Cante alentejano, capoeira e candomblé: estamos juntos

O cante alentejano encontra-se com Salvador da Bahia. Os Camponeses de Pias encontram-se com a capoeira, com as baianas do Acarajé, com o candomblé. Unem-se no primeiro simpósio internacional Patrimónios Imateriais. Ouvimos: “Um povo sem cultura é um povo morto”.

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Não há muito estavam a mudar de santa, digamos assim, transformando a Carmo que conhecemos da moda Nossa Senhora do Carmo em Rosário, forma de homenagear os fiéis da igreja baiana, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que os recebeu em plena missa e deles ouviu a força do cante.

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Não há muito estavam a mudar de santa, digamos assim, transformando a Carmo que conhecemos da moda Nossa Senhora do Carmo em Rosário, forma de homenagear os fiéis da igreja baiana, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que os recebeu em plena missa e deles ouviu a força do cante.

Não há muito, mas ainda antes disso, estavam no Espaço Cultural da Barroquinha, igreja setecentista destruída por um incêndio em 1984 e reaberta em 2009 como centro cultural, a misturar na mesma tarde Silva que estás enleada com uma demonstração de capoeira e com uma manifestação de candomblé poderosa o suficiente para que uma baiana na assistência visse descer um espírito sobre si, corpo tremendo, olhos semicerrados. Um par de cantadores saltando para ajudar a senhora que julgavam aflita, mas não era necessário qualquer auxílio — assim é o candomblé, e é bom sinal para quem sofre a “radiação”.

Não há muito, no dia anterior, terça-feira, percorreram a zona histórica de Salvador da Bahia, cantando e ouvindo, caminhando os seus fatos de pastores e de porqueiros, fatos domingueiros e fatos de vaqueiro e fatos de ganhões, fatos com peliça e safões muito quentes para o calor tropical — “vocês vão sair assim aqui?”, perguntou o motorista da carrinha que os transportava —, para se apresentarem a céu aberto às gentes da cidade que entre 4 e 8 de Abril acolhe o Simpósio Internacional de Patrimónios Imateriais do Alentejo e Bahia.

Momento solene por ser histórico (é a primeira viagem ao Brasil do Grupo Coral e Etnográfico Os Camponeses de Pias, um dos mais antigos e celebrizados do cante). Momento de contacto popular e contaminação pessoa a pessoa — “são gaúchos?”, perguntavam os baianos que viam antes de ouvir. Momento institucional também, com a apresentação no Espaço Cultural da Barroquinha a servir de contexto para as apresentações feitas por académicos ou agentes directamente ligados a cada uma das expressões culturais presentes: o cante alentejano e a capoeira, ambas património Imaterial da Humanidade, distinção atribuída no mesmo Novembro de 2014 pela UNESCO, e as Baianas do Acarajé, tornadas património imaterial do estado da Bahia em 2012.

Não há muito era tudo isto e agora, já no hotel, não se descansa do dia longo. Ou melhor, descansa-se, se descanso for prazer como este. Os cantores dos Camponeses de Pias estão a cantar — podia lá ser de outra maneira. Agrupados à volta de algumas mesas na sala de refeições, unem as vozes uma vez mais para inventar uma nova moda, unem-nas para cantar essa moda que é hino do cante: “É tão grande o Alentejo.” Se cantar é preciso? Cantar sempre e em qualquer lugar. De certa forma, foi isso que os Camponeses vieram fazer a Salvador da Bahia, continuando uma história, a do grupo a que pertencem, e honrando esse percurso iniciado nas tabernas da vila alentejana do concelho de Serpa há quase 50 anos. “A cantar, a cantar vamos rezar”, entoaram na Igreja do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, centro nevrálgico da zona histórica de Salvador. A cantar na capital negra do Brasil vão mostrando o que são e o que foram.

“Sem cultura não tem povo. Um povo sem cultura é um povo morto.” É desta forma que Mestre Cyborg, capoeirista do grupo Cadência do Jogar, termina a sua apresentação na tarde terça-feira no Espaço Cultural da Barroquinha, edifício que revela um feliz equilíbrio entre o que fica, o esqueleto da igreja de outrora em tijolo bem visível, e o novo que agora surge, o palco, as estruturas de iluminação e a madeira das janelas.

Daquela forma, porventura inadvertidamente, o mestre de capoeira acaba por resumir aquela que é a linha condutora do Simpósio Internacional — Patrimónios Imateriais do Alentejo à Bahia, organizado no seio da Universidade Federal da Bahia, em parceria com a Câmara Municipal de Serpa, pelo GP Sedes (Grupo de Pesquisa em Sócio-Economia do Desenvolvimento Sustentável) e pelo Opará (Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação), cujos núcleos espalhados pelo sertão brasileiro trabalham de uma forma activa para a valorização das culturas e saberes indígenas e afro-brasileiros e para a inclusão efectiva dos seus membros no meio académico — forma de as comunidades indígenas deixarem de ser apenas objecto de estudo e passarem a ser, também, sujeito activo nesse processo.

O simpósio propõe-se reunir três expressões culturais unidas pela origem popular e por uma história de luta e resistência. Foi impulsionado pelo professor Feliciano de Mira, nascido em Arraiolos, também ele com passagem pelo grupo dos Camponeses de Pias no currículo, investigador que tem trabalhado as questões da socioeconomia africana e latino-americana e que, desde 2013, dirige o mestrado de Epistemologia e Desenvolvimento Sustentável na Universidade da Bahia, no Campus Paulo Afonso, a cerca de 800 quilómetros de Salvador e um dos pólos onde se desenvolve a actividade do Sedes e do Opará.

Promove um encontro que seja início de diálogo e uma discussão sobre como continuar a história destas tradições “construindo a partir da base”, “aproximando sem governamentalização”, “desenvolvendo uma cooperação internacional descentralizada das estruturas de poder”, como referiu Feliciano de Mira na sua apresentação, na tarde de terça-feira. Nela, lançou sobre a mesa uma proposta para nova linha de investigação: a das influências africanas da definição do cante. Porque, neste simpósio, a africanidade surge como outro elo de ligação entre as manifestações culturais representadas.


O imaterial como matéria

Rita Santos, a carioca tornada baiana de corpo inteiro, presidente da associação das Baianas do Acarajé, falou desse bolo feito à base de feijão e cebola, frito em azeite de dendê e recheado de vários outros ingredientes (pimenta, camarão, vatapá, cururu), que as baianas, no seu traje característico, vendem em bancas pela cidade. Falou de como as origens dessa invenção baiana remontam à Nigéria e ao Benim, de como ela é um elemento indispensável da cultura afro-brasileira — inseparável da espiritualidade do candomblé e seus espíritos, os orixás. E, num momento em que “estas mulheres empreendedoras”, que muitas vezes sustentam toda a família com a preparação e venda do acarajé, se vêem ameaçadas, por exemplo, pela proibição recente de venda nas praias, Rita Santos queria conhecer o percurso do cante para “aprender a preservar o que já está preservado” institucionalmente.

Mestre Cyborg, por sua vez, referiu a luta da capoeira, nascida no seio das comunidades de escravos africanos, para se impor num contexto em que começou por ser “proibida no código penal como ‘vadiagem’, tal como o candomblé”, em que teve de vencer depois a resistência das classes altas, mesmo no momento em que o presidente Getúlio Vargas a legitimou como um verdadeiro desporto brasileiro. Enalteceu a história de uma vitória, a deste desporto que é dança e que é também música — “caso único em que isso acontece”, acentuou —, e que sobreviveu a um passado de discriminação para se espalhar por todo o mundo como marca de identidade orgulhosamente brasileira.

A africanidade da capoeira, do acarajé ou do candomblé é óbvia. A do cante alentejano? Feliciano de Mira defendeu que é possibilidade que tem de começar a ser estudada aprofundadamente. Recuou a D. Manuel I e à chegada dos escravos negros, que se espalhariam por algumas zonas do país. No Alentejo, no século XVI, compunham 10 por cento da população, trabalhando na agricultura ou no artesanato e, impedidos de entrar nas cidades, “frequentavam os botecos onde bebiam e praticavam cânticos vocais”. Proibidos igualmente de frequentar as igrejas, criaram confrarias e irmandades em que o cristianismo se encontrava com os rituais associados à cultura africana (tal como aconteceu na Bahia). Saindo do contexto popular, referiu o relato de um médico alemão que, de visita à corte de Évora, encontrou etíopes e guinéus que ali tocavam e cantavam a sua música. 

Apontou a existência de mais de 350 vocábulos kimbundu (língua de origem angolana) no português e defendeu a existência de paralelismos etnomusicais entre o canto polifónico dos povos pigmeus da África central e o cante. Recuou quatro séculos para deixar o mote: “Hipótese de trabalho: a influência africana no cante alentejano.” Proposta que surgiu associada à manifestação de uma vontade: “Descolonizar os saberes, para que os saberes subalternos, dos desprezados, entrem no conhecimento.” Pouco depois, Mestre Cyborg diria algo curioso: “A energia dentro da roda de capoeira [enquanto se ouve o batuque e o berimbau] é muito forte. Nessa hora tomamos o imaterial como matéria.” O imaterial como matéria. De certa forma, a viagem dos Camponeses de Pias a Salvador tem sido manifestação dessa capacidade de transformação. Antes da academia, no Espaço Cultural da Barroquinha, houve a rua. Descoberta mútua.


São gaúchos?


As baianas do Museu das Baianas, na Praça da Cruz Caída, a ampla baía estendendo-se ao longe, o famoso Mercado Modelo ao alcance do olhar. Ouvem e comentam entre si: “Cê percebeu? É muito bonito. Deviam passar a letra.” Os cantadores avançando até ao Terreiro de Jesus, continuando até à Praça da Sé, cantando os trigais alentejanos, cantando à tarde a boémia que ainda não chegou (“inda não é meia-noite / já passei um bom serão”), parando num boteco tão semelhante às tascas onde o cante nasceu para beber um licor local, o cravinho, e cantar novamente o Alentejo.

Baianos e turistas param, filmam e fotografam. Arriscam a proveniência — a pergunta é a mesma: “Gaúchos?” —, seguem em procissão com os cantadores, quando estes, que são os Camponeses de Pias, mas que aqui representam as quase duas centenas de grupos de cante alentejano, descem até ao Largo do Pelourinho. Surgem rostos curiosos às janelas, saem clientes e empregados de mesa dos cafés enquanto as vozes enchem o calor baiano e os pés marcam na calçada o ritmo lento que os levará até à escadaria da Casa Fundação Jorge Amado. 

Jesse Ferrell, estudante na Universidade da Bahia, está emocionada. Nos Estados Unidos, teve um professor nascido em Newark, filho de alentejanos, que muito lhe falara do cante, da sua força comunal e arte de resistência, e agora descobria-o ali perante si. Alexandra Gehring, a sua mãe, fala de uma música “muito profunda, calmante”, que ressoa de forma especial naquele cenário — Rita Santos dir-nos-ia mais tarde que aquela música a transporta para o interior da Bahia, para o “canto suave das nossas ladainhas”.

Um dia depois, estaremos na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, assim chamada por ter sido erigida pela irmandade local de escravos negros no início do século XVIII. Celebra-se a missa das 18h. A olhos habituados ao catolicismo português, é toda uma outra celebração. A música irrompe, ritmo marcado a batuque e pandeiro, vozes cantando em uníssono: “Nosso Deus / quebra a força do tirano.” Os braços ondulam, os fiéis dançam, o padre faz a sua homilia, pregando, muito de acordo com a ordem do dia, contra os “paraísos fiscais” e a “acumulação egoísta que contraria a lógica cristã”: “Que cada um trabalhe e ofereça aquilo que pode, para ter para si e para distribuir por todos.” Os fiéis aplaudem. Novo cântico em coro. Os Camponeses de Pias regressam com a Nossa Senhora do Carmo que é agora do Rosário. Os fiéis ouvem em silêncio, antes do aplauso final. Bahia e Alentejo. “Estamos juntos”, como diria um amigo que aqui fizemos por estes dias.

O PÚBLICO viajou a convite da Câmara Municipal de Serpa