Na Bolsa do Porco acerta-se o preço à porta fechada

Numa altura em que os produtores não conseguem vender os animais a preços que cubram os custos, aumenta a pressão sobre o preço que é decidido todas as semanas pela Bolsa do Porco, no Montijo.

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Todas as quintas-feiras às 19 horas há encontro marcado. Repete-se todas as semanas ao lado da praça de touros do Montijo, no Parque Industrial da cidade, num edifício branco e cor-de-rosa. Lá dentro, no rés-do-chão, ainda há vestígios de uma dependência do Banco Espírito Santo decorada com a antiga imagem, de letras douradas sobre um fundo verde-escuro.

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Todas as quintas-feiras às 19 horas há encontro marcado. Repete-se todas as semanas ao lado da praça de touros do Montijo, no Parque Industrial da cidade, num edifício branco e cor-de-rosa. Lá dentro, no rés-do-chão, ainda há vestígios de uma dependência do Banco Espírito Santo decorada com a antiga imagem, de letras douradas sobre um fundo verde-escuro.

Sobe-se a escadaria e entra-se no território da Bolsa do Porco – Associação, legalmente constituída há 22 anos. Não há ecrãs com cotações sempre a passar, apenas secretárias de madeira escura e salas de reuniões onde se juntam os representantes dos produtores de porcos, comerciantes e industriais do sector, desde os matadouros às fábricas que produzem enchidos. Não há compra e venda de acções, não há índices, nem empresas cotadas. Nesta bolsa discute-se o preço de referência do quilo do porco (morto) para a semana seguinte.

O valor que sai todas as semanas é seguido de perto pelos suinicultores que, por estes dias, se debatem com dificuldades em vender os animais a um preço capaz de suportar todos os custos. O embargo russo aos produtos alimentares produzidos na União Europeia, uma retaliação de Moscovo às sanções impostas pela UE na sequência da operação militar na Crimeia, já se arrasta há quase dois anos. E Portugal, que não exportava carne de porco para a Rússia e nem sequer produz o suficiente para se abastecer (cobre apenas 55% das suas necessidades) sofreu indirectamente com o excesso de produtos no mercado europeu. A concorrência dos grandes produtores, como Espanha, está a ser difícil de ultrapassar. E os consumidores tardam em preferir carne portuguesa quando vão às compras.

Nas paredes da Bolsa do Porco há fotografias antigas, de grupos de homens sentados à volta de uma mesa. A placa que assinala a data de inauguração, a 30 de Janeiro de 1992, tem gravado o nome de Arlindo Cunha, ministro da Agricultura de Cavaco Silva (e actual presidente da comissão vitivinícola da Região do Dão) que em 1993 decidiu fechar as importações de suínos da UE, justificada na altura por uma “medida de controlo sanitário”, como citava o Expresso. Bruxelas tinha também proibido as exportações de porcos portugueses devido à peste suína. Nessa altura, como agora, os preços eram um problema. Tal como a capacidade dos produtores de concorrer no mercado externo.

Mas a história da Bolsa começou na rua. “As pessoas juntavam-se no Montijo informalmente e faziam uma espécie de bolsa. Na prática eram vendas. Os produtores iam vender os seus porcos a intermediários que definiam ali mesmo o preço e o principal era o José Inácio”, conta Nuno Correia, presidente da Associação da Bolsa do Porco. Era o preço de rua, passado de boca em boca, que guiava a decisões de compra e venda.

A entrada de Portugal na União Europeia trouxe novas exigências: era preciso ter um valor de referência mais real, que indicasse a evolução do mercado. “Começou então a falar-se na possibilidade de criar uma bolsa, à semelhança do que se fazia noutros países da Europa, como Espanha. Esta não é uma bolsa de transacções. É uma bolsa de preço indicativo dos animais”, sustenta.

As associações que representavam o sector foram chamadas a participar e começaram a trabalhar em conjunto com o Ministério da Agricultura, que destacou um técnico e um administrativo para assegurar o funcionamento do novo organismo (recursos que, mais tarde, deixaram de existir). Na lista de fundadores estão a Associação Livre de Suinicultores (ALIS) e a Associação Portuguesa de Suinicultura (APS) – entretanto fundidas na ALISP, Associação Livre de Suinicultores Portugueses -, a Associação Nacional de Comerciantes de Suínos (ACS), a Associação Portuguesa dos Industriais de Carne (APIC) e a Associação dos Produtores Agrícolas da Região de Rio Maior (APARRM). Todas se mantêm como membros da mesa de cotações.

Cada associação designa um representante. “Normalmente tenta-se que tenham representatividade no mercado pela sua dimensão ou, não tendo, que sejam respeitados pela sua experiência e conhecimento”, detalha Nuno Correia, dando como exemplo António Gameiro, que produz carne com a sua própria marca, a Ti António.

A ideia, completa José Braço Forte, presidente da mesa de cotações, é ter um “valor de referência”, a partir do qual os operadores trabalham. “Podem depois valorizá-lo melhor, incluir condições que fazem alterar o preço. O facto de o cliente poder pagar mais cedo ou mais tarde influencia, por exemplo, o valor que depois é praticado. O que é importante fixar é que a Bolsa serve para referenciar o mercado de animais e de carne – cujo preço é determinado pelo valor do animal”, detalha.

Preços: entre a teoria e a prática

Mas a distância entre o preço da bolsa e o preço real do mercado começou a ser grande demais. Em meados do ano 2000 o “desvio” era de tal forma grande que este organismo “começou a ser pouco credível”. Passou-se, então, a decidir a variação do preço (em percentagem) em vez da cotação. “Ou seja, eu vendia o meu porco e dizia ao meu cliente: ‘atenção que sobre esse preço, a Bolsa subiu três, por isso tens de pagar mais três’. Só havia subidas e descidas e andámos assim anos, até ao final do ano passado”, recorda Nuno Correia. A variação foi abandonada em 2016 e a partir de Janeiro regressou-se à fixação do preço, também fruto de exigências de Bruxelas que queria saber quanto é que, afinal, custavam os porcos em Portugal.

Hoje, na reunião semanal, cada membro partilha dados: quantos animais produziu, quantos abateu, quantos vendeu, quantos sobraram. Analisam-se as cotações das bolsas de Espanha (a mais importante), França, Holanda, Dinamarca e Alemanha. “Salvo raras excepções em que a procura supera a oferta, os produtores portugueses terão sempre de receber o que recebe o produtor espanhol. Porque é o maior concorrente e o que mete mais carne em Portugal. Por semana, Espanha mete 24 mil a 30 mil porcos vivos e dois milhões de 200 mil quilos de carne em Portugal. É muita coisa. Em termos comparativos, nós abatemos 64 mil porcos”, diz Nuno Correia.

Chegar a um valor não é fácil. Há “discussões complicadas”, interesses divergentes: os produtores querem um preço, os industriais (que lidam com a carne) querem outro. Quando não há consenso, vota-se individualmente e faz-se a média da indústria e a média da produção. O valor final é a média destes dois preços.

José Braço Forte recorda uma altura em que o preço votado nas sessões semanais era o resultado de valores concretos partilhados pelas empresas e produtores. “Todos davam o seu preço médio, o preço que tinham pago pelos seus porcos e alguns produtores davam também o preço médio a que tinham vendido, quantos animais tinham abatido e quantos quilos de carne rendiam. Fazíamos o preço ponderado com base nessas informações e era um cálculo mais próximo da realidade”, conta. Mas a estratégia durou pouco. Talvez devido à “personalidade do português que não quer revelar o jogo”. E as empresas deixaram de partilhar os seus valores de negócio, informação relevante.

Nas últimas duas semanas, o preço tem-se mantido nos 1,21 euros. O problema, diz o presidente da Bolsa do Porco, “é fazer valer o preço, porque não é vinculativo”. “Antes, respeitava-se mais”. Braço Forte há-de recordar mais tarde que, depois da primeira manifestação de produtores, onde se ouviram queixas sobre os baixos preços dos porcos (houve quem denunciasse que os estava a vender um euro por quilo), a grande distribuição exigiu reduções substanciais de preço.

Nuno Correia insiste: A “fileira tem de ser solidária e o mais coesa possível”. “Num mercado onde não somos auto-suficientes não faz sentido reduzir a produção”, defende.

Todos contra os produtores

Braço Forte e Nuno Correiam estão sentados numa pequena sala de reuniões. Falta pouco para começar mais uma sessão e os membros da mesa de cotações já começaram a chegar. Juntam-se no pequeno átrio para conversar. No total serão onze, todos homens. A sessão é à porta fechada: nem todos concordaram em abrir as portas ao PÚBLICO devido à informação que é partilhada. Houve quem perdesse clientes importantes depois de divulgados dados sobre o negócio, argumentam os representantes da Associação Portuguesa dos Industriais de Carnes. Outros ripostam, dizem que o sector está em crise. Sem unanimidade, a sessão realiza-se de forma privada.

São 19h30 e na próxima meia hora ouvem-se discussões acesas e até um murro na mesa. No final, decide-se pela manutenção do preço da semana anterior: 1,210 euros, um pouco abaixo dos 1,25 euros de Espanha (Lérida).

À saída, António Gameiro, produtor da Ti António – com cerca de 600 porcas reprodutoras – não esconde a indignação com a actual crise na suinicultura. Admite que já chegou a propor baixar o preço na bolsa porque quando não se conseguem vender os porcos, “começam a ficar grandes”. “O que é que se vai fazer aos animais?”, questiona, admitindo que nem sempre é fácil concertar posições.

“Os matadouros vendem à grande distribuição relativamente barato. Não têm outra possibilidade, se não, ficam com a carne. E depois vêm à retaguarda, ao produtor e formam um preço consoante uma tabela de classificação, coisas que não há em Espanha. Além do peso, calculam a formação da carcaça, a isenção de gordura… tudo define o preço final”, detalha. António Gameiro, que decidiu produzir animais diferentes e “ligar-se ao consumidor”, lamenta a concentração na grande distribuição, que limita as hipóteses de venda a meia dúzia de cadeias de supermercados, pressionando ainda mais os preços. Mas também assume que houve falta de dinamismo dos próprios produtores. “Cometemos o erro grande, não evoluímos para a exportação”, refere.

Os suinicultores, sobretudo os pequenos que António Gameiro representa, “sentem-se entalados”. “Porque é que é tudo contra nós? São os matadouros que nos vêm buscar a margem, é o Governo que não nos liga nenhuma, a grande distribuição não gosta de nós e o consumidor também não. Passou a ideia de que os produtores portugueses querem tudo mais caro e não é verdade!”.

A solução para a crise, continua, é “esperar que os espanhóis exportem cada vez mais e retirem mercadoria de Portugal”. É exportar para a China – cujo dossiê continua por resolver no Ministério da Agricultura há mais de uma década – e insistir na rotulagem obrigatória da carne de porco nacional para que os portugueses comprem carne produzida em território nacional. Esta não é uma crise diferente de outras, mas “é a pior porque parece não ter fim”.

Notícia corrigida: O preço do porco (carcaça) em Espanha é de 1,25 euros o quilo e não 0,95 euros como inicialmente se escreveu. Este valor corresponde, sim, ao do porco vivo.