Um curto poema sobre a Índia ou as sete vidas de um fotógrafo
É um dos fotógrafos contemporâneos mais reconhecidos. Está em Lisboa para mostrar a sua Índia, um “curto poema” sobre o país onde já esteve mais de 80 vezes. É possivel que McCurry tenha no arquivo uma fotografia do templo em que este domingo morreram cem pessoas.
Sabe-se quando se tem pela frente uma fotografia de Steve McCurry, sobretudo se o cenário for a Índia, onde diz ter aprendido a ver e saber esperar. Também nos faz esperar enquanto termina a entrevista anterior. Está sentado numa cadeira com vista para a rua, acena em cumprimento. Minutos mais tarde, apertamos-lhe a mão esquerda — a direita está incapacitada por um acidente em miúdo. É um homem que se demora no olhar. Pedimos ao fotógrafo norte-americano que faça uma visita guiada pelas vinte fotografias que traz a Lisboa (Barbado Gallery).
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Sabe-se quando se tem pela frente uma fotografia de Steve McCurry, sobretudo se o cenário for a Índia, onde diz ter aprendido a ver e saber esperar. Também nos faz esperar enquanto termina a entrevista anterior. Está sentado numa cadeira com vista para a rua, acena em cumprimento. Minutos mais tarde, apertamos-lhe a mão esquerda — a direita está incapacitada por um acidente em miúdo. É um homem que se demora no olhar. Pedimos ao fotógrafo norte-americano que faça uma visita guiada pelas vinte fotografias que traz a Lisboa (Barbado Gallery).
Antes, pede um café, quer saber a marca, justifica-se por ser um forte bebedor. Acompanha com uma miniatura de pastel de nata. Segue o tour. Aponta as mulheres de costas, vestes vermelho-vivo abrigadas por um tronco de árvore numa tempestade de pó no Rajastão. Data: 1983. Dessa série há uma outra imagem que ele frequentemente diz ser a sua eleita. Mas não está nesta exposição. Conhecemo-la de livros. Pedimos que conte a história de uma outra fotografia, parede oposta. Uma criança de colo e a sua mãe, rostos colados ao vidro de um automóvel. Local e data: Bombaim, 1992. “Estava num táxi a caminho do hotel, parámos num semáforo. Era Agosto, época de monção. Eu ali no conforto de um ar condicionado e eles lá fora. Só meses mais tarde percebi que tinha ali uma fotografia.”
Voltamos à sala da entrada, vidraça para a rua Ferreira Borges, de entremeio, numa parede à direita, uma citação de Alberto Moravia em Uma ideia da Índia (edição portuguesa da Tinta-da-China).
Steve McCurry está com 66 anos e como já disse por diversas vezes não se importará se as primeiras linhas no seu obituário forem sobre Sharbat Gula, a menina afegã que fotografou em 1984 e que no ano seguinte estava a comover o mundo na capa da National Geographic. Resume-se a vida de um fotógrafo da agência Magnum, premiado com Medalha de Ouro Robert Capa e várias do World Press Photo, a uma única imagem?
McCurry acaba de chegar do Afeganistão, esteve lá três semanas em trabalho. Há trinta anos, foi o Afeganistão que o levou às páginas do New York Times, da Time, da National Geographic quando assistia à invasão soviética e disfarçava rolos de fotografia nas bainhas de um traje tribal para os fazer passar na fronteira com o Paquistão. Era então um jovem freelancer de 28 anos. Esteve nas guerras Irão-Iraque, nas guerras do Golfo, na ex-Jugoslávia — não se revê na descrição de repórter de guerra mas viveu embedded. Foi dado como morto, espancado, roubado, preso. Também lhe trouxe popularidade. O discurso deste homem relativamente baixo, que veste camisa de ganga sob um casaco de quadrados miudinhos e saca de um boné quando sai para a rua, é muito feito de frases soltas, algumas surpreendentemente sem remate. Dois dias depois da entrevista, mais de cem pessoas morreram num incêndio num templo do estado de Kerala, no sudoeste da Índia.
A primeira vez que foi à Índia, estava com 27 anos, tinha sido fotógrafo do Daily Post, de Filadélfia, e lançava-se como freelancer. O que procurava, uma espécie de “educação em Humanidade”?
Sim, é verdade. Tinha curiosidade sobre essa parte do planeta — já tinha viajado por África, pela América Central, pela Europa. Ia ficar por umas seis semanas. Foram dois anos. E comecei a descobrir sítios e pessoas, histórias às quais quereria voltar num futuro próximo.
Voltou mais de 80 vezes. Que país tinha, ou tem, para revelar?
Bem, o meu trabalho na Índia, as fotografias que se podem ver nesta exposição, são um poema curto sobre o país. Não contam toda a história, não é um trabalho feito para ser publicado numa revista, digamos que são sobretudo as minhas impressões, um olhar poético sobre sítios e tempos que me afectaram. É um país com uma grande profundidade cultural.
Mas nesta Índia que mostra raramente vemos sinais de uma modernidade, quase como se tivesse a intenção de trazer para os nossos dias uma Índia milenar, que o é, mas também estagnada.
A parte da Índia que a torna única, e é isso que me interessa, fala sobretudo de tradição, de uma qualidade antiga de um lugar. De facto, estou pouco interessado no investimento em programas espaciais [refere-se à Organização Indiana de Investigação Espacial, ISRO, na sigla em inglês] ou no avanço tecnológico. Preocupa-me mais um modo antigo de vida.
É preciso estar muito tempo num sítio para o experienciar e à sua cultura?
Tudo é válido. Tanto um fotógrafo como um escritor podem sentir-se validados logo nas primeiras impressões, como ficarem um ano e mesmo assim não entender o que os rodeia. Diria ainda que é comum que se consiga fotografar tanto melhor quanto se tiver conhecimento sobre o que fotografamos. Mas na verdade uma empatia na rua, olhares que se cruzam, pode originar um excelente retrato.
Leu o mais recente artigo do fotógrafo e ensaísta Teju Cole, na revista do NYT?
Sim.
[De forma sucinta, escreve Cole que o mais recente conjunto de trabalhos do fotógrafo, India, reunido em livro pela Phaidon, é o essencial de McCurry. Mas é aborrecido. Popular mas aborrecido, por evocar clichés esquecendo que o garante do carácter único de qualquer país é a mistura do seu passado com o seu presente.]
Quer comentar?
[aponta para a fotografia à entrada da galeria, que mostra táxis de tejadilho amarelo que se cruzam com transeuntes e vendedores de rua] Está a ver isto? Isto é Bombaim, anos 90.
Para si, é só isso a Bombaim moderna?
Também fotografei o programa espacial em Bangalore, onde faziam equipamento de satélites; fotografei fábricas de televisores; moda. Algumas foram publicadas no NYT, na National Geographic. Mas não são visualmente interessantes. Não me interessam laptops assentes no colo nem telemóveis. Aliás, a maioria do meu trabalho na Índia vem de muito antes desse avanço, foi feito entre os anos 80 e agora. Dou-lhe outro exemplo: fiz um trabalho sobre nómadas por ser um modo de vida em vias de extinção, por causa do crescimento urbano, da expansão da rede rodoviária, da explosão demográfica. É isto que me fascina.
A sua família atribuiu-lhe a alcunha de Perpetual Motion (sempre em movimento). Hoje, podemos dizer que estavam certos. O que lhe chegou primeiro, a ideia da viagem ou a fotografia?
A viagem. Quando tinha 19 anos já estava na Europa, trabalhei em restaurantes em Estocolmo e Amesterdão, fui até à Turquia, Israel. Voltei, continuei os estudos, empreguei-me como fotógrafo, isto até me aborrecer e querer voltar a viajar.
Só se consegue fotografar quando se viaja? Podem estar a acontecer histórias no nosso bairro.
Absolutamente. Depende sempre do que nos interessa e de como queremos viver a vida. Fotografar a família, o bairro, a cidade, as ruas, o metro, a paisagem. Ou o Tibete e a Síria. Ou tão somente fazer selfies. Tem sempre a ver com as mesmas questões muito primárias: como quero viver a vida? O que quero ler? Que música quero ouvir? Que alimentos quero consumir?
Disse que gostaria de não ter a sua agenda ao serviço da notícia. Contudo, é como se tivesse passado a vida embedded na frente de várias guerras. É destemido?
Ter medo é bom. Na semana passada voltei do Afeganistão, estive lá em trabalho três semanas. Aquele país é um perigo: há ataques suicidas, raptos, de tudo. Estamos sempre alerta. Prestamos atenção aos comandos que nos chegam do cérebro e é inevitável perguntarmo-nos: é sensato estar aqui, neste lugar onde explodem bombas?
Mas se está a trabalhar tem tempo para fazer essa pergunta?
Sem dúvida! Por que raio é que me pus nesta situação em que vou ser morto por causa de uma fotografia?! Inúmeras vezes.
É um repórter de guerra?
Não me revejo aí. Mas tive a experiência de ver crianças, mulheres, civis a perderem casas, famílias, tudo o que tinham, e é aí que os valores mais altos da vida se revelam e que agradecemos estar vivos. E é aí também que percebemos como uma fotografia e uma reportagem escrita podem ajudar, informar o mundo para que o mundo faça qualquer coisa com essa informação.
Que balanço pode fazer entre fotografia documental e fotografia artística?
Acho que mesmo nas vidas de Robert Capa, Henri Cartier-Bresson ou André Kertész aconteceu que uma fotografia se tornou dominante, universal, publicada e republicada, icónica. Pode até perder o propósito inicial, de contar uma certa história que estava a ser feita para uma revista.
Bem, isso é falar de si próprio. Refere-se à fotografia da menina afegã, Sharbat Gula, que em 1985 fez a capa da National Geographic. Tem uma teoria sobre as razões que levaram a que essa fotografia tivesse a repercussão mundial que conhecemos?
Tinha aqueles olhos hipnóticos e acho que na sua expressão se misturavam emoções várias, entre uma grande dignidade, uma ousadia de se sentir uma sobrevivente sabendo que era uma órfã, refugiada e a viver em condições miseráveis numa tenda. Mas orgulhosa na sua sobrevivência. Quando vemos arte, ou fotografia, muitas vezes atribuímos significados que dizem mais sobre nós do que sobre aquilo a que assistimos. Mas conhecendo um pouco o povo afegão sabemos o quão resiliente pode ser no meio da adversidade. De facto, podemos perguntar o que há de diferente naquela fotografia?! Autenticidade.
Voltaram a encontrar-se 17 anos depois.
Sim. Descobrimos que tinha um irmão, que se tinha casado, que tinha três filhos e vivia numa aldeia no Afeganistão, que o marido trabalhava numa padaria em Peshwar. O que aconteceu é que a pudemos ajudar com dinheiro, fomos benfeitores.
Pode uma fotografia que alcança esta magnitude ser também um colete de força? Toldar a criatividade porque de alguma forma se está sempre a tentar voltar àquele ponto?
Nunca o senti. Estou agradecido por ter tido a oportunidade de a fazer.
Fotografar tornou-se uma prática mais democrática. O fotógrafo Don McCullin diz mesmo que a fotografia foi sequestrada pelo digital e pelo mundo da arte.
É a evolução. A realidade é assim mesmo: vemos as pessoas a fotografarem o que estão a almoçar, os amigos, a si próprios. É verdade que todos temos máquinas fotográficas, ou usamos o telemóvel. Mas nesse telemóvel podemos também escrever um poema, um ensaio, uma peça de teatro, uma canção. Acho fantástico documentarmos as nossas vidas e daqui a vinte anos estarmos a ver a memória do que éramos. É um tesouro!
Estava em Washington Square, no seu escritório, acabado de chegar de um mês num mosteiro no Tibete e viu as Torres Gémeas afundarem depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001. Duas experiências opostas numa vida bastante preenchida. O que lhe sobra fazer?
Viajar, trabalhar, publicar livros — tenho dois na calha, um sobre leitura, melhor, situações de pessoas a ler; outro sobre o Afeganistão.
Quem escolheria para o fotografar a si?
Nunca pensei nisso (risos).