“Se o Estado Islâmico for erradicado, outra coisa pior ocupará o seu lugar”
Andrew Hosken, jornalista, correspondente da BBC, escreveu o livro Império do Medo - No Interior do Estado Islâmico, editado em Portugal pela Planeta. Explica as diferenças entre este jihadismo e a Al-Qaeda, que tinha “um certo tipo de escrúpulos”.
O Estado Islâmico (EI) é uma organização genocida, fruto de um “casamento no Inferno” entre os radicais islamistas da Al-Qaeda e o partido Baath do Iraque, diz o jornalista Andrew Hosken. Quanto mais territórios perderem, mais e piores ataques terroristas lançarão no Ocidente. Se o líder for morto, emergirá outro pior, e se forem derrotados renascerão como um cancro.
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O Estado Islâmico (EI) é uma organização genocida, fruto de um “casamento no Inferno” entre os radicais islamistas da Al-Qaeda e o partido Baath do Iraque, diz o jornalista Andrew Hosken. Quanto mais territórios perderem, mais e piores ataques terroristas lançarão no Ocidente. Se o líder for morto, emergirá outro pior, e se forem derrotados renascerão como um cancro.
É estranho dizer isto, mas precisamente quando começávamos a compreender a Al Qaeda, surge o Estado Islâmico. É já possível, hoje, compreender o fenómeno?
O problema é que o EI não é uma organização conduzida pela pura ideologia, como era a Al-Qaeda. Há a ideia do Califado, que é muito forte, e está no Corão. Mas, além disso, o que vemos é essencialmente a arrogância. Não há maior arrogância do que anunciar que se vai matar alguém, e depois matar, sem nenhuma razão compreensível. Acharem que têm o direito de tirar vidas.
Os líderes da Al-Qaeda eram intelectuais. Sabiam explicar o que queriam.
Sim, eram capazes de atirar aviões contra edifícios, matando milhares de civis, mas tinham limites, e um certo tipo de escrúpulos. Por exemplo, ficaram zangados quando a chamada Al-Qaeda do Iraque, em 2004 e 2005, exibia gravações matando muçulmanos xiitas. A direcção da Al-Qaeda escreveu-lhes dizendo que não deviam matar muçulmanos. Que tinham de parar, porque estavam a enfurecer o mundo islâmico. Tomei conhecimento de várias cartas que muçulmanos dirigiram à Al-Qaeda queixando-se dos abusos e do extremismo do EI.
A Al-Qaeda não era uma organização genocida. O EI é. Se tiver oportunidade, matará todos os xiitas. Só no Iraque, seriam 20 milhões de pessoas. Serão capazes de usar qualquer tipo de arma. E o pesadelo é que já têm armas químicas. É certo que a Al-Qada matou 3 mil pessoas em Nova Iorque, num só dia. Mas o EI já matou dezenas de milhares, ou centenas de milhares, em 13 anos.
Mas qual é a ideologia do EI?
É uma amálgama de islamismo com o patido Baath. É uma espécie de casamento feito no Inferno, de dois movimentos totalitários, fascistas.
Os generais e militares do Baath integraram as estruturas do EI apenas por interesse, ou houve realmente uma mescla ideológica?
Sim, o Baath é uma parte muito importante do EI.
Mas o Baath era um partido nacionalista. Os ex-militantes já não querem saber da nação iraquiana?
Não querem saber, porque já não é o seu país. Está dominado pelos xiitas, e eles foram humilhados e expulsos das instâncias do poder.
Mas a sua ideologia era laica, arabista socialista. Como conciliam isso agora com o islamismo radical?
Abu Bakr al-Baghdadi disse: A Síria não é para os sírios, o Iraque não é para os iraquianos. Essa frase é uma bela e honesta síntese do seu pensamento. O que queria dizer era: nós não queremos saber de nações, nem do movimento do Despertar dos sunitas no Iraque, ou de os sunitas terem assento no Governo de Bagdad. Só queremos saber do nosso califado. E quem se opuser é assassinado. Para os generais baathistas, o objectivo é voltarem a ter poder. Pode ser um pouco diferente, porque agora não podem ir beber uma cerveja livremente, embebedar-se e abusar sexualmente de mulheres… quer dizer, isto, por acaso, até podem fazer. Ainda mais. De resto, para eles, tudo é igual ao tempo de Saddam Hussein. Podem mandar em tudo, matar, torturar, decapitar.
Fazem-no em nome do EI, como dantes faziam em nome do Iraque?
Sim. Mas não é assim tão diferente. Os media falam muito dos combatentes estrangeiros, levam as pessoas a pensar que se trata de uma organização transnacional. Mas não é. Há muitos estrangeiros, mas o EI é basicamente uma organização iraquiana. É assim desde 2006, quando Omar Al-Bagdadi declarou o Estado Islâmico do Iraque, e se auto-proclamou califa.
Eles estão a organizar o território à semelhança do Iraque de Saddam Hussein?
Sim, é o mesmo conceito. Baseado na violência, na tortura. É interessante verificar que quando o EI chega a um novo território conquistado, primeiro vão os jihadistas, os combatentes, mas logo a seguir chegam os agentes da polícia secreta, os juízes, e começam logo a implementar os tribunais, a polícia, as prisões, os serviços de informações. Imediatamente, isso faz logo parte da administração.
Mas a lei no tempo de saddam era diferente, não era a sharia rigorosa.
Não, mas a ideia de poder era a mesma. Dantes era a palavra de Saddam, agora é a palavra do Profeta. Os militares são o instrumento de um poder e controlo absolutos. Quando chegaram, em 2003, os americanos aboliram o partido Baath e o exército iraquiano. E hostilizaram os membros do partido, recusaram-lhes empregos, ou participação nas novas estruturas. Só que os membros do partido eram muitos. Uma enorme percentagem da população, que incluía militares e funcionários, mas também técnicos, professores, etc., estava inscrita no partido, porque era necessário, para ter emprego e não se ser perseguido. São estas pessoas, na sua maioria sunitas, que agora, depois de os xiitas terem assumido arrogantemente o poder em Bagdad, apoiam, ou integram as estruturas do EI.
Como se explica que os americanos tenham cometido um erro tão grosseiro?
E os britânicos. Alguns peritos dizem que foi por estarem demasiado ocupados a convencerem o mundo de que o Iraque tinha armas de destruição maciça. Foi no meu programa na BBC que o jornalista Andrew Gilligan acusou Tony Blair de estar a mentir sobre as armas de destruição maciça que o Iraque supostamente tinha, e com as quais poderia atingir bases britânicas em 45 minutos. E aqui estamos, 13 anos depois, com o EI de Al Baghdadi, agora sim, a atacar civis nas capitais europeias.
Desde que forças russas estão a ajudar o regime de Bashar al Assad, o EI tem sofrido importantes perdas territoriais, designadamente Palmira. Que consequências terão esses revezes, uma vez que, ao contrário da Al-Qaeda, todo o discurso do EI se baseia na posse de território, e na sua expansão?
Não devemos ficar muito entusiasmados. O EI, sob a forma de Al-Qaeda do Iraque, já existia antes de controlar território. Não há dúvida de que a perda de Palmira, e, antes, de Tikrit e de Ramadi são derrotas significativas para o EI. Penso que a intervenção dos russos foi uma surpresa para eles. Eles não querem perder território, querem ganhar, expandir-se, até à Península Ibérica, incluindo Portugal, como proclamam nos seus comunicados. A verdade é que já perderam cidades e territórios importantes, mas sobrevivem. Não estão derrotados. Há ainda um longo caminho. Controlam Mossul, que é a segunda maior cidade do Iraque, com seis milhões de habitantes.
A perda de territórios leva-los-á a quererem afirmar-se de outros modos, como lançar ataques terroristas na Europa?
Sem dúvida, e isso já está a acontecer. É uma forma de dizer: olhem, estamos a ser atacados aqui, mas podemos retaliar. Pensam que não sofrem consequências porque estão a uns milhares de quilómetros da Síria? Não estão. Porque vamos atrás de vocês. Eles querem ter duas frentes de batalha em simultâneo. Em Espanha, por exemplo, depois dos atentados de Madrid, a população levantou-se contra o seu Governo, exortando-o a deixar de atacar o EI. Porque eles querem ser deixados em paz, pelo Ocidente. Querem poder construir o seu califado livremente, sem ter os americanos a lançarem-lhe bombas em cima.
Mas ao mesmo tempo procuram o confronto e o conflito. Os atentados são uma forma de obrigar o Ocidente a retaliar.
Também é verdade. A revista do EI chama-se Dabik, que é o nome de uma cidade na Síria onde dizem que o Corão localiza a grande batalha final entre Islão e Cristandade. Alimentar esse confronto faz parte da sua estratégia.
Mas são então de esperar mais e piores ataques terroristas na Europa.
Sim. Ninguém duvida disso. Um grande ataque em Londres não está em dúvida “se” acontece, mas “quando”. E o pior é se não for em Londres, mas numa cidade mais pequena, onde não estão concentrados os meios de segurança. Por que razão atacaram em Bruxelas? Nem a Bélgica nem a União Europeia estão muito envolvidas nas agressões contra o EI. Eu estive no bairro de Molenbeek, que fica no centro, não num subúrbio de Bruxelas, a seguir aos ataques de Paris. Havia uma presença maciça de forças de segurança nas imediações das instituições europeias. Polícia por todo o lado. Mesmo assim, atacaram Bruxelas. Como se pode impedi-los? Com os meios que têm, e com pessoas preparadas para morrer, podem atacar em qualquer lado.
Com uma componente ideológica fraca, a força do EI é muito baseada na força e carisma dos seus líderes. A morte de Abu Bakr Al Baghdadi poderia ser o principio do fim da organização?
Não. Trata-se de uma organização que está habituada a ver os seus líderes assassinados. Abu Musab al-Zarkawi (líder da Al-Qaeda do Iraque) foi morto. Dois dias depois, dois combatentes tomaram o seu lugar. Também foram mortos. Dias depois, Al-Baghdadi subiu à liderança. Se desaparecer, alguém já está na linha para o substituir.
No entanto é uma estrutura onde se jura fidelidade ao líder, não à organização.
Sim, é uma cadeia de fidelidades pessoais. Mas a organização é resiliente. Claro que perder um líder carismático e inteligente como al-Baghdadi claramente é será um duro golpe. Mas vão sobreviver. Não há uma ideologia forte, mas o tipo de regime está bem definido. Já Zarkawi e a sua organização Ansar Al-Islam, que operavam no Cusdistão iraquiano na época da guerra de 2003, usavam os mesmos métodos, de violência, terror, decapitações, tortura, crucificações, esquartejamento de crianças. Tudo isso está documentado. Agora, no califado, comportam-se da mesma maneira. É a forma que encontraram de aplicar a Sharia. Não vão mudar. Formaram certo modus operandi, certos métodos. Também na altura usaram armas químicas. Aterrorizavam as populações, e é o que continuarão a fazer.
Mas uma vez que ocupam um território, seria de esperar que se esforçassem por ter o apoio das populações…
Os ditadores não querem saber o que o povo pensa. São fanáticos, pensam que são uma vanguarda, que querem construir o Estado Islâmico, e as pessoas têm de obedecer, ou morrem. É tão simples quanto isso. Mas, tal como acontecia no Iraque de Saddam ou noutras ditaduras, se as pessoas não disserem o que pensam sobre o regime, se não se envolverem em qualquer actividade política, podem ter uma vida pacata e segura. Se se atravessarem à frente, morrem. Só os ataques internacionais podem perturbar esta situação. Mas creio que, com a crescente autonomia americana face ao petróleo, os EUA terão muita relutância em intervir.
Os ataques terroristas no Ocidente não levarão a opinião pública a obrigar os EUA a envolverem-se militarmente?
A opinião pública está dividida. Gostaria de ver desaparecer o EI, mas pensa que se os atacarmos, eles retaliarão nas nossas cidades. Se houver um ataque em Londres, as pessoas culparão David Cameron por estar a colaborar nos bombardeamentos na Síria.
Uma coligação internacional para derrotar definitivamente o EI não teria apoio da opinião pública?
Mesmo que fosse possível afastar todos os civis, e destruir o EI com uma bomba, isso não resolveria o problema. Porque eles estão em todo o lado. Voltariam, como um cancro. Se o EI for erradicado, outra coisa ainda pior ocupará o seu lugar. E o que pode ser pior? O EI com armas biológicas e nucleares. Ou com um líder ainda pior. Já são dezenas de milhares de jihadistas. Estão a treinar crianças. Poderão ser 500 mil no futuro. Se não houver uma solução política para isto, ninguém estará a salvo.