Sai da toca, Brasil (1)
1. A votação do impeachment no Congresso teve uma vantagem, quem não sabia o que era aquele Congresso viu o esgoto do Brasil. E quem pensava que este impeachment tinha algo que ver com anticorrupção terá percebido como, afinal, não. Era mesmo só o espectáculo do esgoto, e quem diz esgoto diz latrina, sentina, cloaca. A cloaca da história do Brasil escancarada por deputados que insultaram a democracia, o Estado laico e os direitos humanos, milhares de mortos, desaparecidos, torturados.
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1. A votação do impeachment no Congresso teve uma vantagem, quem não sabia o que era aquele Congresso viu o esgoto do Brasil. E quem pensava que este impeachment tinha algo que ver com anticorrupção terá percebido como, afinal, não. Era mesmo só o espectáculo do esgoto, e quem diz esgoto diz latrina, sentina, cloaca. A cloaca da história do Brasil escancarada por deputados que insultaram a democracia, o Estado laico e os direitos humanos, milhares de mortos, desaparecidos, torturados.
2. Não exagero nas palavras porque fascistas como Jair Bolsonaro fizeram questão de se antecipar a qualquer exagero, na sua declaração de voto, domingo passado, 17 de Abril de 2016. “Nesse dia de glória para o povo brasileiro tem um nome que entrará para a história pela forma como conduziu os trabalhos. Parabéns, presidente Eduardo Cunha, [eles] perderam em 1964 e perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve; contra o comunismo; pela nossa liberdade; pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff; pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas; por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim.” Vale a pena citar por ser o coming out da cloaca, a sua saída do armário. E se uso vocabulário LGBT é porque um deputado que sempre cuspiu em gays, dizendo que deviam era ter levado porrada, fez por merecer este coming out: assumir-se como cloaca. A cada um o que for de cada um.
3. Que dizem as palavras de Bolsonaro, sem equívoco? Que ele parabeniza um dos mais sinistros suspeitos de corrupção no Brasil, Eduardo Cunha; que compara o golpe militar de 1964 a esta votação de 2016; e que homenageia o símbolo da tortura no Brasil do século XX, torturador declarado pela Justiça, e torturador de Dilma: o coronel Ustra (que morreu em Outubro em 2015). Dá pena das crianças e das famílias aqui metidas à força, desse tal “Deus”, até. Deve ser o Deus do “Inferno” que Ustra anunciava às grávidas antes de lhes dar choques eléctricos, para que assim elas não tivessem crianças, formassem famílias, sempre seriam menos comunistas no Brasil. Bolsonaro pode dizer estas coisas porque as muitas centenas de pessoas que Ustra torturou lutaram para o Brasil ser hoje uma democracia, e é por o Brasil ser uma democracia que Bolsonaro deve ser julgado pelo que disse: a apologia da tortura é matéria de tribunal. Jean Wyllys (que tem sido um bravíssimo defensor dos direitos LGBT no meio da homofobia daquele Congresso, um dos raros deputados brasileiros que de facto tornam a vida de muita gente melhor) cuspiu em Bolsonaro, tal a indignação que sentiu ao ouvi-lo. Cuspiu nas apologias à ditadura, no silêncio, no beija-mão, por toda essa gente maltratada e morta. Cuspiu por amigos meus. Cuspiu por mim.
4. Só num país “que não foi capaz de levar à frente e julgar os crimes da ditadura é que se aceita conviver com tamanha naturalidade com elogios como esses [de Bolsonaro ao torturador]”, comentou Átila Roque, o coordenador da Amnistia Internacional no Brasil. Um país, onde “militares continuam ocupando cargos no governo e nenhum dos que cometeram crime de lesa-humanidade foi responsabilizado”. Um país, acrescento eu, que continua a ter uma polícia chamada "militar", afundada em tanto abuso, e enfrentou tarde e ainda pouco o seu passado de repressão e violência. A ditadura no Brasil, como historiadores contemporâneos têm insistido, foi civil-militar, contou com elites da sociedade por sua vez herdeiras do Brasil império e do Brasil colónia. E tudo isso, além de impune, continua presente no sistema político brasileiro, cuja mudança, urgente, muitos manifestantes pediam nas ruas, nas grandes manifestações de 2013. É esse sistema podre, manipulador, favorecedor da compra de votos e do compadrio, que permite a existência de um Congresso-cloaca. Durante os anos em que morei no Brasil nunca conheci quem acreditasse neste Congresso, e desde então só ficou pior. Uma vez fui assistir a uma sessão lá em Brasília, estavam meia dúzia de gatos pingados, disseram-me que isso era normal. Entretanto, ganham mais por mês do que a esmagadora maioria dos brasileiros verá em toda a vida, oficialmente, para não falar dos extras de quem os pôs ali, dos lobbies ruralistas que desmataram a Amazônia aos lobbies evangéliccos que querem curar gays e prender mulheres por aborto, no caso de não morrerem.
5. Em 513 deputados, 367 votaram pela destituição de Dilma, acusada de nenhum crime. São literalmente o refluxo do passado, que continua a vomitar o que devorou dos brasileiros. É perigoso enterrar o passado sem o olhar na cara, tal como rir de Bolsonaro, porque, tal como Cunha, ele é simplesmente perigoso. Não que seja de agora saber-se isso – em 2014, por exemplo, Bolsonaro disse que não violaria a sua colega deputada Maria do Rosário “porque ela não merece”. E em 2016 pôde votar pela destituição de Dilma em directo para o mundo.
6. Esse é também o Brasil do presente, no sentido em que tem poder para o que vimos, e como vimos. No sentido em que Brasil não se desfez das suas peles mortas; e, sim, Lula e Dilma bem podem fazer um mea culpa agora quanto às alianças em que se meteram, e os obrigaram a engolir conveniências, para agora as conveniências saltarem alegres da aliança para a cloaca. Mas não será certamente o Brasil do futuro, ao contrário de todo um Brasil que também é presente, e que os Bolsonaros não conhecem, porque só lhe cospem em cima, ou ao qual só dão porrada, a gentinha que de repente até teve acesso a universidade, a avião, além de fogão e geladeira. A gentinha preta e mestiça, do morro e da periferia, que não por acaso é muita, e está a fazer coisas por toda a parte, enquanto Bolsonaro gasta o dinheiro dos contribuintes brasileiros a insultar a democracia. Neste momento mesmo, o que essa geração está a discutir, talvez com mais urgência do que nunca, é a resposta política ao que o mundo viu. Se/como dar o passo de vencer a desconfiança, a repulsa em relação às instituições que sempre a mantiveram afastada, como mantinham tudo o que não fosse elite branca, os seus serviçais, ou a meia dúzia de excepções que dão jeito à regra. O fascista Bolsonaro & Cia são o presente do passado, mas o presente do futuro vai cair-lhes em cima. Quando comecei esta crónica, era para chegar a ele, mas como já me falta espaço para não o abreviar vou guardá-lo para a próxima semana, deixando a cloaca para trás.