Há qualquer coisa no cinema que salva Pedro Filipe Marques
O realizador regista o fora de campo dos actores antes e depois da representação num filme que fala não do teatro, mas da cultura que temos.
Se Sérgio Tréfaut fala de Treblinka como um filme sobre os fantasmas que assombram os sobreviventes, ouve-se a dada altura na voz off de O Lugar que Ocupas “o cinema pode filmar sonhos, o teatro só mata a fome a fantasmas”. E a câmara filma precisamente fantasmas: a demolição do teatro ABC, no Parque Mayer, justaposta aos momentos de intimidade dos actores nos seus camarins, sempre com a representação, e o público, “fora de campo”.
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Se Sérgio Tréfaut fala de Treblinka como um filme sobre os fantasmas que assombram os sobreviventes, ouve-se a dada altura na voz off de O Lugar que Ocupas “o cinema pode filmar sonhos, o teatro só mata a fome a fantasmas”. E a câmara filma precisamente fantasmas: a demolição do teatro ABC, no Parque Mayer, justaposta aos momentos de intimidade dos actores nos seus camarins, sempre com a representação, e o público, “fora de campo”.
À superfície, O Lugar que Ocupas é um documentário tradicional, centrado nos momentos de preparação para entrar em palco ou de descontracção depois de um espectáculo, registados quase “em tempo real” em camarins ao longo dos últimos anos - o que interessava ao realizador, dramaturgicamente, era o cubículo do camarim, "o sítio onde os actores estão obrigados a ter um espelho” - mas não é um filme sobre o teatro, como faz questão de explicar ao telefone do Porto Pedro Filipe Marques (n. 1976). “Estou a filmar fantasmas reais, aqueles que estão em nós, que eu vejo, com quem convivemos,” diz. “Este não é um filme sobre o teatro, ou antes, apenas o é no sentido em que o teatro representa aqui o lugar onde se vê, que usa o métier de actor como ponto de partida. É mais um filme sobre a cultura que temos em Portugal e o modo como a vemos, uma parábola sobre uma cultura em vias de extinção. Já fazemos um esforço tão grande para fazer as coisas que é mesmo só por amor que insistimos...”
Esse “amor à camisola” explica também em parte porque é que O Lugar que Ocupas será o mais antecipado dos filmes portugueses no Indie este ano: transporta o “peso” de suceder a A Nossa Forma de Vida, revelação do DocLisboa 2011, onde venceu o prémio de melhor primeira obra. Nessa longa de estreia, Pedro Filipe Marques filmava o quotidiano dos seus avós abrindo uma porta para o “Portugal profundo” contemporâneo. O novo filme é, evidentemente, um objecto muito diferente, mesmo que, explica, não tenha procurado essa diferença. “Não faço deliberações desse género, nunca me preocupei em fazer um filme completamente diferente,” diz. “Nunca imaginei que o filme viesse a ter esta forma que não reflecte absolutamente nada do processo de feitura.”
Ao longo das suas quase três horas de duração O Lugar que Ocupas torna-se um objecto que espelha a abordagem de Marques como montador nos últimos dez anos (trabalhou para Sérgio Tréfaut, Pedro Costa ou Miguel Gomes). “O tipo de montagem que sempre fiz, e os filmes que fiz, não são um trabalho de refinação de algo, mas sim de escrita, de construção formal. Não tenho prazer em montar se não houver um lado de colaboração humana.” O Lugar que Ocupas termina como uma meditação, uma reflexão, um ensaio, de acordo com um processo criativo muito mais intuitivo do que descritivo - a organização dramatúrgica extremamente pensada que aplica ao material filmado é mais fácil de mostrar do que de descrever. É o cinema que dá sentido à carreira de Pedro Filipe Marques, que começou por estudar medicina: “Há qualquer coisa no cinema que me salva, não sei bem explicar…”