A literatura angolana, o poder, a resistência e a vida
Em dez anos de prisão Luandino Vieira conheceu e escreveu acerca de uma encruzilhada de temas e de problemas: as línguas unificadoras de grupos, a resistência, a força da literatura, o cinema e a violência. Aqui está: Papéis da prisão. Apontamentos, diário, correspondência (1962-1971)
Na entrevista que José Luandino Vieira deu aos organizadores dos Papéis da prisão. Apontamentos, diário, correspondência (1962-1971), eds. Margarida Calafate Ribeiro, Mónica V. Silva, Roberto Vecchi (Caminho), foi questionado acerca da sua “opção estética”. A pergunta surge na sequência de uma alusão aos seus interesses de juventude: desenhar e ver filmes, talvez mais do que escrever. Luandino respondeu não ter “nenhuma opção estética a priori”. Depois, referiu-se a como, na década de 1950, escrevera sobre cinema e futebol, para jornais e revistas de Luanda. As partidas quase não as chegava a ver, os seus relatos eram-lhe contados pelos miúdos que assistiam aos jogos. Quanto à escrita de prisão, ela já acontecia mesmo antes de ser preso, devido ao peso da censura salazarista e à consciência de que aquilo que escrevia não podia ser publicado nem em Luanda, nem em Lisboa. Talvez por isso, Luandino tenha a generosidade de colocar o que escreve ao lado de tantos outros – como os poetas nacionalistas António Jacinto, António Cardoso, Agostinho Mendes de Carvalho e Manuel Pedro Pacavira – que também passaram pelo Tarrafal. Foi nele que o autor conheceu inúmeras restrições à comunicação, com o propósito de isolar aquele que era considerado um perigoso “terrorista”: as cartas que recebia eram censuradas ou não lhe eram sequer entregues, como aconteceu com a correspondência enviada por sua própria mulher. O modelo do Tarrafal correspondia ao modelo dos “campos para concentrar pessoas” (p. 1054). Tinha funcionado desde a década de 1930, mas a sua reabertura por Adriano Moreira, com as suas técnicas da psico, recordadas pelo autor, tem de ser estudada e não pode ser intencionalmente esquecida, como sucedeu, há alguns anos, no artigo de José Barreto sobre o Tarrafal, no suplemento ao Dicionário de História de Portugal, dirigido por Filomena Mónica e António Barreto.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Na entrevista que José Luandino Vieira deu aos organizadores dos Papéis da prisão. Apontamentos, diário, correspondência (1962-1971), eds. Margarida Calafate Ribeiro, Mónica V. Silva, Roberto Vecchi (Caminho), foi questionado acerca da sua “opção estética”. A pergunta surge na sequência de uma alusão aos seus interesses de juventude: desenhar e ver filmes, talvez mais do que escrever. Luandino respondeu não ter “nenhuma opção estética a priori”. Depois, referiu-se a como, na década de 1950, escrevera sobre cinema e futebol, para jornais e revistas de Luanda. As partidas quase não as chegava a ver, os seus relatos eram-lhe contados pelos miúdos que assistiam aos jogos. Quanto à escrita de prisão, ela já acontecia mesmo antes de ser preso, devido ao peso da censura salazarista e à consciência de que aquilo que escrevia não podia ser publicado nem em Luanda, nem em Lisboa. Talvez por isso, Luandino tenha a generosidade de colocar o que escreve ao lado de tantos outros – como os poetas nacionalistas António Jacinto, António Cardoso, Agostinho Mendes de Carvalho e Manuel Pedro Pacavira – que também passaram pelo Tarrafal. Foi nele que o autor conheceu inúmeras restrições à comunicação, com o propósito de isolar aquele que era considerado um perigoso “terrorista”: as cartas que recebia eram censuradas ou não lhe eram sequer entregues, como aconteceu com a correspondência enviada por sua própria mulher. O modelo do Tarrafal correspondia ao modelo dos “campos para concentrar pessoas” (p. 1054). Tinha funcionado desde a década de 1930, mas a sua reabertura por Adriano Moreira, com as suas técnicas da psico, recordadas pelo autor, tem de ser estudada e não pode ser intencionalmente esquecida, como sucedeu, há alguns anos, no artigo de José Barreto sobre o Tarrafal, no suplemento ao Dicionário de História de Portugal, dirigido por Filomena Mónica e António Barreto.
A imensa curiosidade pela leitura
Quanto à dualidade entre a experiência da vida na prisão e o seu projecto literário, Luandino mostra, de novo, pudor em falar deste último, limitando-se a remetê-lo para os Papéis. Quem, como ele, afirma que “o Tarrafal é a prisão em mim” (p. 1049) é demasiado grande para o peditório das complexidades do literário e da conversa de xaxa acerca dos projectos de escrita de que se alimentam críticos, professores universitários e frequentadores de festivais literários. Aliás, é numa passagem bem pedestre que Luandino adverte: “certos dias a descrição, por exemplo, do que se passava geograficamente ou do que se passava na cozinha ou no refeitório, pode iluminar uma observação do que está nos Papéis apenas como nota” (id.). Enfim, se o “projecto literário é anterior ao Tarrafal” (p. 1064), foi a experiência enquanto bibliotecário no Tarrafal e o que ali se praticava em termos de leituras partilhadas que contribuiu muito para a formação literária de Luandino (p. 1065). De facto, os Papéis estão cheios de referências a essas partilhas. As alusões aos passeios que fazia com António Jacinto apontam para um sem número de discussões, sobre a situação em Angola, mas também sobre obras literárias e iniciativas culturais. Os Papéis estão igualmente cheiros de hesitações e de dúvidas acerca do estilo, da forma e do modo como esta poderia condicionar uma escrita comprometida politicamente, num contexto de produção de enormes dificuldades. O medo de desistir, de tudo abandonar, “a preguiça” tantas vezes apontada em jeito de auto-crítica, ao lado de tantas outras adversidades são alguns desses obstáculos. Porém, hoje, na situação de conforto em que nos encontramos, é-nos difícil imaginar o que é escrever na prisão, sem cair no extremo oposto, transformando numa espécie de objecto exótico quem o ousou fazer com tanta determinação.
Enfim, no que respeita às relações da política com a escrita, Luandino afirma que “a questão política está muito antes de começar a escrever” (p. 1052). Remontava ao liceu, onde escolhas e sentimentos de pertença eram já visíveis nos jogos de futebol. Claro que, depois, veio a leitura dos clássicos russos do século XIX, a começar por Gorki, e tantos outros, de Eça a Steinbeck. Mas a educação literária só ocorreu quando Luandino percebeu que era possível inspirar-se no quimbundo dos musseques, criando um registo literário homólogo ao da linguagem popular. E o exemplo de uma tal atenção à linguagem foi-lhe dado por Guimarães Rosa, em Sagarana, livro que Eduardo Ferreira lhe passou (pp. 977, 1053). Por sua vez, Manuel Bernardo de Sousa pô-lo em contacto com o Grande sertão (p. 1067) – que Gaspar Simões desvalorizava, segundo Luandino, devido à “carência de elementos novelísticos afogados ou preteridos pela paixão linguística” (p. 911). Claro que os modelos a que se reporta sugerem sempre quadros de referência mais alargados: da literatura portuguesa, da literatura negra-americana e da brasileira, atribuindo a esta última um peso particular (p. 1065). Ou, na formulação dos Papéis: “para o futuro: a máxima atenção à literatura latino-americana e divulgar a brasileira – parecem-me os melhores paradigmas” (p. 942). Mas um dos aspectos que mais impressiona na leitura dos Papéis é perceber a imensa curiosidade de Luandino pela leitura e as constantes listas de livros que fazia, para alargar os seus quadros de referência de Erskine Caldwell a Pavese, Vaillant, Cardoso Pires, Alejo Carpentier, Vargas Llosa, etc.
Entre os aspectos biográficos que a entrevista não esclarece está o dos estudos universitários. Uma vez nomeado bibliotecário no Tarrafal, por auto-proposta, quando chegaram uns caixotes de livros enviados pela Gulbenkian, Luandino parece ter iniciado o seu curso de sociologia na Universidade de Berkeley, na Califórnia, “as provas tinham que ser feitas na presença de alguém da embaixada ou do consulado norte-americano [...], nos dias em que eu tinha que prestar prova, era levado para a secretaria, fechavam-me, e eu ficava a fazer o meu exame” (p. 1062). Da leitura dos Papéis, Oxford teria sido a primeira opção, pois foi para lá que chegou a escrever uma carta, onde revelava a sua condição de preso político (p. 559). Há ainda referências ao custo elevado das propinas e há correcção de um exame de sociologia que ainda não tinha seguido por falta de correcção (pp. 616, 647). Porém, pouco mais se sabe acerca deste assunto, que uma entrevista poderia ter ajudado a esclarecer. É que são várias as referências de Luandino aos universitários, por exemplo aos companheiros do Tarrafal de “nível universitário” (p. 703) ou aos novos quadros culturais de Luanda – “agora entrarão os universitários em cena” (p. 783). Interessaria também saber por que razão um escritor como Luandino escolheu sociologia, “que é o pior que se pode fazer em solidão” (p. 1062).
Abandonando, agora, o comentário à entrevista, atente-se no modo como Luandino fez da língua, da literatura e da sociologia – enquanto modo de conhecimento do real, na sua totalidade, aberto à história – instrumentos de luta. Repare-se no momento em que o poeta Costa Andrade, com a colaboração de Alfredo Margarido (conforme a indicação deste último em Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa, Regra do Jogo, 1980), escreveu na Présence Africaine (1962), um ensaio no qual procurou teorizar sobre a literatura angolana. Tratava-se de um número de revista dedicado a Angola, em que também participaram Castro Soromenho, que escreveu sobre a rainha Ginga, e Mário Pinto de Andrade, o qual discorreu sobre o nacionalismo africano. Da prisão, em Angola, Luandino considerou que o artigo do “Papo” era “ainda confuso, como confusa é a situação. Creio que só ao desenvolver da acção de libertação de Angola se pode ir, pari passi, teorizando. Devo estar errado. Vou pensar o assunto. E reler o artigo do Papo” (p. 154).
Castro Soromenho na sua correspondência com Mário Pinto de Andrade, apreendida pela PIDE, tinha procurado sublinhar a importância dos aspectos formais, do estilo e da escrita (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE/DGS, proc. 120 E/GT, NT 1435). O pormenor é tanto mais importante quanto se costumam atribuir a Soromenho preocupações exclusivamente neo-realistas e não nos podemos esquecer que, na década de 1960, no exílio, nas universidades do Wisconsin e em São Paulo (USP), foi no ensino da sociologia que ele encontrou o seu ganha pão. Luandino parece reconhecer o carácter pioneiro de Castro Soromenho, numa citação incluída nos Papéis: “Este escritor foi o primeiro que conseguiu transpor para a literatura a verdadeira realidade da terra angolana”, Vértice, n.º 259 (Abril 1965) (p. 860).
Porém, as lutas destinadas a impor um sentido à literatura angolana, fixando o seu cânone, estabelecendo a sua periodização e identificando os seus principais temas e problemas, estavam ao rubro no momento em que Luandino foi preso. O escritor Mário António Fernandes de Oliveira publicara, em 1961, em Luanda, um opúsculo intitulado A sociedade angolana do fim do século XIX e um seu escritor. A já referida inimizade entre ambos teve correspondência no modo como as suas obras se foram organizando, nomeadamente no facto de Luandino sublinhar os contrastes entre a cidade e os musseques, enquanto Mário António, respeitador da cartilha luso-tropicalista que procurava ajustar à história de Angola, escreveu sobre Luanda, ilha crioula (1968).
Dois relatórios da PIDE, de Março de 1966 e 1967, são bem reveladores do poder da literatura, tal como era protagonizada por Luandino. Apesar de se encontrar preso, ter suscitado uma onda de repressão, violência e censura, em 1965, quando lhe foi concedido o prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores, a obra de Luandino, ao lado da de outros escritores angolanos, continuava a ser um instrumento de poder ao serviço dos que procuravam resistir à dominação colonial (ver João Pedro George, O meio literário português 1960-1998, Difel, 2002).
Ambos os relatórios intitulam-se Panorama político subversivo dos musseques (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE/DGS, Delegação de Angola, Proc. 15.11.A / NT 2084, fls. 382-392, 484-489, 532-549). No primeiro deles, considera-se que, nos subúrbios de Luanda, os “destribalizados” continuavam-se a identificar em função das suas etnias, podendo as lutas entre bandos ser explicadas por essas diferenças étnicas ou, então, tais conflitos podem ter sido influenciados por filmes tais como o West Side Story, “em que se aborda o tema da luta de um grupo de porto-riquenhos desocupados contra um grupo de americanos”.
Todavia, segundo o inspector da PIDE autor do relatório, a principal influência do que acontecia nos musseques não tinha origem nos filmes. Ela era devida às obras de Luandino Vieira, ao lado da de escritores tais como Norberto de Castro, Luandino Vieira, Arnaldo Santos, António Cardoso, etc., que faziam a propaganda de uma clivagem entre: a cidade para os europeus e os subúrbios para os africanos. “Esta reivindicação – na citação do relatório do pide – cria uma como que situação de injustiça, que passa da pura nostalgia poética a um estado de revolta íntima, que se concretiza pela prática de vandalismo e desacatos na cidade que consideram ser-lhes negada”. Organizavam-se, então, as chamadas “farras”, especialmente aos sábados, onde o álcool era um estimulante e “os grupos buscam emoções fortes e os desacatos, os delitos e os crimes são a consequência”. Paralelamente, o mesmo inspector da PIDE notava que as sessões de cinema organizadas pelo N’Gola Cine também contavam com africanos, incluindo alguns que já tinham estado presos no Tarrafal. Todos estes grupos das farras ou do cinema falavam em quimbundo e viviam em estado de revolta, análogo ao que tinha precedido os acontecimentos de 1961. Era o que dava a entender “a frequência dos actos de desrespeito, desobediência, hostilidade e até agressão às autoridades, que evolui diariamente”.
No segundo relatório, assinado por Aníbal de S. José Lopes, subdirector da PIDE em Angola, o tom é mais grave, mais elevado de um ponto de vista oficial. Menos etnográfico, sem procurar indagar as influências, literárias ou cinéfilas, que explicariam as reacções nos musseques, mas mais atento à violência, à necessidade de manter um clima de aterrorização, às repercussões internacionais e à cadeia de comando que ligava o MPLA aos mesmos musseques. Do luso-tropicalismo, nem sombra. A provar que, mesmo nos meios oficiais, não havia ilusões acerca dessa ideologia de fachada, que não oferecia elementos de intervenção prática. O que estava em causa era a manutenção da ordem na cidade, caso contrário – paradoxo dos paradoxos – os “chefes terroristas do MPLA” sabiam bem que, se levassem “a efeito qualquer acto terrorista em Luanda”, haveria “um ‘banho de sangue’ que os ‘colonialistas’ provocariam como represália”.
Ou seja, os “terrorristas” seriam vítimas do terror. Pelo menos em 1963, quando o MPLA fora desmantelado, sempre na opinião do subdirector da PIDE, os referidos chefes sabiam bem que era melhor desaconselhar “qualquer acto terrorista em Luanda”. Porém, sustentava o relatório, “não quer dizer que, com vista a uma reacção emotiva de ordem internacional, não pensem agora precisamente o contrário, o que aliás se depreende das instruções que estão a dirigir aos seus adeptos”. O confronto aproximava-se e, como em qualquer discurso institucional, o implícito era que se requeriam mais meios e uma maior atenção devia ser dada aos poderes e agentes que podiam efectuar o referido “banho de sangue”.
Última nota acerca de línguas identificadoras de grupos, resistência aos poderes, literatura, cinema e violência: mesmo que seja difícil reconstituir todas as mediações, será possível reconhecer que Luandino esteve no meio dessa encruzilhada de temas e de problemas. Aliás, as suas múltiplas capacidades linguísticas e a sua sensibilidade literária fizeram com que a tradução para português da obra prima de Anthony Burgess, Laranja Mecânica (1962), que Stanley Kubrick adaptou ao cinema (1971), tivesse sido traduzida para português por Luandino (Edições 70, 1974). Ele conhecia bem o modo como a violência perpetrada por grupos se cruzava com o recurso a uma linguagem própria. Talvez por isso mesmo, tenha conseguido realizar uma tradução notável, para a qual teve de inventar uma linguagem, destinada a substituir o dialecto do gang de jovens que se encontra no centro do romance.