Carta ao suicida
Deixaste de ser para sempre e não voltarás nunca e o espaço que ocupaste, o oxigénio que absorveste entretanto, não serviu de nada a ninguém, nem a ti próprio
A sério?! Sem uma doença que te mastigasse devagar, que te reduzisse a uma alma silenciada num corpo torcido e espasmódico ou que, pelo contrário, te fizesse desaparecer lentamente numa concha vazia e sorridente?! A sério?! Aos vinte anos por secar?! Por causa de um pecadilho?! A sério?!
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A sério?! Sem uma doença que te mastigasse devagar, que te reduzisse a uma alma silenciada num corpo torcido e espasmódico ou que, pelo contrário, te fizesse desaparecer lentamente numa concha vazia e sorridente?! A sério?! Aos vinte anos por secar?! Por causa de um pecadilho?! A sério?!
Não te enganes, isto não é sobre ti, é sobre mim, é sobre nós que cá deixaste! Cabrão! Parvo! Estúpido! Cobarde! Canalha! Pulha de merda! Como é que te atreveste? Quantas vezes é que te disse que a desilusão é nossa amiga? Que antes a desilusão que a ilusão?! A sério!
Quantas vezes é que te disse que a questão não é a injustiça.. que a injustiça está cá sempre para nos aconchegar com os seus braços de estivador, que a questão é como respondemos à injustiça... e a tua resposta é esta??! Deitares-te para a frente de um comboio!! Biltre! Estupor! Filho da puta!! Como?!
Aos 20 anos?! A sério?! Porque foste apanhado na primeira curva que cortaste? Porque é deprimente ser-se mais esperto que rico? Porque a cura é dura e lenta e incerta?! Para o caralho! Achas que por sorrirmos mais do que choramos na rua as nossas vidas são acolchoadas a rosas?! Que foste o primeiro a lembrar-se disso? Um salto e acaba a dor de ser... fraco de merda, ganha vergonha... faz como nós! Ganha vergonha, perde a vergonha, sorri à merda e sobrevive.
Ainda te escrevo no presente... não sei porquê, já foste, já não és! Deixaste-te afogar no teu desespero romântico de virgem poluída... Um dia de ira e desistes de vez... saíste-nos mais puro que o rebanho queres ver?! Pois badamerda! Foda-se lá o caralho! Mil vez para a puta que pariu!!
O desperdício de potência, de agência, de possibilidades!! Não vou ao velório, não vou ao enterro, nem sequer te dou a vela solitária que os modos gentis, laicos e republicanos cá de casa dão aos defuntos: nada! Não mereces nada! Não te perdoo! Só me devias 50 horas de aulas e mesmo assim devias-me mais do que isto... debaixo de um comboio aos 20 anos. Ganha juízo! “To be young, gifted and black” (falta pobre como a merda) chorava a tia Nina... estavas fodido à partida, descobriste ontem?... E se pensas que o salto foi expressivo, que significou ou ensinou alguma coisa a alguém, desengana-te. Qual tragédia? Ópera bufa! Sabes como é que os brancos te resumiram?! Quatro palavras: “Deve ter sido droga”, nem no “Correio da Manhã” apareceste. Está o epitáfio feito.
Deixaste de ser para sempre e não voltarás nunca e o espaço que ocupaste, o oxigénio que absorveste entretanto, não serviu de nada a ninguém, nem a ti próprio... Muito obrigado por merda nenhuma.
Releio o que escrevi e pergunto-me como é que o editor ainda me publica a fúria... mas como é que é suposto reagir ao desperdício?
Escolheste o destino final, exerceste o direito que nos cabe a todos como privilégio... Estou zangado contigo, a terra te seja leve, merda para isto tudo!