Alkantara, um festival para sentir o que está debaixo da pele das sociedades
Entre 25 de Maio e 11 de Junho, o Festival Alkantara junta uma selecção de espectáculos que põem a arte contemporânea a olhar e a dialogar com o passado
Há dois anos, no discurso de apresentação da 13ª edição do Alkantara, o seu director Thomas Walgrave começava por avisar que poderia muito bem tratar-se do derradeiro capítulo do festival, após uma fortíssima quebra nos apoios públicos. Afinal, o Alkantara sobreviveu e acaba de anunciar uma ambiciosa programação para 2016. Não porque o cenário se tenha tornado subitamente paradisíaco, mas porque o anúncio por parte de Tiago Rodrigues de “um aumento substancial” da co-produção do Teatro Nacional D. Maria II e a atribuição de um financiamento extra por parte do Fundo de Fomento Cultural funcionaram como um providencial balão de oxigénio.
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Há dois anos, no discurso de apresentação da 13ª edição do Alkantara, o seu director Thomas Walgrave começava por avisar que poderia muito bem tratar-se do derradeiro capítulo do festival, após uma fortíssima quebra nos apoios públicos. Afinal, o Alkantara sobreviveu e acaba de anunciar uma ambiciosa programação para 2016. Não porque o cenário se tenha tornado subitamente paradisíaco, mas porque o anúncio por parte de Tiago Rodrigues de “um aumento substancial” da co-produção do Teatro Nacional D. Maria II e a atribuição de um financiamento extra por parte do Fundo de Fomento Cultural funcionaram como um providencial balão de oxigénio.
Ainda assim, quando Walgrave começou a avançar para a programação da edição que decorrerá entre 25 de Maio e 11 Junho, em várias salas lisboetas, fê-lo com a avisada cautela de apresentar aos seus parceiros – “mais do que palcos onde apresentamos os espectáculos, são teatros com os quais discutimos e estabelecemos diálogos”, esclarece – propostas que, caso o Alkantara caísse, pudessem constar da sua actividade regular. Assim terá sido no caso de Cláudia Dias, artista portuguesa que, na companhia do dramaturgo galego Pablo Fidalgo Lareo, apresentará no Teatro Maria Matos, de 3 a 5 de Junho, Segunda-feira: Atenção à Direita, espectáculo em que a memória salta para o ringue e promete dar e levar pancada. Na primeira de sete peças que Cláudia Dias se propõe criar com periodicidade anual, a luta surge também como recusa da obsessão actual pela construção de consensos.
A selecção dos espectáculos deste Alkantara reflecte a presença de artistas provenientes de “partes do mundo que, na sua história recente, viveram momentos drásticos de ruptura”, conforme se lê na apresentação do festival, numa tentativa de regressar a esses pontos de cisão e perceber que passado deve ser reclamado para o presente. Esse mote, uma temática descoberta a posteriori por Walgrave, está naturalmente presente nas criações do coreógrafo congolês Faustin Linyekula (Artista na Cidade 2016) que, com o seu corpo, tem contado a história de um país em transformação, apresentando aqui Sur les Traces de Dinozord (1 e 2 de Junho, Culturgest) e The Dialogue Series: IV. Moya (4 e 5, Teatro São Luiz).
Tal temática não é igualmente estranha à selecção de duas peças com textos de Anton Tchékhov, em espectáculos de Christiane Jatahy e tg STAN, versões contemporâneas de As Três Irmãs e O Cerejal. “Tchékhov é um bom exemplo de um autor que não é considerado político, mas que através do texto, do subtexto e do não-dito está sempre a ser utilizado para contar histórias muito relevantes hoje em dia”, defende Walgrave.
“Ao coleccionar espectáculos e projectos para o festival fui percebendo as linhas que o percorrem nesta ideia de a arte contemporânea olhar para a tradição e para o passado, e tentar trabalhar a partir daí de forma crítica.” O confronto entre essas duas leituras críticas contribuiu para elencar E se Elas Fossem para Moscou? (nome de baptismo para a encenação de Jatahy, espectáculo de abertura no São Luiz, entre 25 e 27 de Maio), em que as protagonistas são empurradas entre realidade e ficção, teatro e cinema, passado e presente, e O Cerejal pela fundamental companhia belga tg STAN, que promete implodir Tchékhov e a relação com o tempo inscrita no texto.
A extensa programação do Alkantara passa ainda pelas apresentações de dois exemplos da dança contemporânea marroquina, Taoufiq Izeddiou (em tom de pesquisa espiritual e tocando “mesmo no núcleo do que consideramos ser uma diferença cultural”, comenta Walgrave) e Radouan Mriziga (em quem o director artístico aposta como “um coreógrafo de quem vamos ouvir falar muito nos próximos anos”), ou pela intensa partilha de uma reconstrução biográfica de Rabih Mroué, a partir da história do seu irmão, baleado durante a guerra civil no Líbano. Veremos ainda como através da imagem o coreógrafo e bailarino israelita Arkadi Zaides procura um ponto de vista sobre o conflito israelo-palestiniano, a partir de material filmado pelos voluntários do B’Tselem Camera Project.
Junte-se ainda a continuação de Encyclopédie de la Parole, agora a Suite nº2 do espectáculo de abertura da última edição, em que Joris Lacoste orquestra um coro de palavras retiradas de discursos políticos, conversas telefónicas ou aulas de ginástica; a viagem subterrânea de La Nuit des Taupes em que Philippe Quesne esgravata até encontrar debaixo da terra uma família de toupeiras gigantes; ou O Nosso Desporto Preferido, em que Gonçalo Waddington dirige cinco actores que sonham com a criação de uma espécie humana livre das suas necessidades básicas.
Este Alkantara, considera Thomas Walgrave, contraria a “ideia absurda de nivelação de estéticas e de gostos” que recentemente vigorava na Europa, ao mesmo tempo que reconhece o acentuado regresso “a uma coisa muito local”. É a partir desse mundo concreto que o festival se propõe abanar certezas e promover a absoluta “fé na sensibilidade dos artistas em sentir o que está por debaixo da pele das diferentes sociedades”.