O filme da vida deles

Começaram em crianças, terminaram em adultos. Há mais de 30 anos, um grupo de amigos decidiu recriar, plano a plano, Os Salteadores da Arca Perdida, o primeiro capítulo das aventuras de Indiana Jones. Vai passar no IndieLisboa.

Fotogaleria

Esta história começa duas vezes: numa selva sul-americana e num autocarro algures no Mississippi. Três homens e um mapa numa caça ao tesouro. Duas crianças a caminho da escola a ler banda desenhada. O primeiro início é de um filme, o segundo, não. Mas estas são duas histórias de aventuras ligadas por um nome, Indiana Jones, o arqueólogo-aventureiro que andou pelo mundo em busca da Arca da Aliança, das pedras de Sankara, do Graal e (infelizmente) da caveira de cristal. Brevemente, lá para 2019, vai andar à procura de mais qualquer coisa, mas vamos recuar a 1981, ano em que estreou Os Salteadores da Arca Perdida e em que dois miúdos do Mississippi saltaram da cadeira no cinema assim que a pedra gigante começou a rolar.

Chris Strompolos e Eric Zala eram esses dois miúdos e Os Salteadores da Arca Perdida foi, literalmente, o filme da vida deles. Naquela viagem de autocarro a caminho da escola, começou a aventura de Chris e Eric, a recriação do filme, plano a plano, sem filmagens na Tunísia, sem efeitos especiais elaborados, sem um macaco amestrado. Sem Steven Spielberg, George Lucas e Harrison Ford. Só com amigos, dinheiro das mesadas e alguns efeitos pirotécnicos arriscados. Com mais entusiasmo e menos orçamento que uma produção de Roger Corman. Foi uma aventura que durou mais de 30 anos, que começou em 1982 quando Chris e Eric eram miúdos e que terminou em 2014 quando eram adultos quarentões e pais de família.

Raiders of the Lost Ark: The Adaptation vai ser exibido na próxima semana em duas sessões no Festival IndieLisboa (21 e 23 de Abril, no Cinema Ideal, às 19h) e, no meio daqueles riscos típicos de uma gravação vídeo muitas vezes copiada (tem cinco minutos de imagem cristalina e produção profissional, mas já lá iremos), é um testemunho exemplar de engenho e perseverança. Tendo o filme de Spielberg como matriz, ver o filme de Strompolos e Zala é pensar, primeiro, “como é que vão fazer isto” e, depois, sentir uma enorme admiração por eles, pela forma como conseguiram, por exemplo, substituir um macaco a fazer a saudação nazi pelo cão de um deles – chamava-se Snickers e tinha uma das patas amarrada a um cordel.

No início, naquela viagem de autocarro, Chris, 10 anos, e Eric, 11, não pensavam em fazer um filme. Nem sequer eram amigos. Partilhavam uma banda desenhada de Indiana Jones, falavam sobre o filme e lançavam ideias para o ar. “Mal nos conhecíamos, mas era uma viagem longa. Um ano depois, o Chris ligou-me. ‘Hey, lembras-te de mim? Fui eu que te emprestei a BD’”, recorda Eric Zala, em conversa telefónica com o PÚBLICO. Nesta altura, ainda era um projecto megalómano sem qualquer hipótese de concretização. Chris Strompolos, como o próprio conta na mesma conversa por telefone, só queria ser Indiana Jones no seu próprio quintal. “Era uma necessidade de desempenhar um papel, de criar um universo de aventura para mim, um parque de diversões fora do mundo normal da infância. Para mim, era isso.”

Nenhum deles tinha uma câmara de filmar e os dois primeiros Verões depois de terem visto o filme, foram de planeamento – ou de brincar aos filmes de aventuras, dependendo da perspectiva. Zala desenhava os storyboards (seriam 602 no total) e os figurinos, Chris foi aprimorando a sua composição de Indy e os dois iam construindo adereços – construir um pedregulho gigante convincente foi bastante problemático durante toda a produção. E havia uma dificuldade adicional nestes primeiros anos. Ainda não estávamos no tempo das edições em vídeo e outros formatos. Os miúdos tinham de recriar tudo de memória com a ajuda de livros, revistas e de uma gravação pirata do som do filme. Foi Eric que levou o gravador escondido debaixo do casaco. Chris já tinha feito uma tentativa, mas foi apanhado porque, nas palavras do amigo, “tinha um ar mais travesso”.

Desde o início que não houve quaisquer conflitos sobre quem iria ser quem. Chris era Indiana Jones e o produtor, Eric seria o realizador e René Belloq (Paul Freeman no original), o arqueólogo francês que trabalha para os nazis e principal antagonista do filme – o seu papel de eleição era Toht, o sádico agente da Gestapo. “No primeiro dia definimos os papéis que cada um ia ter e ficámos nesses papéis durante 30 anos”, garante Eric. Os outros personagens foram para os amigos e a família (nenhum adulto, claro). O elenco, o plano de filmagens, todas as notas de produção estavam detalhados num caderno de argolas: “Raiders of the Lost Ark: Book of Ideas and Memos. Indy and Toth’s Notes. Do not touch!”

Dias de Verão

Chris e Eric só podiam trabalhar no Verão, a produção ficava parada durante o tempo de escola. Era uma concessão que faziam aos pais, que lhes davam todo o apoio moral e liberdade para fazer o filme, mas não mais do que isso. “Em termos financeiros, estão por vossa conta. O que se vê é o resultado de mesadas, prendas de anos e prendas de Natal”, conta Eric. No total, terão gasto cerca de cinco mil dólares – o filme de Spielberg custou 20 milhões. As prendas nem sempre eram dinheiro. Chris, por exemplo, teve um chicote num Natal. Não podia ser Indiana Jones sem um chicote.

No Verão de 1983, começaram as filmagens (com uma câmara Betamax alugada). Entretanto, tinha-se juntado ao bando mais um garoto, Jayson Lamb, que seria importante na criação dos efeitos especiais e na invenção de soluções alternativas para as cenas mais difíceis de fazer. Cena 1, take 1, acção. Três homens numa selva sul-americana em busca de um ídolo de ouro, filmado no quintal da casa de Eric. Era a primeira das 649 cenas que estavam descritas no caderno de produção, mas não seriam filmadas de forma sequencial – no filme, a idade dos protagonistas varia de cena para cena, tal como as vozes passam de agudas a graves num ápice.

Da selva sul-americana para um bar algures no Nepal, onde é introduzida a protagonista feminina, Marion Ravenwood (Karen Allen), uma antiga paixão de Indiana Jones. Para os rapazes foi uma viagem do quintal para a cave da casa de Eric, onde já tinha sido filmada a cena do pedregulho rolante. A cena exige efeitos pirotécnicos e acaba num incêndio. Os rapazes brincaram mesmo com o fogo, alimentado com álcool isopropílico (que fazia chama e se extinguia rapidamente) e gasolina. “Não tínhamos a noção do perigo. Quando filmámos a cena do bar, pegámos fogo à cave na casa da minha mãe, e houve um dia em que despejámos gasolina nas minhas costas. O Chris pegou no extintor e apagou o fogo. Os nossos pais viram as imagens e proibiram-nos de fazer mais coisas com fogo. Foi um milagre a casa não ter ardido”, recorda Eric, que, na cena, era o nepalês que luta com Indiana Jones e que morre queimado.

A produção foi interrompida, mas voltou no Verão seguinte (1984), já com supervisão de um adulto, um vizinho de Chris e actor ocasional que tinha sido um zombie em O Regresso dos Mortos-Vivos, de George Romero. Já tinha estreado, entretanto, o segundo filme da saga, Indiana Jones e o Templo Perdido, onde Indy vai para a Índia confrontar um culto em busca das pedras da fortuna e glória. Também já tinha saído em vídeo e laserdisc Os Salteadores da Arca Perdida e os rapazes podiam finalmente ver o filme outra vez e as vezes que quisessem. Mas tiveram outro contratempo. A rapariga que fazia de Marion mudou-se e tiveram de arranjar outra – tiveram de filmar outra vez a cena do bar.

Chamava-se Angela e, seguindo o guião à risca, Chris teria de a beijar, num dos poucos momentos calmos do filme, no camarote de um barco. Nesta fase da vida, com 13 anos, Chris nunca tinha beijado uma rapariga na boca e, como Indy, teria de o fazer. “Esse está lá no topo dos momentos memoráveis. Estava nervoso e excitado ao mesmo tempo, e não sabia o que estava a fazer. Fui um bocado desastrado”, admite Chris. Fizeram um primeiro take naquele dia e um segundo (mais longo) no dia seguinte. “Não fizemos assim tantos takes como se podia pensar!”

Uma cena em falta

Foram oito Verões, entre 1982 e 1989, assim. Os rapazes conseguiram fazer quase tudo e só faltava uma cena, impossível, mesmo com todo o engenho que tinham - a do aeródromo, que incluiu uma luta e acaba com um avião a explodir. De resto, conseguiram tudo, até cobras – e o filme exige muitas – e um submarino, que os obrigou a ir até Mobile, no Alabama, onde existe um parque da Marinha para embarcações retiradas. Depois de insistirem durante anos, lá tiveram autorização para filmar. “Foram três anos. Foi a fórmula que eu e o Eric usámos durante todos estes anos. Insistir, insistir e não desistir.”

A cena do camião, em que Indy tenta recuperar a Arca das mãos dos nazis, é outro triunfo de encenação. Arranjaram um camião que não andava e que era empurrado ou puxado por um carro consoante as necessidades, e até colaram uma estrela da Mercedes para um toque extra de realismo. E era Chris que fazia as acrobacias todas – Harrison Ford tinha um duplo. Ambos citam esta como uma das suas cenas favoritas.

No Verão de 1988, Eric e Chris mal se falavam. Problemas de raparigas. Quando acabaram as filmagens, a relação azedou ainda mais porque não concordavam quanto à edição do filme. Eric, que era um ano mais velho, foi para Nova Iorque estudar cinema, Chris cumpriu o seu último ano do liceu. No Verão seguinte, viram juntos Indiana Jones e Grande Cruzada, voltaram a ser amigos e fizeram uma nova edição do filme, com melhores efeitos de som e a banda sonora de John Williams. Nenhum deles reparou no erro dos créditos. Escreveram Spielburg em vez de Spielberg.

A infância e adolescência terminaram na exibição do filme em Junho de 1989, perante uma plateia de 200 amigos e familiares. Os rapazes chegaram de limusina, de smoking, como se fossem para um baile de finalistas. Até tiveram direito a reportagem de uma televisão local. “Durante muito tempo, a pergunta que fazíamos a nós próprios era: ‘Será que alguma vez vamos acabar isto?’. Na manhã seguinte à estreia, quando estávamos a limpar o auditório, é que foi o momento em que me apercebi que tínhamos cortado a meta”, recorda Eric.

Os primeiros anos na idade adulta foram experiências diferentes para os dois. Eric teve um percurso em linha recta, o de Chris foi tortuoso, e os amigos voltaram a zangar-se. Estiveram vários anos sem se falar. Nos seus anos de Nova Iorque, Eric ia mostrando o filme a amigos, que, por sua vez, iam fazendo cópias. Uma dessas cópias chegou às mãos de Eli Roth, realizador que ganhara fama com Cabin Fever e que se iria especializar num sub-género do horror, o torture porn, com a série Hostel, para além de ter sido um dos Inglourious Basterds de Tarantino. Roth ficou de tal forma impressionado com Raiders: The Adaptation que não descansou enquanto não o mostrou a uma audiência mais alargada, em Dezembro de 2002, num festival de cinema em Austin, no Texas.

Fotogaleria

A carta de Spielberg

Os amigos zangados não estavam nessa primeira exibição nem sabiam o que se estava a passar. “Tínhamos continuado com as nossas vidas e, durante esse tempo desligámo-nos um do outro. Tivemos uma grande zanga quando vivíamos juntos em Los Angeles e não nos falámos durante dois anos”, conta Eric. Mas Indiana Jones voltou a aproximá-los mais uma vez, quando se reuniram para três sessões do filme em Austin. Nesta altura, já tinham recebido cartas elogiosas do próprio Steven Spielberg – que iriam, mais tarde, conhecer pessoalmente, e até pegaram na Arca da Aliança usada no filme. “Quis escrever esta carta para que saibam que fiquei impressionado com o vosso tributo detalhado ao Salteadores”, escreve Spielberg, que elogiou o detalhe da substituição do macaco por um cão e até reparou na inflexão de voz de Chris numa determinada cena – Spielberg tinha pedido a Harrison Ford para fazer o mesmo.

Neste momento, mais de 20 anos depois daquela viagem no autocarro escolar, o filme dos miúdos já pertencia ao mundo. Na primeira exibição pública a estranhos que presenciaram, Eric não sabia o que pensar. “À porta do cinema, vimos uma fila de pessoas a dar a volta ao quarteirão. Ficámos assustados e nervosos. Será que esta gente sabe que este é um filme feito por miúdos na cave da casa da minha mãe? Estavam 300 pessoas na sala. Quando as luzes se apagaram, ouvi risos, aplausos e, quando apareceu a pedra rolante, percebi que já não era preciso andar à procura de uma saída de emergência. Quando acabou, houve uma ovação de pé durante quatro minutos.”

O culto cresceu. Escreveram-se reportagens, um livro, e o filme foi exibido um pouco por todo o mundo, sendo que os miúdos, por questões de direitos de autor, não podiam ganhar dinheiro com ele – ia para a caridade. A história era demasiado boa para ser ignorada e um filme de ficção sobre esta infância mais estranha que a ficção chegou a ser pensado. Por enquanto, deu um documentário de longa-metragem que vai estrear em Junho deste ano. O filme documenta a aventura infanto-juvenil de fazer um filme no quintal, mas mostra mais do que isso. Mostra o regresso dos quarentões à sua infância. Não uma sequela, mas um epílogo.

Faltava a cena do aeródromo e do avião a explodir. Chris lançou a ideia, Eric estava reticente, mas não foi difícil de o convencer. E voltaram a reunir-se. Desta vez com orçamento – angariaram dinheiro através de uma campanha de crowdfunding -, 11 dias para as filmagens e responsabilidades de gente adulta. Chris voltou a usar o casaco, o chapéu e o chicote. “Foi uma experiência muito emocional, toda a infância revisitada na idade adulta. Levei aquilo muito a sério. Nos momentos finais, apercebi-me que nunca mais o iria fazer. Foi estranho ter esta experiencia na infância e, ao voltar a ela, vieram muitas emoções, anacronismos, fantasmas, demónios, muita coisa que tive de revisitar. No fim, foi voltar a trabalhar com o meu melhor amigo e fazer a melhor cena possível”, recorda Chris.

A cena não foi feita com cartão, cordel e gasolina nas costas, mas da forma mais profissional possível. Estes minutos feitos por adultos foram incluídos no filme dos miúdos. “Construímos um aeródromo no meio do Mississipi e um avião, e rebentámos com ele. Metemos a cena no filme. De um momento para o outro, o Chris passa de ter 16 anos para 45. Fizemos isso de propósito”, conta Eric. Será esta versão, garante, que vai passar no IndieLisboa.

Bem para lá dos 40, Chris Strompolos e Eric Zala não fizeram carreira no cinema, mas ainda sabem de cor as falas de Salteadores e, a pedido, debitam por telefone algumas linhas de um diálogo entre Belloq e Indiana Jones. A amizade tantas vezes quebrada e reconstruída mantém-se firme e falam de vários projectos futuros a dois, que poderão ser impulsionados pela estreia do documentário. Mas Indiana Jones estará sempre presente e o que fizeram é bem mais que um tributo apaixonado a um filme preferido. Foi e é a vida deles. “Nunca imaginei que pudesse mudar tanto as nossas vidas”, diz Eric Zala. “Quando éramos miúdos não tínhamos noção do que iria acontecer. Só queríamos acabar. Estou muito grato por ter passado a minha infância a fazer isto e continua a moldar a minha vida. A aventura continua.”