O ideal do complexo do Cachão foi engolido pelos parques industriais das câmaras
Deputados do PCP visitaram antigo complexo agro-industrial perto de Mirandela e a velha estação da linha do Tua que a servia para mostrarem a importância do investimento público na produção no interior.
Como muitas aldeias e vilas de Trás-os-Montes e Alto Douro, os quatro hectares do Complexo Industrial do Cachão, perto de Mirandela, são hoje um mero fantasma do que foram nos anos 60 e até ao 25 de Abril. Há edifícios por acabar, outros em derrocada, muitos de porta fechada, e nos poucos realmente usados apenas 12 empresas fazem do local a sua casa.
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Como muitas aldeias e vilas de Trás-os-Montes e Alto Douro, os quatro hectares do Complexo Industrial do Cachão, perto de Mirandela, são hoje um mero fantasma do que foram nos anos 60 e até ao 25 de Abril. Há edifícios por acabar, outros em derrocada, muitos de porta fechada, e nos poucos realmente usados apenas 12 empresas fazem do local a sua casa.
Numa das pontas do complexo, numa empresa de reciclagem devastada por um fogo há dois meses, os fardos de plástico ainda fumegam e o cheiro entranha-se na roupa e na pele. Os moradores do Cachão, junto ao complexo, não se cansam de reclamar, como Maria Julieta Pinto que se queixa de ter ficado quase sem voz desde o incêndio, mas o dono da empresa está a limpar os plásticos muito devagar.
À parte do som lancinante de uma rebarbadora a cortar meia dúzia de ferros, o que mais de ouve nas ruas do complexo, sugestivamente baptizadas com os nomes dos rios da região, são os pássaros. A empresa de castanha está agora quase parada; noutra de mel, com as colmeias arrumadas, os dois trabalhadores constroem um reboque em ferro; o lagar de azeite também labora a nem meio gás; o laboratório de águas continua a ser usado pelos municípios e emprega 13 pessoas; pelas janelas da pequena fábrica de queijo de cabra sai um aroma intenso a leite azedo; à porta de uma lavandaria de lã de ovelha amontoam-se farrapos sujos; e do lado do matadouro, o maior empregador do complexo, com 21 trabalhadores, sente-se o cheiro dos animais.
Agregador e potenciador da produção local
O espaço, que dá trabalho a uma centena de pessoas – duas centenas no tempo das colheitas -, é, assim, uma sombra daquele que há 40 anos albergava 1200. Ou 1054, como nos anos 70, altura em que Julieta Pinto controlava, nos escritórios, as listas de empregados. Ainda ali está a antiga adega cooperativa de Vila Flor, agora fechada, os enormes silos a enferrujarem, o edifício da antiga fábrica de leite.
A estrutura foi criada com o objectivo de agregar e potenciar a produção local de fruta, legumes, azeite, vinho (das vinhas que ficavam fora da região demarcada e não iam para a Casa do Douro), carne de vaca, porco e ovelha, ou leite. Contratualizava terrenos com os agricultores, pagava obras dos socalcos, subsidiava os viveiros, descreveu o administrador da Agro-Industrial do Nordeste, António Morgado, que gere o complexo e foi o guia da visita que deputados do PCP ali fizeram na terça-feira, no âmbito das jornadas parlamentares que decorreram em Vila Real e Bragança.
Todo o espaço tinha então uma gestão única; parte dos trabalhadores também não eram especializados e acumulavam funções nas várias linhas de produção, dos enlatados às compotas, da fruta aos licores, dos legumes ao vinho. Como Maria dos Anjos, que ali esteve 20 anos. Quando chegou, viveu nove meses num barraco com os três filhos e dormia num divã com o marido, descreve. Depois, mudou-se para o bairro de casinhas iguais construído para os trabalhadores ao lado do complexo. Hoje ainda ali moram, mas tiveram que comprar as casas e pagar imposto.
Turbulência desde o 25 de Abril
A estrutura, praticamente no meio da serra do Vieiro, aninhada num declive junto ao rio Tua e com a linha ferroviária do Tua por companhia, era financiada pelo Estado, e com a revolução de 74 os problemas de gestão e de finanças acumularam-se. “Teve administrações de direita e de esquerda, houve turbulência entre o pessoal e na gestão”, descreve António Morgado. Somou-se o surto da emigração, o abandono sucessivo do cultivo das terras, , os trabalhadores que saíram para criarem o seu negócio, “deixou de haver fomento agrícola e fornecimento de planta de viveiro nas aldeias”, vai enumerando António Morgado.
Na década de 80 os Governos ainda tentaram dar um caminho ao complexo, mas o investimento necessário era muito elevado. O espaço foi visitado por grandes grupos como a Sonae e a Amorim, mas sem sucesso, e as câmaras de Mirandela e de Vila Flor acabaram por recebê-lo como “presente envenenado” em 1993, conta António Morgado. O gestor entrou apenas em 1996, quando o espaço já vivia maus tempos, e ver um habitante do lado de fora do portão chamar “vigarista” quando o vê ao longe mostra que as desilusões se foram acumulando dos dois lados da barricada.
Mais vale construir de raiz do que adaptar
E ainda faz sentido reabilitar um complexo como este? António Morgado parece resignado ao que o futuro reserva para o Cachão – e não parece ser bom. “Hoje todas as vilas do interior têm zonas industriais, essas obras das infra-estruturas e as dos projectos são financiadas. Fazer um pavilhão num sítio desses custa 60 ou 70 mil euros já com todas as condições de trabalho e por isso as empresas preferem instalar-se lá”, descreve.
Embora admita (e partilhe) o sentimentalismo de quem ali trabalhou, é com lucidez que afirma que para uma empresa se instalar hoje no Cachão, adaptar o layout de um imóvel (“os telhados são um forno, os edifícios estão divididos por pisos”) e pô-lo a funcionar custa mais do que pagar um edifício de raiz. “Os edifícios já não servem para a função para que forma feitos; a organização da produção é hoje diferente, as máquinas também.” Ainda que, realça, ali haja “muitas condições”: água, vapor de água, água quente, fibra óptica, gás subterrâneo, organização logística. “Os empresários vêm ver mas não ficam…”
Se houvesse mais produção agrícola nas redondezas talvez o complexo tivesse melhores perspectivas, arriscou o deputado do PCP Jorge Machado, questionando as razões para o declínio. O gestor é mais prático: se houvesse mais produção, a concorrência entre empresas e entre os espaços industriais também seria maior e os empresários tendiam a fugir mais para os parques dos municípios, melhor localizados do que o Cachão.
Problemas ambientais
A somar aos problemas que se arrastam há anos, há outro que ameaça prolongar-se alguns meses. Já passaram dois desde que a empresa de reciclagem foi atingida por um incêndio, num domingo à noite de Fevereiro – uma repetição do que sucedera em 2013, noutro edifício do complexo. O espaço devia ser apenas para a transformação de resíduos de cobre e inox em linguetes, num forno, mas há muito que servia também de armazém para muitas toneladas de plástico.
Os fardos ainda continuam a arder e largam revoadas de fumo mal cheiroso. As paredes de blocos de granito do edifício semi-destruído estão escoradas com barras de ferro. O proprietário já foi autuado, cortou relações com as câmaras e a gestão do complexo, comprometeu-se a remover os resídios, e António Morgado diz que não há perspectivas de recuperação do armazém. “Será o BES [Novo Banco]a ficar com aquilo.”
João Oliveira, o líder parlamentar do PCP haveria de justificar a escolha do Cachão para uma visita com o facto de o complexo “confirmas a importância do investimento público para criar condições para a actividade produtiva e resolver problemas ambientais e de acessibilidades” – lembrando também o encerramento de boa parte da linha ferroviária do Tua, que serviu muitos anos o complexo do Cachão. Mas esse investimento tem de ser “adequado às necessidades dos produtores e às condições da região”.
Sobre a linha do Tua, sucessivamente “encurtada” nas últimas décadas, o deputado comunista disse esperar que seja “considerada” a reposição da ligação completa entre a foz do Tua e Bragança no novo Plano Ferroviário Nacional que o Governo PS já se comprometeu a rever (no compromisso político com o PEV). “É um custo que temos de assumir para combater as assimetrias regionais e promover a coesão territorial.”