Dinheiro das pensões para a construção civil?
O país vai fechar para obras. E como serão pagas essas obras? Com o dinheiro das pensões, naturalmente.
Há ideias que não lembram a ninguém. E mesmo assim há sempre alguém que se lembra delas. Usar os descontos que todos nós fazemos para a Segurança Social para fazer obras de reabilitação em prédios degradados é uma delas. E de quem foi a ideia? Do Governo, naturalmente, que acha que todos os problemas são resolvidos atirando dinheiro para cima deles, dinheiro que além do mais não tem e que vai buscar aos reformados. Depois venham queixar-se da insustentabilidade da Segurança Social e dizer que é preciso cortar o valor das pensões ou aumentar a ideia da reforma ad aeternum.
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Há ideias que não lembram a ninguém. E mesmo assim há sempre alguém que se lembra delas. Usar os descontos que todos nós fazemos para a Segurança Social para fazer obras de reabilitação em prédios degradados é uma delas. E de quem foi a ideia? Do Governo, naturalmente, que acha que todos os problemas são resolvidos atirando dinheiro para cima deles, dinheiro que além do mais não tem e que vai buscar aos reformados. Depois venham queixar-se da insustentabilidade da Segurança Social e dizer que é preciso cortar o valor das pensões ou aumentar a ideia da reforma ad aeternum.
Curiosamente, os dois protagonistas nesta história são o actual e o ex-presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina e António Costa. O primeiro apresentou esta semana um programa, com pés e cabeça, de construção e reabilitação de cinco a sete mil casas em 15 zonas na cidade de Lisboa, com o duplo objectivo de colocar no mercado imóveis com rendas acessíveis para os mais jovens e reabilitar património da autarquia. A ideia de Fernando Medina é simples e aparentemente eficaz: a câmara entra com os terrenos e imóveis a precisarem de obras de reabilitação e os privados com o dinheiro para a construção ou para as obras de melhoria. Durante um período de concessão, previsivelmente de 35 anos, esses investidores privados ficam com direito a receber o valor das rendas desses imóveis e fazem a manutenção das casas até ao final do contrato, altura em que devolvem o imóvel à autarquia. As rendas ficarão fixadas à cabeça e Medina garante que serão abaixo do valor de mercado e abaixo do valor do salário mínimo nacional.
É uma espécie de parceria público-privada (PPP) em que naturalmente a câmara tem o custo de oportunidade de não poder usar esses imóveis para outra finalidade, mas em que transfere o risco do negócio para o privado. E, no final, ainda recebe o património de volta em boas condições. Bem diferente é o programa semelhante de reabilitação urbana que foi apresentado esta semana pelo Governo de António Costa, em que o risco do negócio aparentemente é transferido para o sistema de previdência. É a concretização de uma promessa eleitoral do PS e que mostra uma visão instrumental que alguns socialistas aparentemente têm da Segurança Social. Já se percebeu que, para o PS, o dinheiro das pensões é uma espécie de "pau para toda a obra". E, neste caso da reabilitação urbana, é literalmente "para toda a obra".
Primeiro foi a ideia peregrina de baixar a TSU, a parte da contribuição para a Segurança Social paga pelos trabalhadores, em troca da descida do valor das pensões futuras, como forma de espevitar o crescimento económico. Ideia que só não avançou porque o PS perdeu as eleições e os comunistas e bloquistas tiveram o bom senso de travar essa intenção para não descapitalizar a Segurança Social. Agora, o Governo vem apresentar um programa de reabilitação para colocar imóveis a preços acessíveis no mercado, à laia do que quer fazer Fernando Medina em Lisboa. A engenharia financeira é parecida: o Estado, as câmaras, as IPSS e até os privados podem entregar os seus imóveis a um fundo que, por sua vez, trata de os recuperar e de os colocar no mercado, segundo o Governo, com rendas acessíveis e abaixo do preço de mercado. Em troca recebem unidades de participação do fundo e, ao longo dos anos, previsivelmente dez, vão recebendo dividendos gerados pelas receitas das rendas e pelo produto da eventual venda de imóveis, já que os privados têm a opção de os recomprar no final do período do investimento.
Só que, ao contrário da ideia de Fernando Medina, parte dos 1,4 mil milhões de euros que serão usados pelo Governo para a reabilitação urbana virão do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) – uma espécie de fundo de emergência que é financiado pela quotização dos trabalhadores por contra de outrem e que, numa situação de aperto, tem a responsabilidade de assegurar o pagamento das pensões por um período de dois anos. É verdade que, nos últimos anos, este fundo, de mais de 12 mil milhões de euros, foi completamente adulterado e colocado ao serviço quase exclusivo da compra de dívida pública portuguesa, ignorando as boas regras de gestão que recomendam não pôr todos os ovos no mesmo cesto. Mas daí até o pôr ao serviço da construção civil e da reabilitação urbana, sem garantia de retorno, já que as rendas serão fixadas abaixo do preço de mercado, é um risco desnecessário para a Segurança Social. E o mercado da reabilitação tem dado sinais de recuperação nos últimos anos: se há 20 anos a reabilitação representava 4% dos fogos concluídos (versus a construção nova), em 2005 representava 8% e, no ano passado, esse valor já era de 25%. E já existe um sem-número de programas públicos com essa finalidade: o IFRRU 2020, que usa fundos comunitários, o Casa Eficiente, que vai usar verbas do plano Juncker, o programa Reabilitar para Arrendar, e agora o de Fernando Medina para Lisboa. Dispensava-se mais um e ainda por cima com o dinheiro das pensões.