“Há uma essência fascista que vem crescendo no Brasil”
Bruno Torturra é uma voz lúcida num país bipolar. Quando o Brasil descobriu a rua como arena política em Junho de 2013, ele estava lá, com um telemóvel e uma conexão à Internet, cobrindo os megaprotestos em directo e durante horas. À semelhança do que aconteceu nos protestos de Occupy Wall Street ou na Praça Tahrir, no Egipto, durante a Primavera Árabe, a Mídia Ninja, o colectivo de cidadãos-jornalistas fundado por Torturra, estava determinada em registar e difundir uma versão mais real dos acontecimentos do que a narrativa distorcida dos media tradicionais. Em muito pouco tempo, a Mídia Ninja explodiu em popularidade – com milhões de visualizações – e ajudou a engrossar a multidão nos protestos.
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Bruno Torturra é uma voz lúcida num país bipolar. Quando o Brasil descobriu a rua como arena política em Junho de 2013, ele estava lá, com um telemóvel e uma conexão à Internet, cobrindo os megaprotestos em directo e durante horas. À semelhança do que aconteceu nos protestos de Occupy Wall Street ou na Praça Tahrir, no Egipto, durante a Primavera Árabe, a Mídia Ninja, o colectivo de cidadãos-jornalistas fundado por Torturra, estava determinada em registar e difundir uma versão mais real dos acontecimentos do que a narrativa distorcida dos media tradicionais. Em muito pouco tempo, a Mídia Ninja explodiu em popularidade – com milhões de visualizações – e ajudou a engrossar a multidão nos protestos.
Mas as manifestações no Brasil de 2016 deixam-no desanimado porque vê nelas um vazio político. “Há uma negação da política partidária em si: a ideia de que a política deve ser movida por uma moral e não pela livre circulação de ideias e visões do que a sociedade deve ser. Há um elemento fascista que está a crescer no país. O meu medo é que esse sentimento possa encontrar representação no voto, que apareçam candidatos que vocalizem essa plataforma”, diz Bruno Torturra, 37 anos.
Há um tom apocalíptico nos discursos sobre o Brasil, nas conversas sobretudo nas redes sociais: a ideia de que o país está no abismo, de que a democracia se está a desmantelar, etc. Uma provocação: o Brasil está a viver o apocalipse?
Ninguém sabe exactamente o que está acontecendo. Mais do que isso: ninguém sabe como vai acabar. A gente realmente pode ter um retrocesso enorme na democracia brasileira. A minha percepção não é apocalíptica, mas é pessimista: independentemente do resultado que essa crise gerar, no curto prazo, não será uma saída boa. Mesmo com a manutenção de Dilma até ao final do seu mandato, sabemos que isso será forjado no “fisiologismo” [termo que os brasileiros dão à atribuição de cargos em troca de apoio partidário e favores políticos], na concessão de espaços para forças que estão a chantagear o Governo nessa hora.
A outra opção, que é o impeachment [destituição] acontecer e o PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro, liderado pelo vice-presidente Michel Temer] assumir o poder plenamente é, para mim, pior: significa que não vai ser respeitado o resultado de uma eleição. O que move o impeachment é o oportunismo de um partido que não se conforma em ter perdido as eleições e uma agenda política que serve muito mais para proteger os corruptos, o sistema que gerou essa crise, do que para transformá-lo ou saneá-lo.
O Brasil está fracturado entre os defensores do impeachment e apoiantes do Governo. Porque não se identifica com nenhum dos lados?
Essa divisão bipolar não traduz a realidade política em Brasília, não traduz o que está em causa. O impeachment depende muito mais de uma negociação fisiológica do que da pressão das ruas.
Os episódios de violência e de hostilidade que têm acontecido no último mês devido à polarização política surpreendem-no?
Não me surpreendem mas assustam-me. Dava para perceber que havia um crescendo disso nos últimos anos, esse acirramento em torno de uma raiva muito grande de cada lado. Mas é importante que se diga que essa violência vem de um lado só. Não sei de episódios em que pessoas de esquerda tenham agredido pessoas nas ruas. Essa violência dirigida vem prioritariamente de pessoas antipetistas [contra o PT, partido do Governo] que estão a confundir muito as coisas, achando que comunistas querem tomar o Brasil ou que a corrupção vem só de um lado.
Quando a esquerda grita “fora fascismo”, isso não equivale ao “fora comunismo” dos antipetistas? Ou existe uma ameaça fascista real, na sua opinião?
Há uma essência fascista que vem crescendo no Brasil. Não é generalizada, não dá para dizer que toda a oposição ao PT é fascista. Mas é mais facilmente identificável, é mais crescente do que o elemento comunista. Há pessoas de esquerda que ainda têm uma visão comunista, mas esse campo é irrelevante na disputa política no Brasil. Há uma glorificação da Polícia Militar. Há uma agressão física a pessoas que pensam diferente politicamente. Há um desejo de uma autoridade, seja policial ou outra, que limpe a política brasileira unilateralmente. E há uma negação da política partidária em si: a ideia de que a política deve ser movida por uma moral e não pela livre circulação de ideias e visões do que a sociedade deve ser. Há uma ideia patriótica muito monolítica porque ela é colocada em termos de moral e punição, e condena qualquer pauta com a qual a esquerda se identifica – direitos humanos, feminismo, direitos dos homossexuais, quotas raciais... Ela defende que a maioridade penal seja reduzida no país e considera que a polícia é uma força que representa o povo e não o Estado. Esse, para mim, é o elemento fascista que está a crescer no país. E o meu medo é que esse sentimento possa encontrar representação no voto, que apareçam candidatos que vocalizem essa plataforma. Por enquanto tem poucos, mas pode crescer.
Vê a actual polarização política como uma repercussão dos protestos de Junho de 2013?
É muito difícil fazer uma relação simples entre Junho e hoje em dia. Mas claro que existe uma trajectória de muitas bifurcações que nos trouxeram até aqui. Eles têm um elemento muito diferente porque Junho começou com uma reivindicação muito tradicional da esquerda – a redução de tarifas nos transportes públicos – e rapidamente evoluiu para uma diversidade enorme de causas. Mas foi em Junho que esse movimento negacionista da política e da esquerda descobriu a rua.
A direita brasileira apropriou-se desse movimento que começou por ser de esquerda? Há um certo sentimento de perda na esquerda brasileira hoje em dia ao ver a capacidade de organização e de mobilização da direita.
A esquerda brasileira e no mundo inteiro passa por um momento de crise. Ela já não dá conta dos desafios e não seduz mais gente. Ela precisa de oferecer um novo horizonte emancipatório para o século XXI. No Brasil e na América Latina especificamente, ela tem um desafio acrescido: a esquerda tornou-se o establishment nos últimos dez anos. O facto de que não está fora do Governo há muito tempo coloca-a num lugar de muita fragilidade, de muitos escândalos e decepções.
A direita já foi para a rua muitas vezes no Brasil: foi pedir o golpe militar em 1964. A novidade é que a direita tem sido muito mais eficiente em usar as tecnologias, os memes, o humor, simplificações como os Pixulecos [boneco insuflável de Lula vestido com farda prisional que é usado nas manifestações contra o Governo]. A esquerda estava fragmentada, constrangida.
Muitos analistas vêem nas manifestações um recém-descoberto desejo de participação política dos cidadãos brasileiros. Mas você considera que essa polarização é despolitizada. Porquê?
A polarização não explica a gravidade da crise. Porque não é uma briga entre direita e esquerda, pura e simplesmente. Existe a condenação de uma ideia de esquerda, a ideia de desmontar os poucos avanços sociais que o Brasil teve, mas há uma crise que transcende o golpe. É uma crise do modelo de governabilidade do Brasil, que assenta num pacto presidencialista [baseado na coligação partidária]. Esse pacto foi desfeito, não existe mais um governo estabilizado através da divisão de ministérios e de negociação parlamentar. Esse pacto foi totalmente corrompido pela fraqueza do Planalto. Mas o principal é que o tamanho dos escândalos de corrupção está pegando tanto os deputados, está expondo tanto as entranhas do sistema político brasileiro que chega uma hora em que esse Congresso precisa apresentar a Presidente da República como um bode expiatório. Para se proteger, projecta tudo no Planalto. Como se a troca de Presidente fosse uma mudança no país, uma solução a partir da qual a gente pudesse pacificar novamente o país. Para mim, é o oposto. É uma garantia de que o sistema no Brasil vai seguir impune.
Haveria uma causa que poderia unificar tanto a gente que está contra o PT como os que defendem a manutenção de Dilma: a reforma política, a refundação do sistema eleitoral, o fim do financiamento privado das campanhas – as doações eleitorais, que são a origem de toda a Lava-Jato. A essência disso é o financiamento ilegal das campanhas eleitorais.
A quê ou a quem atribui responsabilidade pelo clima de ódio e acirramento?
Se tem um problema nesse jogo todo, é que está todo o mundo em busca de um culpado. A culpa no Brasil deve ser partilhada democraticamente. Há muita responsabilidade de todos os actores e ninguém assume essa responsabilidade. Há muita falta de autocrítica. Todos têm uma grande responsabilidade: a imprensa, a oposição, o poder judicial, a esquerda... E o cidadão brasileiro, que não consegue abraçar a complexidade ou amadurecer a sua compreensão do que a política é. Há um défice enorme de conhecimento histórico. Não estou sequer a falar de História do Brasil do século XVII, mas dos últimos 40 anos, da História que a gente viveu: os governos de Fernando Henrique Cardoso, o primeiro governo Lula... Parece que a gente está a viver uma crise que diz respeito aos últimos 15 minutos, quase.