O partido da mobilidade social (descendente)?
Invocar a ideia de mobilidade social ou encher a boca com a defesa da classe média não pode iludir os portugueses minimamente informados e que têm memória.
A interrogativa que coloquei neste título destina-se a questionar, por um lado, o nome, por outro, a coisa em si. O importante é, evidentemente, confrontar a realidade concreta, mas isso requer uma clarificação prévia do conceito, a fim de mostrar como a sua polissemia repousa em conceções antagónicas de sociedade e de paradigmas de pensamento. Sendo este um tema de que me ocupo há décadas, por razões da profissionais, a reflexão que aqui trago foi-me suscitada quando, ao fazer zapping na TV no primeiro fim de semana de abril, me deparei com o discurso de Paulo Rangel no congresso do PSD, proclamando que “o PSD tem de ser o partido da mobilidade social”. Assim, na esperança de contribuir para um debate mais profícuo por parte de eleitores e filiados no campo da social-democracia (e não só), vale a pena recordar a natureza teoricamente controversa desta noção e ao mesmo tempo interpelar os partidos – incluindo o PSD – que ocuparam o poder em Portugal nos últimos quarenta anos e os impactos de sucessivas políticas em termos de oportunidades de mobilidade social.
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A interrogativa que coloquei neste título destina-se a questionar, por um lado, o nome, por outro, a coisa em si. O importante é, evidentemente, confrontar a realidade concreta, mas isso requer uma clarificação prévia do conceito, a fim de mostrar como a sua polissemia repousa em conceções antagónicas de sociedade e de paradigmas de pensamento. Sendo este um tema de que me ocupo há décadas, por razões da profissionais, a reflexão que aqui trago foi-me suscitada quando, ao fazer zapping na TV no primeiro fim de semana de abril, me deparei com o discurso de Paulo Rangel no congresso do PSD, proclamando que “o PSD tem de ser o partido da mobilidade social”. Assim, na esperança de contribuir para um debate mais profícuo por parte de eleitores e filiados no campo da social-democracia (e não só), vale a pena recordar a natureza teoricamente controversa desta noção e ao mesmo tempo interpelar os partidos – incluindo o PSD – que ocuparam o poder em Portugal nos últimos quarenta anos e os impactos de sucessivas políticas em termos de oportunidades de mobilidade social.
Desde os primórdios da era moderna que os clássicos das ciências sociais (Comte, Tocqueville, Marx, Weber, etc.) colocaram a questão das oportunidades e das desigualdades sociais como os elementos-chave a considerar para a teoria sociológica e a perseguição dos princípios progressistas do Iluminismo (Liberdade, Igualdade, Fraternidade). Fosse através de reformas paulatinas fosse pela revolução, a questão a considerar era, a partir de finais do século XVIII, saber como transformar a sociedade no sentido de uma racionalidade económica capaz de reverter os velhos dogmas medievais, de uma divisão “natural” entre ricos e pobres, poderosos e desapossados, soberanos e povo, para dar lugar à justiça social e à primazia do mérito e do talento de cada um? Já sabemos que as respostas foram divergentes em múltiplos aspetos, mas para compreendermos essa “grande transformação” que, como apontou Karl Polanyi, levou a uma crescente submissão do dinheiro, da propriedade e do trabalho aos desígnios do mercado, em vez da velha regulação por parte da comunidade. Assim, pode dizer-se que desde há mais de duzentos anos que as principais contradições da sociedade moderna se espelham no contraste entre os princípios proclamados e a prática concreta da economia. Lamentavelmente, tornou-se banal ouvir as vozes do poder hegemónico veicular um discurso que deliberadamente invoca a “reforma” enquanto promove a “contra-reforma”, que fala em igualdade de oportunidades enquanto coloca seletivamente os fiéis do respetivo aparelho partidário nos lugares-chave das instituições.
Se aceitarmos a definição simples de mobilidade social como “a passagem de uma condição de classe para outra no curso de vida de cada um ou na sucessão das gerações” (numa linha próxima de Max Weber), tempos que essa mudança pressupõe que vivemos em sociedades abertas, que valorizam o mérito e as competências de cada um, sociedades onde o Estado de direito valoriza o “individualismo positivo” e a sociedade recompensa os mais aptos, nomeadamente por via dos mecanismos de mercado, e lhes oferece oportunidades de promoção em que o status adquirido será (ou deverá ser) mais relevante do que o status herdado. Esse discurso prevaleceu no mundo ocidental (em especial nos EUA) até finais do século passado e tem sido reiterado pelas elites económicas até hoje. Apesar cada vez mais contrariada pela realidade, foi esta orientação que serviu de principal desígnio do liberalismo, enquanto linha de pensamento que sobrevaloriza o princípio do “livre arbítrio” individual em detrimento do fator “sociedade”. Porém, nem mesmo no contexto americano do século XIX onde a lógica mercantilista e a competição individual foram estimuladas até à exaustão, a meritocracia algum dia superou as prerrogativas de status, poder e privilégio, que sempre subverteram a primazia do mérito. Assim, o empoderamento individual resultante da dedicação e do esforço, apesar de importante, jamais foi, por si só, o critério decisivo para conduzir contingentes de trabalhadores – ainda que empreendedores dedicados e “batalhadores” – até ao topo da pirâmide social. Quando muito permitiu-lhes subir os primeiros degraus da escada social.
Ao contrário da célebre proclamação de Margaret Thatcher, a sociedade existe, sim. A noção de “estrutura social” é, pois, um critério fundamental, não só porque a iniciativa individual deriva largamente da “estrutura” e do “contexto” onde o indivíduo se insere, mas acima de tudo porque a grande mobilidade que o mundo ocidental conheceu, principalmente na segunda metade do século XX, foi forjada a partir das lutas sociais e da ação institucional, em particular sob o desígnio do Estado-providência. Foram, portanto, as estruturas organizadas e os processos de estruturação que conduziram as principais mudanças civilizacionais da era moderna, quer por via do combate levado a cabo pelo sindicalismo, quer através da ação reformista das instituições, de resto, elas próprias sempre dinamizadas a partir dos movimentos da sociedade civil. Além disso, quando as estruturas da economia e do emprego se alteraram e o acesso à educação se começou a generalizar a suposta mobilidade tornou-se em parte aparente; isto é, passou a funcionar como aquele movimento em que se sobe uma escada rolante que está a descer (gerando uma ilusão de subida que induz passividade). É verdade que as elites e a burguesia bem-sucedida da sociedade industrial sempre sonharam com cidadãos passivos e uma “classe média” ordeira, e contente com as recompensas mitigadas dos seus empregadores e dirigentes. Porém, as efetivas conquistas no plano dos direitos resultaram, antes de mais, de uma “luta de classes” que – pelo menos durante três décadas – reverteu as desigualdades e consolidou a coesão social através de uma transferência de riqueza do capital para o trabalho cujos benefícios sociais e emprego digno foram compatíveis com o crescimento económico, a competitividade das empresas e o progresso tecnológico. Foi essa a época áurea da mobilidade social ascendente. Exatamente o oposto do que sucede nos últimos anos.
Invocar a ideia de mobilidade social ou encher a boca com a defesa da classe média não pode iludir os portugueses minimamente informados e que têm memória, sejam eles ou não da classe média. A concentração da riqueza no topo tem caminhado de par com o declínio e empobrecimento destes segmentos, tendência que, não sendo um exclusivo do nosso país adquire aqui efeitos agravantes e perigosos (até do ponto de vista da defesa da democracia). Sabemos bem que foram estes os setores mais sobrecarregados com as medidas “austeritárias” prosseguidas nos últimos cinco anos, à sombra da obsessão do “bom aluno”, cegamente alinhado com as opções económico-financeiras neoliberais impostas por Bruxelas. O empobrecimento da classe média portuguesa e europeia tem, na verdade, sido ditado por quem invoca a “mobilidade” e a “mão invisível”, mas omite que a mobilidade social mais consistente que foi alcançada – na Europa ocidental e mais recentemente em Portugal – se ficou a dever ao Estado social e à ação coletiva de trabalhadores e sindicatos (e recorde-se que o sindicalismo que mais se fortaleceu foi o das categorias profissionais mais qualificadas).
É por isso que a social-democrata, se pretende defender a classe média, deveria valorizar tais conquistas em vez da eterna sacralização do mercado e do empreendedorismo individual, cujos resultados estão bem à vista, com o emprego criado nos últimos dez anos – mesmo da geração mais qualificada – povoado por um imenso lastro de precariedade e salários de miséria. No mundo laboral, vivemos um tempo que se assemelha à selvajaria do século XIX, com a (re)mercadorização do trabalho e a proliferação de autênticos exércitos de trabalhadores semi-escravizados. É a isto que a elite bem-sucedida e o novo mundo do marketing chama de “reformas”. Vilipendiar os sindicatos (cunhados de “radicais”… e quais é que não o são?...) tornou-se um novo modismo nesses meios. Em suma, o PSD é, de facto, o partido da mobilidade social… descendente!
Sociólogo, Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra