Há um novo departamento da função pública? Que abra no interior

Há uma emergência nacional que até agora todos foram incapazes de combater. Portugal é um país cada vez mais desequilibrado, a cair para o mar. Helena Freitas tomou em mãos o fiel da balança e quer empurrá-lo a favor do interior. Até ao fim do Verão, Portugal terá o seu plano de coesão territorial

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Helena Freitas, eleita pelo PS para a AR, coordena a unidade de missão para o interior Rui Gaudêncio

Porque é que cada vez que se cria um novo serviço, um novo departamento na função pública que não implique um contacto directo com o público, este tem de ficar em Lisboa ou no Porto? Com as novas tecnologias, estas decisões já não fazem sentido, são tomadas por inércia, pelo hábito. São pormenores como este – que podem fazer grandes diferenças noutros pontos do país que Helena Freitas, coordenadora da Unidade de Missão para a Valorização do Interior, quer pôr em cima da mesa para que o país deixe de ignorar dois terços do seu território.

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Porque é que cada vez que se cria um novo serviço, um novo departamento na função pública que não implique um contacto directo com o público, este tem de ficar em Lisboa ou no Porto? Com as novas tecnologias, estas decisões já não fazem sentido, são tomadas por inércia, pelo hábito. São pormenores como este – que podem fazer grandes diferenças noutros pontos do país que Helena Freitas, coordenadora da Unidade de Missão para a Valorização do Interior, quer pôr em cima da mesa para que o país deixe de ignorar dois terços do seu território.

Daqui a cinco meses, a professora de Ecologia da Universidade de Coimbra irá propor ao primeiro-ministro uma série de medidas para tentar revitalizar o interior. O diagnóstico já foi feito mil vezes, as causas conhecem-se há décadas e já muitos apresentaram soluções. De Bruxelas choveram fundos “para a coesão”, para o “desenvolvimento regional”. Mas tem-se perdido batalha atrás de batalha. Hoje o assunto é de “emergência”, sublinha Helena Freitas.

“A convergência na aplicação dos fundos estruturais não foi conseguida”, sublinha a especialista em ecologia. De facto, como explicou ao PÚBLICO em Setembro o ex-secretário de Estado do Desenvolvimento Regional, os fundos que a União Europeia exigia serem colocados nas regiões de convergência foram de facto ali aplicados, mas substituindo o Orçamento do Estado em vez de o complementar, permitindo assim que o grosso do investimento nacional fosse para os sítios do costume, à beira-mar.

“Montámos a estrutura orgânica do território – as infra-estruturas rodoviárias, a rede de serviços públicos e com isso conseguimos indicadores positivos ao nível da saúde, do saneamento ou da educação, por exemplo – mas não conseguimos montar uma estrutura funcional”, diz. Por outras palavras, “o país tem o hardware mas não o software”.

Aquilo que se julgava inclusivo, criar infra-estruturas que aproximassem o litoral do interior, funcionou ao contrário: “Promoveu a drenagem.” Aquilo a que Helena Freitas chama “políticas de primeira geração” – infra-estruturar o país – foram cumpridas. “Mas faltou a segunda geração que é tornar esta infra-estruturação numa vantagem para esses territórios”.

Não se captaram nem recursos nem capacidades, nem sequer se conseguiu reter os que ali existiam. Foram duas décadas perdidas em que por entre os dedos escorregaram fundos comunitários, investimento privado, saberes, inteligência, gentes.

O sinal mais evidente da doença é obviamente a demografia: todos os 164 concelhos agora classificados de “baixa densidade” – as designações mudam, mas o problema permanece – estão a perder população e a envelhecer. “É mesmo preciso um plano de emergência”, reitera Helena Freitas.

Oportunidade de ouro

É inevitável um olhar incrédulo. Já tantos estudaram, já tantos reflectiram, já tantos propuseram. A ex-vice-reitora da Universidade de Coimbra anui mas assume o seu optimismo: “Estamos num momento fantástico, há aqui uma oportunidade a não desperdiçar”, garante.

E que oportunidade é? Antes de mais, o novo ciclo de fundos comunitários, o Portugal 2020, que valoriza – novamente – o investimento no interior. Depois, a operacionalização das Comunidades Intermunicipais (CIM), actores privilegiados na tomada de decisões sobre o território, interlocutores capazes de lutar pelas suas especificidades – “porque não há soluções únicas”, garante a coordenadora da unidade de missão.

Com estas duas alavancas, poderá começar-se então a criar o que até agora nunca se conseguiu: um ecossistema. É uma ecóloga que fala, que já foi presidente da Liga para a Protecção da Natureza e a primeira provadora do Ambiente de Coimbra, e que assume que olha para o país como um organismo vivo. Um organismo macrocéfalo que seca tudo em seu redor, sem entender que a morte do seu corpo também o condenará.

“Ao criarmos as infra-estruturas, deveríamos ter criado o ecossistema que incorpora a especialização inteligente dos locais, isto é, as universidades, os politécnicos, as empresas, os recursos endógenos”, afirma, adiantando que a sua missão é ajudar a desenvolver, não um, mas vários ecossistemas: “Não defendo um formato único, o país é pequeno mas muito diverso.”

É aqui que entram, como protagonistas, as CIM com o seu conhecimento do terreno, das forças e fraquezas de cada região. E também o importante empurrão dos fundos estruturais, que prioritariamente devem ser investidos nestes territórios despovoados. “Temos de intervir o mais rapidamente possível, pois os problemas cada vez se agravam mais, e não podemos protelar até encontrar a solução óptima”, adianta.

E como? Há muitas ideias, mas uma sobressai – a mudança de discurso em relação ao interior, ao rural. “Temos de criar uma narrativa positiva, optimista para incentivar a que se escolha o interior para viver.” A qualidade de vida, o tempo mais lento, a natureza e até a cultura são vantagens não desprezíveis e que já hoje atraem muitos urbanos. Mas para curtas estadias.

Um aspecto a explorar é a ligação que muitos, nas áreas metropolitanas ou na diáspora, mantêm ao território onde estão as raízes familiares e onde muitas vezes investem, recuperando as casas herdadas. Mas há que aprofundar esta ligação: “Temos de ajudar a pôr em contacto os migrantes com as aldeias, as vilas dos seus antepassados, salientando o papel que podem ter na revitalização destes locais.”

A resposta do teletrabalho

Mas, apesar do carinho com que o interior é olhado, mesmo por quem não tem lá raízes, poucos equacionam voltar. Pela mais óbvia das razões: não há emprego. Mas com as novas tecnologias, o teletrabalho é a resposta mais imediata. Um passo que custa a ser dado em Portugal: “O Estado tem de ter um papel educador para o teletrabalho e dar o exemplo – porque é que quando se criam certos serviços, que são sobretudo à secretária, se escolhe sempre Lisboa ou Porto? Porque não a Guarda, por exemplo?”, sugere.

Entre as várias medidas que começam a ser equacionadas, as universidades e os politécnicos têm um papel determinante. Porém, em muitas destas regiões, já existem instituições do ensino superior e nem assim a sangria foi estancada. “Nunca poderemos saber é como essas zonas estariam hoje se nem essas instituições tivessem”, defende. O que é aqui crucial é fomentar a transferência do conhecimento que é produzido nas universidades para o terreno, para que sejam incubadoras de polos de inovação, sublinha.

O turismo é, como tem sido, um dos sectores cruciais no desenvolvimento do interior. Um investimento a aprofundar e a diversificar, que pode lançar âncora na imensa riqueza cultural e natural que o país possui. Assim como a agricultura, que, modernizada, poderá oferecer postos de trabalho qualificados. O que importa é incentivar o investimento, algo que passa também por incentivos fiscais.

Por sugestão de António Costa, há uma outra resposta possível: afirmar o interior como o centro da Península Ibérica, casando-o com Espanha. Há exemplos a funcionar bem, como Chaves-Verín, Elvas-Badajoz ou Rio d’Onor, mas há ainda muito a fazer para explorar estas sinergias. Replicar estes casos e aprender com o país vizinho o relacionamento com o território, capitaneado pelas províncias, é um dos objectivos. O que leva Helena Freitas a acreditar que Portugal perdeu muito por não ter feito a regionalização, uma organização administrativa que poderia ter dado mais poder às regiões para decidir sobre os seus próprios destinos.

Por muitas ideias que se tenha, muito dependerá do investimento privado. Para que este tome forma, Helena Freitas não tem dúvidas de  que a administração pública tem também de se chegar à frente, garantindo aos recém-chegados que haverá escolas, saúde, justiça ou cultura. Por isso, admite que há que retroceder nalgumas decisões tomadas pelo anterior Governo no que diz respeito ao encerramento de serviços públicos. Descentralizando-os: “Temos de reaproximar as políticas públicas dos cidadãos, deixando aos municípios a capacidade de decidir sobre o funcionamento dos serviços.”

Apesar de já vários municípios e regiões terem programas de incentivo ao repovoamento, há muita resistência. É o caso dos médicos, que aspiram a ficar nos grandes hospitais do litoral, onde sabem estar os equipamentos de ponta. “Temos de encontrar formas de valorizar as carreiras que são feitas no interior, é uma questão de narrativa – temos de inverter a ideia de atraso que se pegou ao mundo rural”, enfatiza. Um esforço, admite, que demorará uma geração a dar frutos, pelo que não há tempo a perder.