Dançar a overdose da linguagem – e outros pecados da arte contemporânea

Em Auto Ficto Reflexo, Adam Linder e Justin F. Kennedy desmontam as hierarquias, a vaidade e o excesso da linguagem na arte contemporânea. Sábado e domingo em Serralves, entre rimas de rap.

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SARAH BOHN

Desmontar os níveis, as hierarquias e os discursos por trás da produção cultural tem sido o jogo preferido de Adam Linder (n.1983) nos últimos anos – um jogo que ele leva até ao fim, de sapatilhas brancas e roupa à clubber berlinense, em Auto Ficto Reflexo, o seu mais recente trabalho, co-criado e interpretado com Justin F. Kennedy.

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Desmontar os níveis, as hierarquias e os discursos por trás da produção cultural tem sido o jogo preferido de Adam Linder (n.1983) nos últimos anos – um jogo que ele leva até ao fim, de sapatilhas brancas e roupa à clubber berlinense, em Auto Ficto Reflexo, o seu mais recente trabalho, co-criado e interpretado com Justin F. Kennedy.

É apresentado em estreia nacional em Serralves este fim-de-semana, numa espécie de palco 2.0 partilhado com o público, onde o coreógrafo australiano, a viver e a trabalhar entre Berlim e Los Angeles, procura simular um jogo de computador (que por vezes parece uma espécie de discoteca) construído através de exercícios linguísticos, com rimas de rap incluídas – e há um sentido quase dramatúrgico na forma como intersecta o som, a luz e a coreografia (os anos de trabalho com Michael Clark e Meg Stuart não passam despercebidos).

“As minhas últimas criações têm sido à volta da ideia da formação das linguagens físicas e verbais, e do seu valor”, explica Adam Linder. “A mediação como uma necessidade do trabalho artístico também tem sido um tópico regular. Em Auto Ficto Reflexo pego na linguagem codificada que permeia a arte e converto-a em dança.”

Tal como um jogo, a performance, conduzida por instruções de uma voz-off, está dividida por níveis, focados nos vários patamares do backstage da produção artística. Entre eles, a retórica político-cultural, o jornalismo e a crítica, as directivas institucionais e dos programadores, a biografia e fetichização do artista. Na sua maioria, os textos usados (aliás, falados e cantados) são originais, tal como as músicas, mas há também um texto fundador de Baudelaire sobre o papel do crítico e colagens de artigos de várias publicações.

Ironizar

Há uma clara ironia em Auto Ficto Reflexo e uma tentativa de desmontar a jactância, os complexos de superioridade e a suposta seriedade da arte contemporânea e respectiva máquina política e programática (Give it a name and it’s sold é o título do quarto nível). Contudo, o coreógrafo – que se encontra num lugar bastante confortável na cadeia alimentar da produção cultural (é representado pela galeria berlinense Silberkuppe e programado por vários museus, bienais e feiras de arte, como a Frieze Art Fair de Londres) – diz que não pretende operar qualquer sabotagem, do tipo destruir por dentro.  

“O interesse aqui é demonstrar e pensar sobre as nuances, as convenções e o excesso da linguagem que é utilizado neste meio. Na coreografia, quando vês que o corpo está a tentar mover-se livremente através desta linguagem, notas que há uma espécie de excesso que é produzido. Quando isolas tudo isto percebes o quão poderosa é a linguagem e como há uma necessidade tão grande de produzir significado em torno do trabalho dos artistas”, justifica Linder. “É uma constatação: isto é onde estamos e este é o jogo que vamos jogar. Não quero fazer nenhuma crítica em particular, mas acabo por propor um modo de ver e uma determinada ética”, admite.

Adam Linder pertence a uma geração recente de coreógrafos que tem reflectido, a partir do circuito de museus e galerias de arte contemporânea, sobre o lugar do corpo performativo no organograma da programação cultural e o seu valor social e económico (Alexandra Bachzetsis, Trajal Harrell e Isabel Lewis são outros exemplos, os primeiros dois já programados por Serralves). Uma geração que também faz prova do interesse galopante por parte das instituições de artes visuais em programar dança e da vontade de muitos coreógrafos em pertencer a este meio – a entrada da dança neste mercado feroz tem aliás provocado discussões inflamadas, entre acusações de que os coreógrafos estão a ceder à mercantilização (Linder faz “serviços coreográficos”, performances que são alugadas à hora e passíveis de serem activadas em qualquer lugar) e de que ambicionam outro tipo de legitimação.

“Na minha opinião, é muito condescendente tentar proteger a dança de uma dinâmica de mercado, para não dizer utópico. A dança, pelo menos no último século, sempre teve valor comercial. É uma questão de haver mais transparência – e, no meu caso, também de procurar outros formatos”, argumenta Adam Linder.

E essa procura de “novos formatos” inclui também tentar “quebrar com a formalidade institucionalizada” do teatro. O que, para Linder, formado segundo a disciplina rígida da Royal Ballet School, significa criar uma coreografia feita de danças de genealogias múltiplas, danças que muitas vezes são encaradas pelo circuito de artes performativas, ainda demasiado branco e eurocêntrico, como algo menor, como entretenimento descartável. Neste caso, recorre a vocabulários de movimento do hip-hop, como o gliding e o waving, com o qual tem uma relação séria desde 2012 (escreve e produz canções, inclusive).

Contudo, estas danças são estilizadas e reinterpretadas de uma forma conceptual, o que gera sempre o risco de apropriação cultural. “Eu tento ser honesto sobre de onde vem o material que uso e não o tento emular nem apoderar-me dele”, diz o coreógrafo. “Procuro transformá-lo noutra coisa, à minha maneira.”