Nesta dança, há olhares sem filtros e todas as diferenças são importantes
Clara Andermatt e Henrique Amoedo coordenam laboratório de dança inclusiva em Santa Maria da Feira. Esta quarta-feira, há ensaio aberto e tertúlia no cineteatro da cidade
Desde miúda que Isabel Pinto gosta de olhar-se ao espelho para ver como o seu corpo dança. “É uma paixão que tenho e quero realizar este sonho de criança”, conta. Isabel tem 39 anos, síndrome de Down, e é uma das participantes do Lab InDança, laboratório de dança inclusiva orientado pelos coreógrafos Clara Andermatt e Henrique Amoedo em Santa Maria da Feira. É hora de mais um ensaio no palco do cineteatro da cidade. Henrique Amoedo pede atenção à postura dos corpos e à partilha dos espaços naquele piso. Clara Andermatt dá indicações. Colocar o peso do corpo nos dois pés, esfregar a cara, esticar as bochechas, perceber como o maxilar funciona, tocar na cara, nos olhos, no nariz, experimentar expressões e sensações. Fixar olhos nos olhos. Respirar, interagir, imaginar, sonhar.
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Desde miúda que Isabel Pinto gosta de olhar-se ao espelho para ver como o seu corpo dança. “É uma paixão que tenho e quero realizar este sonho de criança”, conta. Isabel tem 39 anos, síndrome de Down, e é uma das participantes do Lab InDança, laboratório de dança inclusiva orientado pelos coreógrafos Clara Andermatt e Henrique Amoedo em Santa Maria da Feira. É hora de mais um ensaio no palco do cineteatro da cidade. Henrique Amoedo pede atenção à postura dos corpos e à partilha dos espaços naquele piso. Clara Andermatt dá indicações. Colocar o peso do corpo nos dois pés, esfregar a cara, esticar as bochechas, perceber como o maxilar funciona, tocar na cara, nos olhos, no nariz, experimentar expressões e sensações. Fixar olhos nos olhos. Respirar, interagir, imaginar, sonhar.
Isabel Pinto está a adorar a experiência que lhe dá oportunidade de ir mais longe no seu sonho de menina. “Está a ser muito engraçado e faz-nos sentir melhor. Sentimo-nos bem na dança que é a paixão de todos nós”, diz-nos. Isa Rodrigues, 29 anos, concorda com a colega. “Está a ser fixe, fiz novos amigos. Gosto. É uma experiência nova”. E assim resume o que lhe está a acontecer e que lhe mostra que há outros caminhos para trilhar.
Os participantes andam pelo palco, encontram um par, sentam-se frente a frente, escolhem expressões que lhes fazem bem, esfregam a cara, o nariz, as orelhas. Riem-se, divertem-se. O Lab InDança é isto mesmo. Momentos que proporcionam, especialmente às pessoas com deficiência, uma multiplicidade de experiências formativas e performativas na área da dança. Momentos que abrem portas improváveis a novos mundos, a várias sensações. Experimenta-se, exploram-se movimentos, corpos, espaços. Sensibiliza-se para o sentido estético e cultural da dança como uma forma de arte.
Clara Andermatt continua a orientar os passos. Coloca música calma, apenas sons, sem vozes. Os 22 participantes deitam-se no chão, os corpos tremem, mas não sem bater com os pés no piso. “Soltem o corpo”, pede a coreógrafa. António Sá Pereira, provedor adjunto para a Mobilidade de Santa Maria da Feira, assiste ao ensaio na sua cadeira de rodas. “Olham-se olhos nos olhos e alguma coisa acontece”, comenta. Olhares sem filtros, que se cruzam e entrecruzam em cumplicidades conquistadas num processo que os aproxima pelas semelhanças e pelas diferenças. “É extraordinário o potencial que esta dinâmica tem para a aproximação, para o enriquecimento mútuo, independentemente das funcionalidades de cada um”, acrescenta. Ali todos são iguais. “A cultura, seja pela dança, seja por outras formas de expressão, tem essa potencialidade de não permitir que as pessoas pensem demasiado nas diferenças, mas que olhem para as suas capacidades”. E é isso que importa para, sublinha, “não quebrar sonhos, não castrar a vontade de iniciar um percurso”.
Sara Oliveira trabalha na Cerci-Feira, tem 14 anos na área de reabilitação, e decidiu participar no Lab InDança. Em boa hora o fez. “Está a ser fantástico”. Para si e para os jovens que acompanha na instituição onde trabalha e que estão neste laboratório. Sente diferenças não apenas no desenvolvimento de competências no trabalho de todos os dias, mas também a outros níveis. “Na imaginação, no trabalho em equipa, na cooperação, na criatividade”. Os agradecimentos surgem naturalmente. A maioria dos participantes nunca pisou um palco. “A câmara da Feira está de parabéns por dar oportunidade de acesso a um bem cultural. É uma oportunidade única”.
Um grupo que se forma
“A diferença, aqui, é mesmo o que interessa. Ver a individualidade de cada um e não focar na deficiência em si, mas sim nas capacidades. Ou seja, o que cada um pode ter de diferente e que pode ser integrado num contexto mais estético-artístico”. Henrique Amoedo, que dirige o Grupo Dançando com a Diferença na Madeira, sabe do que fala. Tem 25 anos de trabalho nesta área. A diferença é um lado da questão, há outro. “Como a dança pode ajudar estas pessoas para que tenham mais autonomia, mais força muscular, coisas tão simples que possam ajudar no dia-a-dia”, acrescenta. E a dança é, para si, o veículo completo para fazer tudo isso, trabalhar a individualidade, trabalhar as diferenças. “E isso acaba por interferir na família e no meio onde estão inseridos e, na outra ponta, pode também interferir num universo mais artístico com novas propostas estéticas”, sublinha.
Clara Andermatt fala da relação com o próprio corpo, de como se encontra uma linguagem diferente de comunicar. Puxa-se pela criatividade dos participantes, fazem-se pequenos exercícios. E tudo importa: a consciência corporal, a consciência dos movimentos, perceber como dois corpos funcionam em conjunto, o desbloqueio físico e social para estar com os outros, a confiança que se precisa e se conquista. O importante é o processo, mais do que o resultado final, e este laboratório não é um projecto pontual, terá continuidade com a criação de um grupo em Santa Maria da Feira, à semelhança do Grupo Dançando com a Diferença - que, de certa forma, pode funcionar como um modelo. “O que é interessante neste projecto - que se pretende que não seja uma coisa pontual e depois acabe, mas que tenha continuidade – é que, dentro deste grupo, possa haver dois grupos: um que possa ter uma formação continuada e outro que já tem um desenvolvimento diferente, por aptidões natas, com o qual se possa desenvolver um trabalho mais artístico, que possa fazer espectáculos, que trabalhe com coreógrafos”, refere Clara Andermatt. “É um grupo que se está a formar, há interesse que isso aconteça, o que é extremamente importante, e há pessoas em lista de espera”, acrescenta.
Conversar, reflectir, partilhar
Esta quarta-feira, pelas 21h30, há ensaio aberto do trabalho deste laboratório de dança inclusiva que começou em Dezembro do ano passado. Não é um espectáculo, mas sim momentos e sensações que se querem partilhar. O público é convidado a assistir a este momento que junta os participantes com e sem deficiência no mesmo palco e a fazer parte de uma tertúlia de reflexão e partilha de um processo em construção que aceita a diferença na criação artística. O coreógrafo Paulo Ribeiro é um dos convidados. José Manuel Figueira, Telmo Ferreira e Mickaella Dantas, bailarinos convidados e que integram o Lab InDança, Susana Ribeiro, professora de dança que acompanha o processo desde o início, também participam nesta conversa, tal como Clara Andermatt e Henrique Amoedo, directores artísticos da residência.
O projecto que permite a pessoas com deficiência a prática de dança junta vários parceiros. Trata-se de uma iniciativa da Câmara de Santa Maria da Feira que envolve a Direcção-Geral das Artes, a Orquestra e Banda Sinfónica de Jovens do Concelho da Feira, o Imaginarius – Festival Internacional de Teatro de Rua da Feira, e a Provedoria Municipal para a Mobilidade.