O boom do MMA: um risco alargado sem protecção adicional à vista
Lesões cerebrais clinicamente associadas a impactos repetidos na cabeça. Registadas 14 mortes na modalidade desde 1993. Em Portugal, há cerca de 300 lutadores federados.
Tem sido um comboio imparável. Desde que, em Março de 2007, a família Fertitta adquiriu os direitos do World Extreme Cagefighting e dos Pride Fighting Championships, fundindo-os na marca Ultimate Fighting Championship (UFC), o mundo das artes marciais mistas (MMA) nunca mais foi o mesmo. A visibilidade de um universo até aqui quase subterrâneo disparou e o interesse, de atletas e espectadores, subiu com ela. O UFC, a divisão de elite da modalidade, passou a ser o oásis da maioria dos lutadores. João Carvalho não era excepção.
A ferocidade do conceito salta à vista: dois lutadores, seriados pela mesma categoria de peso, medem forças num ringue circular ou octogonal totalmente fechado. Lá dentro, durante três assaltos, tudo conta. As técnicas de muay-thai e de boxe, os ensinamentos de judo, de wrestling e de jiu-jitsu brasileiro. A velocidade e potência dos golpes, a força explosiva e a capacidade de resistência. E a estratégia, claro. As luvas, utilizadas mais até para evitar a fractura das mãos, pouco podem fazer para evitar danos significativos, num contexto em que os cotovelos e os joelhos impõem a lei e em que o sangue é um convidado regular.
De onde vem a atracção? “Eu não luto para provar que sou duro, eu sei que sou duro. Eu luto porque está dentro de mim”, explicou um dia Rashad Evans, ex-campeão de peso meio-pesado do UFC. Ou, se quisermos uma explicação mais literária, podemos recorrer a outro ex-campeão, Forrest Griffin, que cita uma frase de Mark Twain: “Não é o tamanho do cão na luta, é o tamanho da luta no cão”.
A motivação conta e muito. Conta porque ajuda a acomodar as horas incontáveis de treino, a maior parte das vezes bidiário. Conta porque permite ir além dos limites e melhorar a preparação, que normalmente começa mais de dois meses antes do combate. Conta porque ajuda a lidar com a ansiedade de enfrentar um adversário igualmente preparado. E conta, essencialmente, porque contribui para relativizar os riscos.
“Não pensamos nisso. Pelo menos eu, quando entro para o ringue, o que peço sempre é que ninguém se magoe com gravidade, mas não estou a pensar no que de pior pode acontecer”, explica ao PÚBLICO Ricardo Fernandes, um lutador tremendamente experiente e detentor de inúmeros títulos nacionais, continentais e mundiais no kickboxing.
Provavelmente mais do que na maioria dos outros desportos, o risco está lá. Em cada golpe, seja no striking ou no ground and pound. E a própria filosofia do MMA funciona como um convite às lesões mais sérias, ao premiar ao nível da pontuação o striking e o KO, contribuindo para uma lógica de pancadas cada vez mais fortes. “As regras, hoje em dia, são as mesmas do UFC. O MMA jogava-se muito no chão e o público achava enfadonho. Agora há mais troca de golpes”, avalia o atleta do Sporting.
O domínio do jiu-jitsu ajuda a minimizar a exposição da cabeça nas manobras feitas no solo, mas não chega. E a morte de João “Rafeiro” Carvalho, na Arena de Dublin, está aí para o provar, de uma forma dolorosa. É neste ponto que regressa a discussão em torno do uso ou não de capacete protector. E Ricardo Fernandes é taxativo: “Desvirtua completamente a modalidade quando se joga a nível profissional, onde o nível técnico é muito elevado. Nos combates amadores jogam todos protegidos, mas normalmente jogam de forma mais atabalhoada. O profissional bate pela certa, com a destreza com que treinou ao longo dos anos. Tem de se fazer sem protecções”, aponta, sem hesitar.
A opinião de Ricardo é a opinião da esmagadora maioria dos praticantes e vai ao encontro da recente decisão do Comité Olímpico Internacional, que aceitou a proposta da Federação Internacional de Boxe Amador (AIBA, na sigla original) de descartar o uso de protecções de cabeça a partir dos Jogos do Rio de Janeiro. Argumentos utilizados: o capacete difunde o efeito dos golpes, permitindo ao lutador absorver mais pancadas durante mais tempo, não protege eficazmente o queixo e perturba a visão periférica.
A verdade é que este equipamento até é usado regularmente por muitos lutadores, mas somente em regime de treino, e muitas vezes para evitar cortes que possam gerar sangramento abundante e obrigar à interrupção do combate. Na altura de subir ao ringue, porém, a exposição é total. “É quase contra-intuitivo. Usamos protecção e sofremos mais danos na cabeça. A cabeça fica maior, por isso absorvemos mais golpes”, descreve Tim Kennedy, peso-médio no UFC, citado pelo site MMAJunkie.
Luís Barneto, director executivo da Comissão Atlética Portuguesa de Mixed Martial Arts (CAPMMA), entidade que desenvolve e regula a prática da modalidade no território nacional, cita também a medida tomada pela AIBA para rejeitar o uso de protecções. “O efeito em termos de estragos não está sequer devidamente calculado”, acrescenta ao PÚBLICO, sublinhando que a morte de João Carvalho é um caso francamente invulgar. “É uma situação muito rara. Sinceramente, não me lembro de outra igual”, lamenta, aludindo a uma estatística que aponta para um total de 14 mortes em 23 anos de MMA, e nem todas relacionadas com sequelas cerebrais.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Tem sido um comboio imparável. Desde que, em Março de 2007, a família Fertitta adquiriu os direitos do World Extreme Cagefighting e dos Pride Fighting Championships, fundindo-os na marca Ultimate Fighting Championship (UFC), o mundo das artes marciais mistas (MMA) nunca mais foi o mesmo. A visibilidade de um universo até aqui quase subterrâneo disparou e o interesse, de atletas e espectadores, subiu com ela. O UFC, a divisão de elite da modalidade, passou a ser o oásis da maioria dos lutadores. João Carvalho não era excepção.
A ferocidade do conceito salta à vista: dois lutadores, seriados pela mesma categoria de peso, medem forças num ringue circular ou octogonal totalmente fechado. Lá dentro, durante três assaltos, tudo conta. As técnicas de muay-thai e de boxe, os ensinamentos de judo, de wrestling e de jiu-jitsu brasileiro. A velocidade e potência dos golpes, a força explosiva e a capacidade de resistência. E a estratégia, claro. As luvas, utilizadas mais até para evitar a fractura das mãos, pouco podem fazer para evitar danos significativos, num contexto em que os cotovelos e os joelhos impõem a lei e em que o sangue é um convidado regular.
De onde vem a atracção? “Eu não luto para provar que sou duro, eu sei que sou duro. Eu luto porque está dentro de mim”, explicou um dia Rashad Evans, ex-campeão de peso meio-pesado do UFC. Ou, se quisermos uma explicação mais literária, podemos recorrer a outro ex-campeão, Forrest Griffin, que cita uma frase de Mark Twain: “Não é o tamanho do cão na luta, é o tamanho da luta no cão”.
A motivação conta e muito. Conta porque ajuda a acomodar as horas incontáveis de treino, a maior parte das vezes bidiário. Conta porque permite ir além dos limites e melhorar a preparação, que normalmente começa mais de dois meses antes do combate. Conta porque ajuda a lidar com a ansiedade de enfrentar um adversário igualmente preparado. E conta, essencialmente, porque contribui para relativizar os riscos.
“Não pensamos nisso. Pelo menos eu, quando entro para o ringue, o que peço sempre é que ninguém se magoe com gravidade, mas não estou a pensar no que de pior pode acontecer”, explica ao PÚBLICO Ricardo Fernandes, um lutador tremendamente experiente e detentor de inúmeros títulos nacionais, continentais e mundiais no kickboxing.
Provavelmente mais do que na maioria dos outros desportos, o risco está lá. Em cada golpe, seja no striking ou no ground and pound. E a própria filosofia do MMA funciona como um convite às lesões mais sérias, ao premiar ao nível da pontuação o striking e o KO, contribuindo para uma lógica de pancadas cada vez mais fortes. “As regras, hoje em dia, são as mesmas do UFC. O MMA jogava-se muito no chão e o público achava enfadonho. Agora há mais troca de golpes”, avalia o atleta do Sporting.
O domínio do jiu-jitsu ajuda a minimizar a exposição da cabeça nas manobras feitas no solo, mas não chega. E a morte de João “Rafeiro” Carvalho, na Arena de Dublin, está aí para o provar, de uma forma dolorosa. É neste ponto que regressa a discussão em torno do uso ou não de capacete protector. E Ricardo Fernandes é taxativo: “Desvirtua completamente a modalidade quando se joga a nível profissional, onde o nível técnico é muito elevado. Nos combates amadores jogam todos protegidos, mas normalmente jogam de forma mais atabalhoada. O profissional bate pela certa, com a destreza com que treinou ao longo dos anos. Tem de se fazer sem protecções”, aponta, sem hesitar.
A opinião de Ricardo é a opinião da esmagadora maioria dos praticantes e vai ao encontro da recente decisão do Comité Olímpico Internacional, que aceitou a proposta da Federação Internacional de Boxe Amador (AIBA, na sigla original) de descartar o uso de protecções de cabeça a partir dos Jogos do Rio de Janeiro. Argumentos utilizados: o capacete difunde o efeito dos golpes, permitindo ao lutador absorver mais pancadas durante mais tempo, não protege eficazmente o queixo e perturba a visão periférica.
A verdade é que este equipamento até é usado regularmente por muitos lutadores, mas somente em regime de treino, e muitas vezes para evitar cortes que possam gerar sangramento abundante e obrigar à interrupção do combate. Na altura de subir ao ringue, porém, a exposição é total. “É quase contra-intuitivo. Usamos protecção e sofremos mais danos na cabeça. A cabeça fica maior, por isso absorvemos mais golpes”, descreve Tim Kennedy, peso-médio no UFC, citado pelo site MMAJunkie.
Luís Barneto, director executivo da Comissão Atlética Portuguesa de Mixed Martial Arts (CAPMMA), entidade que desenvolve e regula a prática da modalidade no território nacional, cita também a medida tomada pela AIBA para rejeitar o uso de protecções. “O efeito em termos de estragos não está sequer devidamente calculado”, acrescenta ao PÚBLICO, sublinhando que a morte de João Carvalho é um caso francamente invulgar. “É uma situação muito rara. Sinceramente, não me lembro de outra igual”, lamenta, aludindo a uma estatística que aponta para um total de 14 mortes em 23 anos de MMA, e nem todas relacionadas com sequelas cerebrais.
Os golpes num estado de inconsciência
A questão não é nova e os estudos clínicos conduzidos para avaliar a extensão e a frequência das lesões provocadas no ringue têm surgido ao longo dos anos. Embora os ensaios sejam muito mais abundantes no que respeita ao boxe, modalidade com uma tradição mais longa, há indicadores recentes que apontam para números preocupantes no MMA.
Uma investigação levada a cabo, em 2014, por especialistas da Universidade de Toronto conclui que um lutador desta modalidade sofre uma lesão cerebral traumática em quase um terço dos combates em que participa. O estudo, publicado no American Journal of Sports Medicine, avaliou sete anos de cartões de pontuação do UFC – que detalham quando a luta termina com um KO ou com um KO técnico – e um conjunto de gravações em vídeo das competições.
Os investigadores verificaram que mais de 90% dos KOs eram resultado de pancadas repetidas, em sequência, e que metade dos KOs decorria de golpes no maxilar inferior. O mais assustador é que os académicos canadianos descobriram que, em média, cada lutador sofre 2,6 pancadas na cabeça já depois de um golpe decisivo e já em estado de inconsciência.
Este estudo não se baseia, porém, na observação directa ou em exames médicos conduzidos aos atletas, o mesmo acontecendo com um outro realizado no Ohio, em 2012, pela Case Western Reserve University. Os investigadores trabalharam com base num boneco de testes que ia absorvendo diferentes pancadas resultantes de movimentos diversos, com e sem protecção na cabeça. A conclusão a que chegaram foi a de que o equipamento reduzia o impacto dos golpes lineares, mas não dos impactos rotativos, provocados, por exemplo, pela aplicação de um gancho.
Uma ilação que surpreendeu os responsáveis, cujo trabalho foi publicado no Journal of Neurosurgery, foi que o uso de protecção na cabeça no MMA não baixava significativamente o risco de uma lesão cerebral. Salvaguardando que o estudo era preliminar, a equipa norte-americana alertava também para a necessidade de encontrar novos parâmetros de avaliação para as lesões da cabeça e do pescoço.
No que concerne ao acompanhamento clínico durante os combates, embora a lógica em muitos dos palcos de MMA seja a da auto-regulação, os promotores mostram cada vez mais consciência da necessidade de elevar os padrões de segurança. No evento Total Extreme Fighting, por exemplo, no qual João Carvalho competiu, na Irlanda, havia sete paramédicos e três médicos prontos a prestar assistência. E terão cumprido as rotinas habituais.
“Pode sempre ser feito mais. Trata-se de um desporto jovem e é possível evoluir em várias áreas, até nos estudos feitos no âmbito da medicina. O que me parece relevante, por exemplo, é um acompanhamento médico permanente, mesmo fora da competição, com uma maior interligação de dados e de informação sobre os atletas. E isso está a ser preparado”, assevera Luís Barneto, também membro da Comissão de Treinadores da Federação Internacional de MMA, acrescentando que a questão dos seguros pessoais e profissionais também deve ser tida em conta.
Interesse crescente, também em Portugal
Em Portugal, são cerca de 300 os lutadores de MMA federados, mas o leque é muito mais abrangente se expandirmos o raio-x aos atletas que praticam a modalidade de forma puramente lúdica. E o contingente tem crescido, provavelmente atraído pelos holofotes do UFC, uma máquina de produção desportiva que tem galgado fronteiras e arrebatado os nomes mais sonantes do universo das artes marciais.
Para que se perceba o impacto que a marca está a gerar, a partir dos EUA mas já com imensos seguidores na Europa, basta dizer que o UFC se reforçou com a compra do formato Strikeforce em 2011, promoveu uma espécie de um reality show que funcionou como um casting para novos lutadores, lançou um videojogo muito popular e já chegou ao cinema, com documentários sobre “estrelas” como Anderson Silva, Matt Hamill, Evan Tanner ou Rich Franklin. O apelo tem sido tal que inclusive já atraiu o interesse de jogadores da NFL e de outros desportos.
Na “tropa de elite” que é o UFC, há actualmente 586 lutadores que beneficiam de um cachet atractivo, proporcionado por um contrato milionário fechado recentemente com a Reebok, uma das muitas marcas que têm vindo a associar-se à modalidade. Os atletas que têm entre um e cinco combates no currículo recebem 2500 dólares por evento, uma quantia que vai subindo progressivamente até aos 20 mil dólares, para quem some mais de 21 participações na carreira. Números que atraem seguidores de diferentes paragens.
“O UFC passou a ser uma montra, o El Dorado, o sonho dos lutadores”, reconhece Ricardo Fernandes, um dos poucos praticantes que conseguem viver da modalidade em Portugal, também graças ao apoio que recebe do Sporting. Por ano, o lutador que nasceu na Amadora participa, em média, em seis torneios e já acumulou experiência suficiente para saber que o imprevisto está sempre à espreita, por muito que se prepare um combate: “Estudamos sempre os adversários, mas os KOs acontecem muitas vezes em jogadas estudadas. É como no futebol, toda a gente sabe que o Ronaldo vai fazer aquele drible mas entra na mesma”.
No ringue, porém, o preço que advém de um erro é pago com sofrimento físico. E por isso os riscos têm de ser calculados ao milímetro. Será que todos os atletas que entram na teia competitiva estão devidamente conscientes do que vão enfrentar? Luís Barneto acredita que sim: “Nos tempos que correm, é difícil encontrar uma pessoa a competir num desporto sem tentar saber o máximo possível, de forma inconsciente. Agora, os riscos de morte não passam pela cabeça de alguém, tal como acontece noutras modalidades”.
Graças à fatalidade que vitimou João Carvalho, essa percepção poderá mudar. Pelo menos no imediato, o que tenderá a colocar um travão no boom que o MMA tem registado. “É um golpe firme nas aspirações que o MMA tem de se afirmar junto dos sponsors”, avalia Ricardo Fernandes, prevendo dias cinzentos. Mais desanuviada é a perspectiva de Luís Barneto: “Este desporto vai continuar a crescer na exacta medida em que estes casos vão diminuir, porque caminhamos no sentido de uma maior especialização”.
Dada a juventude do MMA nos seus moldes actuais, as investigações sobre o passivo neurológico que os atletas têm de suportar não levam ainda em linha de conta os efeitos gerados a longo prazo, como a encefalopatia traumática crónica (ETC), uma doença neurodegenerativa progressiva que há décadas atinge muitos antigos pugilistas.
E se é verdade que as concussões cerebrais estão longe de ser um exclusivo dos desportos de combate – um estudo realizado em 2012, pela Boston University School of Medicine, concluiu que 34 dos 35 cérebros de antigos jogadores de futebol americano analisados apresentavam sinais de ETC -, há uma outra certeza neste diagnóstico: um impacto aplicado repetidamente na cabeça reduz as funções cerebrais. É uma espécie de KO a ser descontado no futuro.