Carlos foi a Maputo com um mapa de Lourenço Marques

Mais de quarenta anos depois do regresso da família de Moçambique, Carlos Pereira foi pela primeira vez à cidade onde nasceu. Foi à procura de uma cidade familiar e de um irmão que que só existiu em Lourenço Marques. Esta é a história de "uma aventura estranha”.

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Daniel é o nome de um bebé que viveu durante 28 dias num sítio chamado Lourenço Marques. Mais velho do que Carlos um ano, os pais falaram-lhe dele uma vida inteira, sempre “o teu irmão”, “o teu irmão”. Mas, em Portugal, para onde a família veio em 1975, “o meu irmão não existe”, não consta dos registos civis portugueses. Mais de quarenta anos depois do regresso, Carlos Pereira vai voltar pela primeira vez à cidade que agora se chama Maputo. Quer encontrar os registos que provam que Daniel nasceu e morreu no sítio onde Carlos cresceu até aos seis anos. Prepara-se para “uma aventura estranha”.

Carlos Pereira, 46 anos, tem escrevinhado muito por estes dias. Anda afadigado, a tentar ter a certeza que vai cumprir uma lista de afazeres sentimentais que tem espalhada por papéis soltos, alguns escolheu-os ele, que é quem vai viajar, outros foram os pais, que ficam em Lisboa.

Ir a: “Casa onde nasci”, “rua onde vivi”, “última morada”, “igreja baptista” (onde os pais se conheceram). Da lista também faz parte a visita “ao jardim onde os meus pais namoravam”, tentar encontrar um segundo andar e uma varanda onde a mãe dizia adeus ao pai e onde um dia a irmã pequena, numa daquelas travessuras que ficou congelada em história familiar, cortou o cabelo e atirou-o para a rua. “Tenho de encontrar esses lugares.” 

Lá chegado, é preciso que se consiga orientar e encontrar dentro de Maputo a Lourenço Marques da família. Numa folha tem metodicamente escrita uma tabela dividida em dois, um dicionário de ruas de dois mundos paralelos, a tradução dos nomes das ruas do passado nas do presente, que conseguiu emparelhar juntando a memória do pai, com dados do Google Maps e do Google Earth. 

A casa onde nasceu ficava na rua Dr. Serrão, que agora é a avenida Emília Dausse, para ir ter à igreja baptista passa-se agora pela Rua Maguiguana, que dantes se chamava Latino Coelho. A Eduardo Mondlane era a Pinheiro Chagas, a Fernandes Tomás passou a Mártires da Machava. Como muitas cidades pós-coloniais, Maputo foi quase inteiramente rebaptizada depois da independência, em 1975.  

Numa outra folha tem escrito um nome completo: Daniel José da Silva Pereira, nascido a 8 de Maio de 1968. E o que vai tentar obter: “certidão de nascimento narrativa completa”. Nos registos centrais de Maputo quer tentar encontrar papéis que digam que o irmão nasceu e que morreu. Para quem está de fora, este pode parecer um exercício quase mórbido, “as pessoas não existem em papéis”, mas este irmão acabou por simbolizar uma vida familiar interrompida. Estima-se que meio milhão de portugueses tenham regressado das ex-colónias africanas no pós-25 de Abril.

Carlos, professor na Escola Superior de Música de Lisboa, não vai a Moçambique de propósito, talvez nunca mais lá voltasse se não tivesse surgido esta oportunidade. A ida resultou de um convite da Embaixada de Portugal para ir tocar piano, juntamente com outros músicos portugueses e moçambicanos. Foi tocar num evento na Embaixada de Portugal, a 13 de Outubro do ano passado, por ocasião da condecoração da Ordem do Mérito atribuída pela presidência portuguesa ao Parque Nacional da Gorongosa. Mas, com o convite, surgiu “o problema, bicéfalo: tenho terror de lá voltar e não resisti a dizer que sim.”

Se não fosse esta viagem talvez nunca tivesse percebido que os pais guardaram intactas as quatro passagens aéreas da Delta-Linhas Aéreas de Moçambique, do dia 22 de Novembro de 1975: o 068200322710, o 068200322711, o 068200322712, o 068200322909. Apesar do cuidado no armazenamento dos bilhetes na casa dos pais, no bairro lisboeta da Encarnação, isso não impediu que o tempo tivesse apagado o nome dos passageiros escritos à mão. Consegue apenas ler-se a “hora limite de comparência no aeroporto: 12h45”. “A gente sabe que são as nossas passagens [do pai, da mãe, de Carlos e da irmão mais nova] mas não sabemos qual dos bilhetes pertence a quem”, diz o pai, Vítor Pereira.

Carlos acredita que “o terror” de lá voltar deve vir-lhe daqueles últimos dias em Lourenço Marques, tinha ele seis anos. Recorda o que chama de “fim da gentileza”, a imagem forte de “uma velhota” portuguesa que tropeça na rua e que ninguém ajuda a levantar-se, de a rodearem a rir-se dela; o som de metralhadoras e o ter de viver longe das janelas em casa; de um cheiro difuso a coisas queimadas, diferente do odor a madeira queimada que era bom e que pontua o resto da sua infância na cidade. E uma sensação “de presença da morte e o medo de perder a vida.”

Os pais, Vítor Pereira e Júlia Pereira afinam-lhe as memórias vagas. A senhora portuguesa terá caído porque as pernas lhe devem ter fraquejado, trôpega do nervosismo que era o dela e o de todos naqueles dias. Carlos e a irmã sabiam que não podiam andar perto das janelas porque era perigoso, havia balas perdidas. O cheiro era a carros queimados, sobretudo daquele dia em que os quatro se puseram a caminho da baixa da cidade para ir à conservatória buscar a certidão de óbito do bebé. “Vão para onde?”, perguntou ao pai um homem armado, “Para a cidade”. “A cidade não é vossa”, disse-lhe, e Vítor respondeu “eu não disse que a cidade é nossa”. O homem espreitou para dentro do carro, onde estavam duas crianças agachadas, Carlos e a irmã, e deixaram-nos em paz. Nunca conseguiram chegar ao centro da cidade. 

Carlos lembra-se, depois, de estar no aeroporto para apanhar o avião para “a metrópole”. Da viagem, que deve ter durado umas 14 horas, não ficou qualquer memória. À chegada, recorda ter perdido o cheiro e o paladar. E de, no espaço de tão pouco tempo, ter passado de criança feliz a “filho de colonos” e de não perceber porquê. “Colonos” eram os que tinham terras, o pai era electricista de automóveis, andava de fato de macaco, e lá não deixaram nada, a última das quatro casas era arrendada. “Passaram fome lá, tiveram uma vida difícil”. “Diziam que os pretos nos lavavam os pés, não sei onde foram buscar essa ideia”, lembra o pai. 

O pai seguiu no paquete Infante Dom Henrique, em 1964, para cumprir o serviço militar e ficou, a mãe era orfã e foi no navio Príncipe Perfeito com 18 anos, em 1966, viver para casa de um tio.

Se lá não tinham quase nada, cá tinham menos. Ficaram a viver, por favor, na casa de uma pessoa conhecida, que nem casa de banho tinha. “Íamos tomar banho aos balneários públicos junto ao castelo de São Jorge”. 

A desadequação, esse sentimento de que se é mal-vindo, ajudou a criar a ideia de que a sua identidade teria muito mais a ver com o sítio onde tinha nascido, e de onde tinha sido obrigado a sair, do que com o local onde agora vivia, Lisboa, Portugal. Diz que a sua vida, por uns bons 15 anos depois da chegada, teve muito “de inferno”. No seu bilhete de identidade ele era natural de Moçambique e ele só queria ser como os outros miúdos, ser natural da freguesia lisboeta do Socorro. 

Na casa definitiva para onde foi viver em Lisboa a família de “retornados”, como se habituaram a ser chamados, esse passado pendurado foi sendo repetido, com essa ideia de vida interrompida. 

Se “o que podia ter sido” fosse o nome de uma terra pode dizer-se que foi lá que a família viveu muito tempo. Carlos Pereira cresceu embalado pela narrativa do “e se” que lhe era contada pelos pais. Ele próprio sente que se agarrou a ela sempre que a vida lhe correu menos bem: Se ao menos tivéssemos continuado a viver lá, se ao menos o Daniel fosse vivo, ele podia ser o irmão mais velho que o protegeria.

Mas depois tudo isso foi sossegando nele, nos pais menos, até este convite para regressar, que o desestabilizou. “Isto estava morto. Morto não, estava adormecido”, corrige-se e percorre o álbum de fotografias felizes, deles recém-nascidos. Há fotos dos filhos recém-nascidos, ele nunca sabe se é ele ou o irmão. “As fotografias são muito parecidas”. 

A mãe fala menos do que o pai mas, para si, o facto de o primeiro filho lá ter ficado “é como ter lá um braço que não vem”, e estica o seu. Acredita que trazer os papéis vai ser “como tê-lo cá outra vez”.

Para Carlos, foi estranho perceber que o irmão não consta nos registos centrais portugueses. Explicaram-lhe que “para o registar cá tenho que trazer o registo de lá. É a única coisa que eu posso fazer. É simbólico. A família está junta outra vez. Viemos todos embora e ele ficou lá, embora morto”. 

Os pais têm medo que Carlos vá porque o sentimento que ficou em último lugar foi o de insegurança, agora actualizado pelo que lhes chega pelas notícias. Diz-se que "África" é o sítio onde há muitos perigos e doenças, insegurança, assaltos, pessoas que morrem e matam, malária. Os pais encheram-no de conselhos. Não é disso que Carlos tem medo, é do que vai sentir, reconhecer, da vontade que talvez vá ter de ali voltar, ao sítio aonde se calhar vai sentir que pertence. 

No caderno vermelho

De tão especiais que adivinhou que iriam ser aquelas duas semanas era preciso documentá-las. Para Moçambique levou um diário, um caderninho vermelho da Moleskine. Muito no início da viagem escreveu: “Ainda não tive qualquer contacto com aspectos da memória. Os aspectos olfactivos que achei que iria sentir assim que chegasse não aconteceram”. Passados uns dias apontou: “Vou tentar hoje ver se consigo ter algum eco da minha infância…”

São frases que dão conta de uma impaciência, de Carlos à espera que lhe cheguem sensações que antecipou nas suas pré-viagens. Esforçou-se. Fez “o tour biográfico”. Encontrou uma das quatro moradas da família. Documentou o achado em fotografia, para levar aos pais. Na casa de esquina, onde à frente ficava o jardim onde os pais namoravam está lá o banco, imagina que deve ser o mesmo. Mas a Rua Dadores de Sangue, que manteve o nome depois da independência, não tem nada a ver com a da sua memória. “A rua como eu me lembro não é aquela, as cores e as dimensões são diferentes.” Onde ele se lembrava de ser tudo branco agora havia cores. 

Nos registos centrais de Maputo sempre se encontrou o irmão. Espantou-se com o facto de as autoridades moçambicanas terem conservado aqueles papéis que dão conta da curta vida de um bebé português nascido em Lourenço Marques. Surpreendeu-o que os registos oficiais daquela existência tenham sobrevivido à turbulência do pós-independência e a uma guerra civil que durou de 1977 a 1992.

A viagem está a terminar e o diário não dá conta de nada avassalador, porque nada de avassalador teve lugar. “Não me lembro de nada, não reconheci nada, não senti nada” e diz isso não com tristeza mas com ligeireza, como se sentisse libertado de alguma coisa sem nome. 

Só depois de ter feito a viagem é que Carlos pode dizer que aquele é um sítio estranho e que ele não se sentiu diferente de um estrangeiro em turismo, com uma missão musical. A actuação correu bem. “Maputo não teve nada a ver com os meus sonhos nem com os meus pesadelos”. "Achei que ia regressar, mas esta foi a minha primeira vez em África.”

Só no regresso a Lisboa é que percebeu que tinha tirado tantas fotografias, mais de quatro mil, de Maputo, mas também do parque da Gorongosa, aonde fez questão de também ir, como o contraponto com uma Moçambique nova onde ele nunca tinha mesmo estado. “Há imagens deslumbrantes e lindas. Eu achei que ia dar uma grande alegria aos meus pais”. Ofereceu-lhas. 

Os pais centraram-se em dez ou 15 imagens de sítios onde estiveram. Sobretudo as da igreja baptista. Está lá, é a mesma, com o mesmo pedaço de texto bíblico escrito num livro de pedra, sobreviveu incólume, ou assim achava Carlos.

Ao lado do edifício, a fotografia tirada por Carlos mostra agora um telheiro, porque a igreja que ainda é igreja, agora também é escola. Teve aquele acrescento para as crianças lá comerem e brincarem debaixo. 

O pai colocou no Facebook a fotografia do edifício, mas a lamentar as alterações arquitectónicas à igreja original. Para Carlos “a igreja ser agora também uma escola é uma belíssima ideia. É um lugar especial. Eu sou professor e vê-la cheia de crianças é um sinal luminoso.”

“Os meus pais não querem voltar por medo de não encontrarem o que deixaram”. Mas “o passado morre naturalmente. Se eles tivessem ficado lá esse passado tinha morrido à mesma”, diz Carlos. 

“Todos os dias ando lá”, diz o pai, referindo-se aos seus percursos virtuais de Moçambique na Internet. “Às vezes é um bocado deprimente ver o que está destruído”, completa a mãe. 

Carlos achou engraçado visitar o Museu Natural onde a mãe o levava pela mão na infância. “Foi-me familiar o ambiente. Os animais empalhados estão lá todos”, mas, mais de quarenta anos depois, estão carcomidos e cheios de pó, as vitrines rachadas. Não sentiu nostalgia, só conseguiu ver naquilo tudo um kitsch que o fez sorrir, de tão fora de tempo, “belo e mágico”, retro, como só um museu colonialista em estado de degradação pode ser.

Quanto ao irmão Daniel, vai registá-lo em Lisboa no que seria o seu dia de anos, faria 48 anos a 8 de Maio, mas percebeu que os papéis não assim tão importantes e que não vale a pena insistir na ideia daquele irmão mais velho salvador. “Não altera nada”. “Quando a vida era muito dura imaginava que teria sido mais fácil com aquele irmão mais velho. Surgia como o irmão extraordinário que teria resolvido tudo”, quando “se calhar, se crescesse, nem sequer me ia dar bem com ele”. A viagem serviu para “matar o hipotético”. 

“Conseguimos as coisas e geralmente ao consegui-las, percebemos que obtivemos o que afinal não queríamos. Mas, enquanto não as conseguimos, não paramos porque achamos que só conseguindo aquela coisa algo vai mudar”.

O que descobriu foi que as suas memórias de Lourenço Marques “não são minhas, são dos meus pais, com muito ressentimento, mágoa. Essa ideia do paraíso perdido foi deles. É normal. Eu não os culpo, tem a ver com o sofrimento por que passaram. Vivem ainda mergulhados no ‘se’”. Para Carlos, a viagem acabou com o “se”. 

“As minhas memórias nem sequer são as deles, são as deles deturpadas. Eu não tenho memórias. Tira de mim a ideia de que perdi alguma coisa, eu não perdi nada. Moçambique é um sítio diferente”. 

Estava à espera de ter algum tipo de epifania, mas não. “Foi libertador. Tirou-me um peso de cima dos ombros. Já acabou. Desligou-me de África. Fiquei em paz. Eu não pertenço ali. Não é o meu sítio. Eu pertenço aqui. Ter nascido em Moçambique foi um acidente.”