Parlamento entende-se para criar comissão eventual sobre a transparência

Propostas que apertam a malha das incompatibilidades e do controlo do património dos cargos políticos e públicos não serão votadas esta sexta-feira. Vão ser analisadas nos próximos meses numa comissão própria. PS quer novo regime em vigor até ao fim do ano.

Foto
Rui Gaudêncio

Será desta que um novo regime da transparência consegue chegar a bom porto? A porta, pelo menos, está bem aberta, tanto pela esquerda como pela direita parlamentar. Os partidos conseguiram entender-se para aprovar, esta sexta-feira, a criação de uma comissão eventual para o reforço da transparência no exercício de funções públicas, e para fazer descer, sem votação, já a esta comissão as cinco propostas do PS, BE e PCP sobre os regimes de controlo do património e das incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e públicos que também neste dia são debatidas na Assembleia da República.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Será desta que um novo regime da transparência consegue chegar a bom porto? A porta, pelo menos, está bem aberta, tanto pela esquerda como pela direita parlamentar. Os partidos conseguiram entender-se para aprovar, esta sexta-feira, a criação de uma comissão eventual para o reforço da transparência no exercício de funções públicas, e para fazer descer, sem votação, já a esta comissão as cinco propostas do PS, BE e PCP sobre os regimes de controlo do património e das incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e públicos que também neste dia são debatidas na Assembleia da República.

As únicas dúvidas que persistem são a duração que a comissão deve ter e o seu objecto concreto de trabalho. Porque disso depende a entrada em vigor de parte das normas. O BE gostaria de ter os trabalhos encerrados até ao Verão, o PS admite que o novo regime possa estar pronto até ao final do ano. Todos se entendem que devem ser ouvidos especialistas do meio académico e da sociedade civil e que se deve olhar para o direito comparado europeu nesta matéria.

O PS propõe que a comissão funcione por um mínimo de 180 dias; o Bloco é mais apressado e deseja que os trabalhos estejam concluídos no início do Verão, o que implicava um prazo de metade do tempo. Será também necessário acertar, mais à direita, o objecto da comissão, já que além do regime da transparência, os socialistas querem que esta avalie a pertinência de se fazer “legislação complementar”, como é o caso do regime de lobbying, ou de medidas de prevenção e combate à corrupção.

À “urgência para qualificar a democracia” de Pedro Filipe Soares, o líder do grupo parlamentar do BE  - que diz que “cada dia que o país passar sem novas regras sobre a transparência é mais um dia neste regime com suspeição entre interesses públicos e privados e em que casos dúbios se vão acumulando” -, o deputado socialista Pedro Delgado Alves contrapõe a preferência por “fazer bem feito, ainda que demore mais”. A questão do tempo da comissão ainda não se colocou formalmente – e Pedro Delgado Alves remete uma análise para quando for confrontado com ela. Para já, prefere realçar o esforço da “sistematização de normas dispersas por legislação e entidades”, numa “manta de retalhos” difícil de gerir pelos visados e de fiscalizar pelos órgãos competentes.

A faísca para esta urgência de legislar sobre o tema foi a controversa contratação da deputada e ex-ministra das Finanças como administradora não executiva do grupo britânico gestor de dívida, Global Arrow. Jorge Machado, do PCP, partido que reapresentou a proposta que já foi chumbada na legislatura passada, diz mesmo que, se o seu diploma tivesse então sido aprovado, Maria Luís Albuquerque nunca poderia trabalhar para o mesmo sector que tutelou há tão pouco tempo.

Património mais fiscalizado

Se o regime de incompatibilidades se afigura mais pacífico, o principal desafio será conseguir fazer uma proposta para penalizar o enriquecimento injustificado que caiba nos limites constitucionais. Já é longo o historial de tentativas de criminalização do enriquecimento injustificado – a que começou por se chamar "ilícito" -, incluindo as vezes em que acabou “chumbado” pelo Tribunal Constitucional. Nas propostas anteriores cabia à pessoa a quem era detectado um acréscimo de património superior ao seu rendimento declarado provar a sua proveniência e considerava-se à partida que se tratava de enriquecimento ilícito.

Para contornar essa dificuldade, o PS prefere não entrar pela via da criminalização – que foi considerada inconstitucional - e inscrever na lei que quem tem um aumento de património superior ao seu rendimento incorre num crime de desobediência porque não declarou tudo o que deveria, e passar a taxar esse património em excesso não a 60%, como agora, mas a 80%. Já a proposta do BE, que foi apresentada fora do prazo para a discussão de hoje e que, por isso, acabará por ser remetida já à nova comissão, insiste na criminalização, reforçando os poderes da Autoridade Tributária para fiscalizar todos os contribuintes com rendimentos anuais de pelo menos 25 mil euros – se apresentarem um aumento de património pelo menos 20% superior ao rendimento declarado, a AT pedirá esclarecimentos e, se estes não chegarem ou forem insuficientes, poderá desencadear um processo judicial e taxar esse património a 100%.

No campo da transparência, PS e BE propõem o alargamento da informação e do leque de titulares de cargos públicos que a têm que dar, que passa a incluir os titulares dos órgãos executivos das câmaras municipais e freguesias (nestas últimas desde que tenham dez mil habitantes), das comunidades intermunicipais e áreas metropolitanas, e membros dos gabinetes de ministros e secretários de Estado e ainda dos consultores, representantes e peritos dos processos de concessão ou privatização. Essa informação tem que ser dada no início, no fim e até três anos (PS) ou seis (BE) depois do exercício do cargo. Quem não o fizesse já arriscava perder o mandato ou cumprir pena de prisão, mas o BE alarga isso ao Presidente da República e ao do Parlamento e ao primeiro-ministro. O BE quer também que passem a ser declarados não só os bens de que o titular do cargo público é proprietário mas também aqueles que usa não sendo seus – como casas ou carros.

Na área das incompatibilidades, o BE propõe a criação de uma Entidade de Transparência dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos que funcionaria no âmbito do Tribunal Constitucional, e que tomaria a seu cargo as funções actuais do TC de coligir a informação sobre o património e rendimentos destes responsáveis do Estado e algumas do Parlamento, como a informação sobre os interesses dos deputados. Para o PS esta é uma proposta “razoável”. Os três partidos propõem o alargamento do chamado período do nojo de três para cinco anos (seis, no caso do BE) e deve ser aplicado a qualquer cargo em entidades privadas com actividade no sector que tenha sido tutelado por esse titular de cargo político. A única excepção é o regresso à empresa e actividade anterior a essa função pública.

Quanto aos deputados, o BE defende a sua exclusividade de funções, enquanto PS e PCP alargam o âmbito das incompatibilidades de funções – como é o caso das quotas em sociedades de advogados, classificadas pelo PCP como as “offshores dos deputados”, que passam a ser proibidas aos parlamentares. “Acabam-se os ‘se, se, se’”, diz o comunista Jorge Machado. Tal como é proibido terem directa ou indirectamente (através de familiares) quotas de mais de 10% em empresas que tenham qualquer negócio com o Estado.