Brecht, Arendt, Sartre e Pasolini vão ao ginásio
Quatro actores são atirados para um ginásio para reescrever em seis dias o texto fundamental para a vida em sociedade. Constituição, de Mickael de Oliveira, em estreia no D. Maria II, investiga a eficácia de tudo ser fundado no amor.
Deve andar vaidosa a palavra “constituição”, de tanto andar na boca dos portugueses, de ser arma de arremesso entre políticos, de lhe chamarem “uma das mais modernas do mundo”, de ser um travão no último segundo para impedir políticas de susto colectivo, de toda a gente bradar contra ou a seu favor, de uns a quererem rever e lhe quererem alterar a alargar os poderes, de outros a acharem já uma criação imaculada, necessitada apenas de pequenos retoques de maquilhagem com o avançar da idade. A Constituição que Mickael de Oliveira chama para Constituição é essa lei fundamental, esse pilar e conceito unificador que agrega em torno de si uma ideia de sociedade, um tronco sólido com gente e ideias dispostos à sua volta. E é também – autêntico íman para o dramaturgo e encenador – um exemplo esclarecedor do poder de um texto, da palavra, de “uma ficção”, arrisca Mickael.
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Deve andar vaidosa a palavra “constituição”, de tanto andar na boca dos portugueses, de ser arma de arremesso entre políticos, de lhe chamarem “uma das mais modernas do mundo”, de ser um travão no último segundo para impedir políticas de susto colectivo, de toda a gente bradar contra ou a seu favor, de uns a quererem rever e lhe quererem alterar a alargar os poderes, de outros a acharem já uma criação imaculada, necessitada apenas de pequenos retoques de maquilhagem com o avançar da idade. A Constituição que Mickael de Oliveira chama para Constituição é essa lei fundamental, esse pilar e conceito unificador que agrega em torno de si uma ideia de sociedade, um tronco sólido com gente e ideias dispostos à sua volta. E é também – autêntico íman para o dramaturgo e encenador – um exemplo esclarecedor do poder de um texto, da palavra, de “uma ficção”, arrisca Mickael.
Por isso, quando uma sociedade começa a entortar e a reconhecer os seus falhanços, pensa-se naturalmente em reescrever a Constituição numa tentativa de refundar a nossa vida comum. Na peça que o Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, apresenta até 8 de Maio, Mickael de Oliveira atira para um ginásio quatro actores como se fossem ratos de laboratório a quem é confiada a missão de elaborar uma nova Constituição em seis dias. E tomando por exemplo o documento original norte-americano, composto por curtos sete artigos, quis reduzir esta nova lei geral a “um só conceito unificador”. Primeiro, lembrou-se da felicidade, constante precisamente na Constituição dos Estados Unidos como um direito fundamental. “Só que a felicidade não gera conflitos, o amor gera muito mais”, explica, “como medida de simplificação total das relações humanas”.
Precisamente, o amor – sabemo-lo desde as primeiras histórias das nossas vidas, aquelas que abundam dentro de casa e nas páginas de qualquer história (mesmo infantil) tocada por um mínimo de realidade –, esse amor que pode ser filial, platónico, carnal ou que assuma qualquer outra forma sempre se apresentou com um potencial tão desmedido de felicidade quanto da mais absoluta desgraça (o natural preço a pagar). Daí que entre estes quatro actores que carregam os seus nomes fora do palco – Ágata (Pinho), Miguel (Moreira), Paulo (Pinto) e Pedro (Lacerda) – exista uma história de amor a dinamitar o consenso e a solução milagrosa da economia da dádiva. Paremos um pouco neste conceito com que Mickaël tropeçou ao ler o filósofo francês Paul Ricouer (Amor e Justiça): uma dádiva que elimina a dívida, uma dádiva que nada pede em troca e que espalha “um amor total, profundo e abundante”, descreve o autor, “pelos justos e pelos injustos”. Um amor cego como um morcego, que se oferece ao perdão e evita barbáries.
Claro que o amor é volátil e, portanto, presta-se a actos impulsivos e irracionais que uma Constituição terá dificuldade em acolher. E o amor, como o percebemos entre estes actores, arrasta facilmente consigo ciúme e rancor, algo que, habitualmente, dá em chatice. Não esqueçamos, aliás, que este Mickael de Oliveira é o mesmo que, em parceria com Nuno M. Cardoso, estreou há dois anos Oslo – Fuck them all and everything will be wonderful, peça muito pouco dada a idílios, de cabeça enfiada num amor doméstico e obsessivo entre mãe e filha, cheia de um pessimismo a que Constituição tenta agora sobreviver. Aqui o amor não se apresenta como uma condenação, mas antes como um modelo de utopia civilizacional, talvez a derradeira tentativa da humanidade para se conseguir suportar na sua diversidade.
Ida ao ginásio
Espaldares, plintos, cavalos com arções, argolas, colchões, bancos corridos, fotografias de ginástica competitiva. O ginásio onde os quatro se encontram para tentar escrever uma nova Constituição é filho do gimnasio grego, “sítio onde os homens iam fazer exercício físico e intelectual – juntavam sempre as duas coisas”, recorda Mickael. Daí ser esse o cenário que elege para a discussão a quatro, reforçada quando, numa guinada razoavelmente delirante, se transformam em quatro intelectuais europeus do século XX (Bertolt Brecht, Hanna Arendt, Jean Paul Sartre e Pier Paolo Pasolini) que discutem o amor, o arrependimento e a perda numa conversa de café ligeiramente mais musculada. Só que o ginásio sinaliza também a camarata improvisada em momentos de crise, o refúgio habitual sempre que as manifestações extremas da Natureza roubam tectos às pessoas. A dormir num ginásio, ali fechados como se enfiados dentro de um reality show, o cenário é, portanto, de crise e o único exercício visível é mesmo o da opinião.
Claro que o ginásio desinveste também a experiência de qualquer grandiosidade. Aqueles quatro, juntos para trabalhar no bem comum, estão obviamente preocupados com as suas vidas, o seu passado conjunto, a pressa em regressar para perto dos filhos, a fácil sobreposição do íntimo ao interesse do grupo. “Aqui o pessoal contamina totalmente o domínio público”, reconhece Mickael. E, de passagem, o poder mostra-se em todo o seu charme mesquinho, “as decisões palacianas da nossa política do quotidiano” deixam-se espreitar na sua mais flagrante promiscuidade, vinga a ideia de que humanos quererem almejar a objectividade é algo quase risível, absurdo até. Na verdade, só quando o ginásio se transforma por momentos em discoteca, com música ao vivo, ao entregarem-se a meia-dúzia de futilidades disparatadas o jogo a quatro parece deixar de ser um jogo.
A intromissão da música chega também por cortesia do teatro político e do teatro épico, sendo que, como convém, as canções políticas são aqui trocadas por canções de amor. Até porque a referência fundamental do autor – que importa também dados biográficos seus e dos actores para o texto –, continua a ser a retórica de Platão, a sua leitura de cabeceira. “A base para isto foi um pouco o discurso de Lísis a dizer que devemos amar quem não nos ama, mas por razões pouco altruístas, por razões políticas, que tentei aqui inverter com uma perspectiva moral”, explica. “Ou seja, podemos amar quem nos ama e isso dá frutos para além da angariação política ou da angariação de votos. E depois A República, porque se tenta criar uma cidade ideal, com outras regras.” Na verdade, resume, lembrando o ginásio onde os quatro estão trancados, com um generoso stock de álcool e direito a festas, Constituição une esses dois pontos distantes – é uma peça “de Platão ao Big Brother”.