Homens mortos

Em O Abraço da Serpente o potencial – poético ou dramático – de “mistério” perde-se com uma tipologia estereotipada das personagens.

Foto
Uma obra curiosa mas demasiado limitada pela sua pretensão arty e, o que não é sinónimo, artificiosa.

O colonialismo, a relação dos brancos europeus com as populações locais e “colonizadas”, eis um tema, ou constelação de temas, em alta na bolsa de valores por que se regem os circuitos do cinema dito “alternativo” tal como representados por boa parte dos principais festivais de cinema do mundo inteiro. O Abraço da Serpente, do colombiano Ciro Guerra, que chega com lastro de algum prestígio (esteve entre os nomeados para o Óscar de melhor filme em língua estrangeira), é mais uma das várias declinações dessa temática que os tempos recentes ofereceram. Baseia-se, parcialmente, nos escritos de um explorador alemão que no princípio do século XX fez um levantamento de determinada região do Amazonas, e nos de um biólogo americano que, em meados do mesmo século, parcialmente refez o mesmo percurso. A ponte entre as duas épocas é feita pela personagem de um xamã, último representante da sua tribo, que em ambos os casos serve de ambiguíssimo guia para os “homens brancos”.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O colonialismo, a relação dos brancos europeus com as populações locais e “colonizadas”, eis um tema, ou constelação de temas, em alta na bolsa de valores por que se regem os circuitos do cinema dito “alternativo” tal como representados por boa parte dos principais festivais de cinema do mundo inteiro. O Abraço da Serpente, do colombiano Ciro Guerra, que chega com lastro de algum prestígio (esteve entre os nomeados para o Óscar de melhor filme em língua estrangeira), é mais uma das várias declinações dessa temática que os tempos recentes ofereceram. Baseia-se, parcialmente, nos escritos de um explorador alemão que no princípio do século XX fez um levantamento de determinada região do Amazonas, e nos de um biólogo americano que, em meados do mesmo século, parcialmente refez o mesmo percurso. A ponte entre as duas épocas é feita pela personagem de um xamã, último representante da sua tribo, que em ambos os casos serve de ambiguíssimo guia para os “homens brancos”.

Na relação entre os ocidentais e aquele mundo de estranheza – estranheza que é tanto “natural” e tem a ver com a flora, a fauna ou o clima, como é “cultural” e tem a ver com os misticismos e tradições dos povos locais – perpassam ecos de várias coisas. Conrad, por exemplo, que até foi adaptado num filme português estreado muito recentemente, o Posto Avançado do Progresso de Hugo Vieira, um filme a vários títulos aproximável do de Ciro Guerra. Mas mesmo a mais célebre adaptação de Conrad, o Apocalypse Now que Coppola extraiu ao Coração das Trevas, ainda que num contexto “desviado” (a guerra do Vietname), tem aqui alguns reflexos curiosos, pelo percurso ria acima desde logo, mas também pela extrema ritualização, onde tudo é código dificilmente decifrável, e pela questão da alucinação, dada como mergulho sem regresso em algo que está destinado a ser, de facto, e a olhos ocidentais, um “coração das trevas”. O potencial – poético ou dramático – dessa carga de “mistério”, para simplificar, perde-se um pouco, no entanto, pelo carácter exemplar das personagens, pouco exploradas e desenvolvidas, condenadas a uma tipologia mais ou menos arquetípica, para não dizer mesmo estereotipada. E se há algumas belas imagens da natureza com elas coexiste, como a opção pelo preto e branco rapidamente denuncia, uma tendência para o gesto largo mas “estetizante”, cuidando menos da relação entre homens e natureza (com muito menos o Nick Ray de Wind Across the Everglades, nos pântanos da Florida, deu isto muito melhor, mesmo se num contexto temático diferente) do que da vontade de a exibir em portfólio fotográfico. E, neste mergulho na “miscigenação do olhar”, onde a câmara alterna entre o ponto de vista do ocidental e o ponto de vista do nativo sobre o ocidental, culturas e mitologias entrechocando e criando um mundo próprio, “O Abraço da Serpente” lembra ainda, em versão muito menos satisfatória, o Homem Morto com que há uns vinte anos Jim Jarmusch, com outra cadência, profundidade e um muito maior sentido de perdição labiríntica, evocou os muitos “choques culturais” que interrogam a existência de uma identidade americana. É, finalmente, dessa multíplice raiz que Ciro Guerra se aproxima, numa obra curiosa mas demasiado limitada pela sua pretensão arty e, o que não é sinónimo, artificiosa.