Quando ela canta tira-nos o ar
Banda sonora para um filme que retrata a dramática onda de despejos em Espanha nos últimos anos, Domus é o terceiro álbum que Sílvia Pérez Cruz povoa com uma liberdade encantadora. Está a caminho de ser uma das maiores cantoras do nosso tempo.
Sílvia Pérez Cruz diz que tem uma voz muito ibérica. Diz que este fogo de flamenco que lhe ouvimos num canto indomado e que parece vir tanto da boca quanto do coração e do estômago, que em Espanha faz com que assumam que tem cantado fados a vida toda, nada tem de muito particular. “Todas as avós de todas as povoações ibéricas têm esta voz e sinto-me parte dessa cadeia”, explica ao Ípsilon. Só que não é exactamente assim. Ninguém canta como Sílvia Pérez Cruz. A cantora catalã, nascida em Palafrugell, tem um sem-fim de músicas e de vozes dentro da sua. Pode ter o timbre das avós ibéricas, mas esta facilidade com que num só verso traz consigo flamenco, fado, jazz, rancheras, boleros, samba e canto autoral espanhol, esta sua inexplicável maneira de soar a Chavela Vargas, Lhasa, Billie Holiday, Feist e Camille como se todas pudessem ser uma só, é algo que, por estes dias, faz de Pérez Cruz uma das maiores cantoras do nosso tempo. Não é exagero. Basta apanhá-la em concerto para perceber que assistimos em directo ao privilégio de escutar alguém que canta com tudo o que tem e com tudo o que temos. Dir-se-ia que quando canta, Sílvia Pérez Cruz nos arrasta em cada sílaba.
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Sílvia Pérez Cruz diz que tem uma voz muito ibérica. Diz que este fogo de flamenco que lhe ouvimos num canto indomado e que parece vir tanto da boca quanto do coração e do estômago, que em Espanha faz com que assumam que tem cantado fados a vida toda, nada tem de muito particular. “Todas as avós de todas as povoações ibéricas têm esta voz e sinto-me parte dessa cadeia”, explica ao Ípsilon. Só que não é exactamente assim. Ninguém canta como Sílvia Pérez Cruz. A cantora catalã, nascida em Palafrugell, tem um sem-fim de músicas e de vozes dentro da sua. Pode ter o timbre das avós ibéricas, mas esta facilidade com que num só verso traz consigo flamenco, fado, jazz, rancheras, boleros, samba e canto autoral espanhol, esta sua inexplicável maneira de soar a Chavela Vargas, Lhasa, Billie Holiday, Feist e Camille como se todas pudessem ser uma só, é algo que, por estes dias, faz de Pérez Cruz uma das maiores cantoras do nosso tempo. Não é exagero. Basta apanhá-la em concerto para perceber que assistimos em directo ao privilégio de escutar alguém que canta com tudo o que tem e com tudo o que temos. Dir-se-ia que quando canta, Sílvia Pérez Cruz nos arrasta em cada sílaba.
Se já antes, com o quarteto feminino Las Migas ou no disco En la Imaginación com o Javier Colina Trio, se percebia o despontar de uma cantora rara, só em 2012, com o lançamento a solo que arrumava a sua vida é que a revelação se começou a destapar por inteiro. 11 de Novembre, esse primeiro álbum cujo título se referia à data de nascimento do seu pai, foi o epicentro do seu próprio renascimento, organizando as muitas ideias que vinha acumulando, mas precipitado pela necessidade urgente e intensa de fazer o luto pela morte do pai. “11 de Novembre”, confessa Pérez Cruz, “é como uma caixa de cristal, estão lá toda a minha fragilidade, todos os meus medos e toda a minha vida. Foi uma forma de purgar a tristeza da morte”. Havia, portanto, duas metades interligadas nesse disco em que a ouvíamos em catalão, galego, castelhano ou português — as canções de unhas cravadas na memória do pai, assimilando a perda, e um outro desfile íntimo que era como folhear um álbum de fotografias do seu passado.
11 de Novembre era também um álbum de charme insidioso, ia-se metendo debaixo da pele aos poucos, não era feito do mesmo impacto que Pérez Cruz produz ao vivo, num canto que põe os sentidos todos em alerta e rouba o ar. Se a primeira parte de António Zambujo no Coliseu dos Recreios, em 2012, dera que falar, a actuação a uma escala íntima no Centro de Artes de Sines (Festival Músicas do Mundo, 2013), apenas na companhia do guitarrista Raül Fernández, teria a força de uma epifania. Nesse mesmo registo reduzido, apenas com a guitarra de Raül, gravaria em 2014 Granada, disco comovente, “muito animal e explosivo”, de uma nudez tornada visceral e composto por versões.
“Depois do 11 de Novembre”, conta, “tinha vontade de fazer algo com a interpretação. Tinha muitos estilos dentro de mim e queria cantar a partir da minha voz, rasgar barreiras, inclusivamente no reportório. Tanto era Schumann como Edith Piaf — tudo canções e tudo emoções.” Mais uma vez, disco poliglota, juntando aos idiomas anteriores inglês, francês e alemão, num mapa de referências em que encontramos Schumann, Piaf, Albert Pla, Enrique Morente, Violeta Parra, Lluís Llach (do qual gravaram Abril 74, homenagem do músico espanhol à revolução portuguesa), Novos Bahianos ou Leonard Cohen.
“Mas toda a gente canta isto”, advertiu-a Raül quando Sílvia lhe anunciou que queria gravar Petite waltz, de Cohen. “Eu não quero fazê-la melhor do que ninguém, quero apenas fazê-la”, respondeu-lhe. Oiça-se Petite waltz (Pequeño vals vienés), oiça-se o clássico mexicano Cucurrucucú Paloma, que já conhecemos de Chavela Vargas, Caetano Veloso ou António Zambujo, e é evidente que cada canção sobre a qual Pérez Cruz se debruça se transforma sempre noutra, não há redundância possível. “Não tenho muitos preconceitos”, diz. “Sinto-me livre na música. Além de que escuto muita coisa, sobretudo ao vivo ou graças a algum amigo que me mostra um disco — porque senão posso passar três anos com o mesmo álbum.” Daí que garanta não sentir nem estar preocupada com o patchwork que possa existir na sua música. Sílvia é demasiadas coisas e soa a todas elas num só sopro vocal.
Um disco de despejos
Essa convivência de geografias musicais por vezes pouco óbvias ouve-se, por exemplo, na inusitada aparição de Lambada (essa mesmo, a pandémica canção de Kaoma que punhas as ancas em brasa) a meio de Cuota da lua, no recente Domus — da mesma forma que em a meio de Iglesias, de 11 de Novembre, caíamos num belíssimo alçapão temporal que nos largava em pleno Moon river, canção-perfeita de Henry Mancini para o filme Breakfast at Tiffany’s. Cuota da lua e Ai ai ai são duas canções assumidamente festivas que se posicionam um pouco em contraponto ao restante tom de Domus. Foram ambas compostas por Sílvia Pérez Cruz como se brotassem de um rádio, entrando pelo filme Cerca de Tu Casa (ao qual Domus serve de banda sonora) como momentos de descompressão.
Cerca de Tu Casa, filme de Eduard Cortés protagonizado também pela cantora, aborda um dos recentes dramas da sociedade espanhola — a onda de despejos que deflagrou durante a crise financeira, atirando para a rua dezenas de milhares de famílias em incumprimento com as prestações bancárias ou com os senhorios (no primeiro trimestre de 2012 os despejos ultrapassaram os 46 mil e os suicídios directamente provocados pela situação foram mais de cem). Não tendo essa história gravada na pele, quer como actriz quer como autora e intérprete de Domus, Sílvia Pérez Cruz teve de fazê-la sua, encontrá-la na sua linguagem e criar canções que ecoassem o pano de fundo dramático que alimenta o filme. Através de entrevistas a amigos sobre o que mais os indignava no momento político que se vivia (e em particular no caso dos despejados) foi construindo uma forma de insuflar as canções em que se pressentem casos trágicos mas estilhaços da sua própria vida.
“O que fiz, e que me custou muito”, confessa, “foi pensar na viagem emocional, pensar no quão horrível será tirarem-nos uma casa — porque não é apenas o edifício que se vai, somos nós mesmos. A nível pessoal está-se arrasado e fracassado e foi a essas emoções que todos conhecemos noutros contextos que me agarrei: o fracasso, a mentira, a culpa, a resignação e o amor. A minha vida está mais camuflada.”
No tema de abertura, no entanto, a cantora não contempla ambiguidades. No hay tanto pan, título retirado da frase popularizada nos protestos dos últimos anos em Espanha “no hay tanto pan para tanto chorizo” (chorizo designa também “ladrão”), é uma canção movida por esse grito traduzível por “não há dinheiro que chegue para tanto ladrão”.
Mesmo nesse tema, no entanto, a carga não é dramática, irada ou fatalista. “Quando cantava a morte do meu pai, falava do renascimento e não da morte”, compara. “Sou uma optimista, ainda que veja o que está mal. E liguei-me ao momento em que as pessoas deixaram de sentir os despejos como um fracasso pessoal e começaram a partilhar a situação. Não era um grande triunfo, mas havia uma luz em tanta tristeza. Aqui sou um pouco mais crítica, mas a minha revolução é sempre emocional, quero que as pessoas estejam vivas — para amar, para queixar-se, para gritar. Era preciso encontrar as palavras e a poética para falar dos despejados, mas não queria fazer algo panfletário, queria algo mais profundo. E em No hay tanto pan também falo das relações de poder, algo que é intemporal.”
Aos poucos, Sílvia Pérez Cruz foi-se apercebendo que No hay tanto pan era uma canção esperada, adoptada prontamente como hino para um momento de profunda crise política, financeira e social. “Talvez haja algum vazio de cantautores que dêem voz a questões mais problemáticas, como noutras épocas”, diz. “Não o sabia, não era consciente, e não creio que a música tenha obrigatoriamente de carregar uma mensagem.” Até porque, como reconhece, uma qualquer palavra que não gere sentimento algum pode, se acompanhada de música e num repente, tornar-se desarmante.
Basta ouvir Sílvia Pérez Cruz ao vivo (algo que os discos ainda não reproduzem na perfeição), como recentemente aconteceu na Gulbenkian ou no Theatro Circo, para perceber que há tanto sangue e tantas lágrimas na forma como canta que toda a palavra sai transformada e, por momentos, ela tem-nos dentro da canção.