Ministro todo-o-terreno despistou-se aos quatro meses
A dimensão um tanto anedótica da saída de João Soares arrisca-se a esconder o essencial: que ocupava um lugar que não terá desejado e que o seu ministério era pouco mais do que uma fachada, sem meios e sem autonomia para fazer a diferença.
Quando João Soares foi anunciado como ministro da Cultura do novo Governo de António Costa, a 24 de Novembro do ano passado, a surpresa foi considerável, não só porque o seu nome nunca fora avançado como possível candidato ao cargo, mas sobretudo porque o próprio dera abundantes sinais, nos dias anteriores, de que esperava dirigir o Ministério da Defesa.
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Quando João Soares foi anunciado como ministro da Cultura do novo Governo de António Costa, a 24 de Novembro do ano passado, a surpresa foi considerável, não só porque o seu nome nunca fora avançado como possível candidato ao cargo, mas sobretudo porque o próprio dera abundantes sinais, nos dias anteriores, de que esperava dirigir o Ministério da Defesa.
Várias explicações surgiram nos dias seguintes para justificar esta mudança de planos, e a mais consensual na imprensa foi a de que Costa estaria a contar com Paulo Cunha e Silva para o cargo, e que, após a morte inesperada do vereador da Cultura do Porto, a solução encontrada fora deslocar João Soares para o restaurado Ministério da Cultura. Uma versão nunca cabalmente confirmada pelos vários protagonistas e que, de resto, não parece especialmente credível: não teria sido mais fácil a Costa encontrar outro ministro da Cultura (sabe-se que também tentara o encenador Emmanuel Demarcy-Mota, actualmente director do Théâtre de la Ville, em Paris) do que impor a João Soares um ministério que este aparentemente não esperava nem desejava, e ter ainda de encontrar outro nome para a Defesa?
Certo é que João Soares não apenas aceitou tutelar a Cultura, mas parece agora claro que o fez sabendo que não iria dispor dos meios necessários para cumprir sequer os objectivos traçados pelo próprio programa do PS, que criticava duramente a “suborçamentação dramática” a que o Governo anterior submetera o sector e se propunha reverter a sua “política precipitada” de fusões institucionais.
Desde os primeiros dias no cargo que, em sucessivas ocasiões, João Soares foi deixando claro que não contava com grandes folgas financeiras. Numa das suas primeiras intervenções públicas, na apresentação, em Viseu, do programa do centenário do Museu Nacional Grão Vasco, meteu mesmo uma “cunha” ao bispo viseense e ao cónego do Cabido da Sé para o ajudarem “no milagre de conseguir, ao nível do poder político e do poder económico, os recursos que são necessários”. E se não podia negar a exiguidade das verbas, menorizava o problema, defendendo que o orçamento não era um indicador “decisivo” e considerando mais relevante o modo como este era executado, como afirmou numa entrevista ao Expresso, e confiando que o contacto directo com os agentes culturais no terreno poderia ajudar a desbloquear muitas situações.
E há que reconhecer que, nos escassos quatro meses e tal do seu mandato, foi um verdadeiro ministro todo-o-terreno, com um ritmo de visitas pouco menos do que frenético. Esta manhã, se não se tivesse demitido, teria estado no Museu do Côa, onde era esperado, e que terá agora de esperar pelo próximo ministro para ver resolvida a situação financeira reconhecidamente dramática em que se encontra a Fundação Côa Parque, que Soares dera indícios de querer extinguir.
“Tenho estado no terreno, essa tem sido a minha postura”, dizia ainda na referida entrevista ao Expresso. A estratégia assegurava-lhe alguma omnipresença mediática, mas essa visibilidade envolvia também riscos óbvios, sobretudo para alguém que manifestamente não pode ser considerado um modelo de contenção verbal.
Num resumo um pouco cruel, talvez se possa dizer que o mandato desta espécie de ministro BTT se resume a dois momentos: primeiro esbarrou-se contra o Centro Cultural de Belém, com figuras de todos os quadrantes a criticarem a deselegância com que afastou António Lamas, e agora, no episódio das prometidas bofetadas a Augusto M. Seabra e Vasco Pulido Valente, despistou-se definitivamente, percebendo que já não tinha condições para regressar à pista.
Um ministro sem Ministério
A brevidade do mandato, e ainda a circunstância de o Orçamento de Estado ter sido aprovado há menos de um mês, e de só há dias ter entrado formalmente em vigor, torna difícil avaliar-se com isenção a sua passagem pela Cultura. Mas nestes quatro meses nunca deu sinais de ter uma política consistente para o sector, nem mesmo de pretender cumprir algumas das principais ideias assumidas no próprio programa eleitoral socialista, como a reversão das fusões impostas pelo governo de Passos Coelho em sectores como o do património e museus ou dos arquivos e bibliotecas.
E as nomeações que teve tempo de fazer não são tão inquestionáveis que o ponham a salvo de críticas. Independentemente do que se possa pensar sobre Elísio Summavielle, não se percebe que o ministro demita António Lamas por achar que os seus planos eram “desconformes à missão e ao papel do CCB”, ou seja, que comprometiam a sua função prioritária de instituição programadora e divulgadora de criação artística contemporânea, e depois escolha alguém cujo currículo é todo ele feito na administração do património.
E o currículo de Isabel Botelho Leal, vinda das Relações Internacionais do Parlamento, parece justificar tão pouco a sua nomeação como secretária de Estado da Cultura que ocorre perguntar se João Soares não teria inicialmente pensado nela para o assessorar na Defesa.
Mas talvez mais relevante do que a sua escolha para o cargo é o facto de, em boa verdade, a secretária de Estado não ter propriamente uma secretaria de Estado para dirigir, tal como João Soares foi em boa medida um ministro sem um verdadeiro ministério, já que a situação herdada do Governo anterior, com a desarticulação da tutela e a passagem de uma série de competências para a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros nunca chegou a ser corrigida. E isso é, antes de mais, responsabilidade do próprio António Costa, cuja desatenção ao sector, até tendo em conta o programa eleitoral do PS, chega a ser surpreendente.
É verdade que a existência de um titular com assento no Conselho de Ministros poderia, por si só, fazer alguma diferença, e o peso político e o traquejo de João Soares prometiam facilitar-lhe a tarefa. Mas o ministro, talvez por lhe ter sido oferecido um lugar que não desejou, nunca pareceu empenhado em lutar por um verdadeiro Ministério da Cultura, e limitou-se a ir tentando resolver alguns problemas mais prementes.
Melhor ou pior, resolveu a questão do CCB – reconheça-se que, falta de diplomacia à parte, não seria muito plausível que outro qualquer ministro nomeado por António Costa pudesse manter António Lamas e subscrever o seu Plano Estratégico para o Eixo Belém-Ajuda –, e estaria a ponto de solucionar a questão das seis pinturas de Vieira da Silva depositadas na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, em Lisboa, cuja permanência no país tentou garantir propondo aos proprietários, os herdeiros do banqueiro Jorge de Brito, uma permuta envolvendo terrenos.
Já no que respeita à colecção Miró, limitou-se a sugerir que gostaria de a ver exposta em Serralves, o que, além do mais, poderá ser visto como uma tentativa, mesmo que bem-intencionada, de interferência na direcção artística da instituição.
E é provável que se preparasse para anunciar uma solução para o Museu e Parque do Côa, que previsivelmente passaria pela sua integração na tutela directa da Direcção-Geral do Património Cultural.
Não há muito mais a assinalar no seu curto consulado, salvo o facto de vir confirmar, mais uma vez, a aparente maldição que pesa sobre o Ministério da Cultura. Desde que Manuel Maria Carrilho abandonou o segundo Governo de Guterres em Julho de 2000 – tendo em conta o orçamento de que então dispunha, parece quase irónico lembrar que saiu alegando que deixara de ter meios financeiros para levar por diante a política que traçara –, nenhum dos seus sucessores durou muito. E se houve erros de casting mais óbvios do que outros, nem o PS nem a direita parecem ter voltado a encontrar um ministro do qual se possa dizer que tenha feito um mandato relevante. E nos últimos 16 anos, de José Sasportes a João Soares - e contando com os secretários de Estado Francisco José Viegas e Jorge Barreto Xavier -, o país teve nada menos do que dez.
Notícia corrigida às 13h26 para precisar que quando se fala de dez ministros da Cultura pós-Carrilho se está a contabilizar os secretários de Estado que dirigiram o sector no Governo de Passos Coelho.