Alexandra Bernal, 20 anos, estudante de Publicidade. Não falham uma FILBO. Ele compra livros de política, filosofia, romance e poesia, ela, clássicos de arte. “Gosto do contacto físico dos livros, do cheiro”, diz ele. Embora 50% do que lê seja em formato digital, “porque fica mais barato”. No futuro, talvez os livros acabem, “devido aos problemas ambientais":. "O fabrico de papel implica o derrube de árvores”, diz Andrés com conformismo. Se acontecer, prosseguirá as suas leituras noutros formatos.
“Eu penso exactamente o contrário”, zanga-se a namorada. “Os livros não se vão extinguir nunca. Muita gente da nossa idade gosta deles, e vai defendê-los. Os livros existirão para sempre”, declara Alexandra, que já comprou nove na feira. Andrés comprou quatro.
YouTube e Anne Frank
Com o avançar da tarde, o recinto da FILBO enche-se. Ao meio-dia de sábado, as bilheteiras encerraram, porque o limite diário de 50 mil visitantes foi atingido. Os altifalantes anunciam conferências, debates, lançamentos, sessões de autógrafos e de leitura, maratonas de poesia, exibições de filmes, workshops de teatro, encontros, homenagens a escritores, ateliês de desenho e pintura, aulas de ioga, recitais de música, visitas literárias, passeios de bicicleta, os pavilhões e auditórios onde começa determinada sessão da série “Conversas que mudarão a tua vida”. Formam-se filas enormes para os eventos mais disputados. As salas ficam lotadas, com muita gente à porta, zangada, a tentar argumentos desesperados. “Eu sou jornalista… eu tenho um blogue de literatura…”
Há quem esteja há mais de uma hora à espera para a sessão de autógrafos do jovem youtuber chileno Germán Garmendia, o popularíssimo autor do canal HolaSoyGerman, e do livro Chupa el Perro. Mas também há, no interior do Pavilhão da Holanda, o país convidado deste ano, uma fila repleta de raparigas à beira do desmaio para um autógrafo de Nannete Blitz, a holandesa de 87 anos que sobreviveu ao Holocausto no campo de concentração de Bergen-Belsen e foi colega e amiga de Anne Frank.
Paula, 15 anos, tem na mão o livro de Annete (Sobrevivi al Holocausto) e o Diário de Anne Frank. “Li os dois, emocionaram-me tanto. Quero que ela escreva aqui qualquer coisa dedicada a mim. Sinto como se fôssemos da mesma idade e elas, Anne e Annete, minhas amigas." Leonardo, 16 anos, admira Annete porque “soube como agir em momentos difíceis”, e Paula, 14 anos, baixinha, de cabelos negros, agarra o livro com força e está tão emocionada que não consegue falar.
Fora as performances espontâneas nos espaços abertos, ou as leituras extra-programa de autores independentes, havia 152 eventos culturais agendados para este sábado. A multidão aflui em magotes aos auditórios e stands, às tendas de restaurantes, aos balcões com o tradicional doce Oblea ou os sumos de granadilha, feijoa, pitaia, e outras fantásticas frutas da Colômbia, aos recintos multimédia, às salas de vídeo-jogos, aos palcos de música. Reúne-se um círculo à volta de um imitador de Michael Jackson, outro em torno de um sósia de Elvis. Pequenos grupos dançam funk ou hip-hop, orquestras de sopro e percussão desfilam entre os pavilhões, no enorme palco da revista Rolling Stone um DJ faz rebentar os altifalantes com sons de dança.
Vêem-se grupos de jovens urbanos, casais elegantes, adolescentes mal-comportados, artistas blasés com estilo europeu, intelectuais revolucionários de estirpe latino-americana, hipsters, new lads, rockers, hippies e representantes de todas as tribos anacrónicas. E famílias numerosas de roupas baratas, homens baixos com maçãs-do-rosto salientes, mulheres com xailes tradicionais andinos e crianças de cabelos negros, descendentes de índios quechua, muisca ou macu-iuhupde.
Um poema português
No mesmo momento, está a ser lançado um romance gráfico, de narrativa transmédia, o escritor argentino Gustavo Rojana fala sobre a Palestina, a jornalista Sylvia Maria Hoyos conta a sua aventura epistolar com o narcotraficante Pablo Escobar, Nannete Blitz fala do campo de concentração nazi, o italiano Paulo Giordano, autor de A Solidão dos Números Primos, conversa com o escritor colombiano Santiago Gamboa, o candidato holandês ao Nobel Cees Nooteboom fala sobre as suas viagens, o colombiano Fernando Vallejo provoca acesa discussão na plateia do auditório José Asunción Silva.
E mais uns tantos lançamentos e encontros, concertos, ateliês para crianças, aulas de representação, conferências esotéricas, palestras religiosas. Os públicos coabitam, misturam-se, todos encontram os seus interesses e caminhos sem dignidades discriminadas nem hierarquias de prestígio.
Raquel Quiroz e Leyda Rivera, 63 e 65 anos, contabilistas reformadas, vêm todos os anos, há mais de 20. Só compram livros religiosos. “Já aqui tenho três sobre o Papa”, diz Raquel. “Comprei na secção de saldos, valeu a pena”. Leyda: “Gosto muito de livros de moral e boas acções. Gosto de vir cá, de encontrar amigos. Conheço muitas pessoas nas editoras. Esta é a melhor feira de livros de religião."
Há uma feira para cada um. A de Daniela Gómez é a da literatura portuguesa. “Estou enamorada de Valter Hugo Mãe”, diz ela. Leu todos os livros traduzidos. Também gosta de Afonso Cruz. “Faz-me pensar com ele, faz-me sentir inteligente."
Mas o texto da sua vida é de Filipa Leal. Poema de Inverno, publicado na antologia da editora Tragaluz e traduzido por Pedro Rapoula, o português que será, a partir do próximo ano, director da FILBO.
“Díme que no vuelves a pedirme un poema en el Invierno/ Pasó otra Navidad y el duelo no, no pasa”, começa o poema.
Daniela quer dizer de cor a sua parte favorita. “O verso onde está toda a minha vida."
Recita, num sussurro. “Solo tu sabes…” Uma colombiana de 26 anos, olhos grandes e cabelo negro, a dizer, em Bogotá, a sua felicidade dos livros num poema português. “Solo tu sabes que la vida quedó entreabierta, por eso llévame pronto/ A los lugares en donde empezaste a decir que sí”.
O PÚBLICO viajou a convite da agência Invest in Bogotá