Uma lei "actual", "anacrónica", com "poesia" e que ajuda a "perceber melhor" Portugal

Eles ainda nem eram nascidos. Fomos ouvir alunos do 1.º e do 4.º anos de Direito, em Lisboa e no Porto. Actual ou anacrónica: o que pensam os estudantes sobre a Constituição, agora que faz 40 anos?

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A João Pinto Ramos, 21 anos, os três primeiros artigos da Constituição parecem-lhe “poesia jurídica”. O 1.º, por exemplo, diz que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Para este aluno do 1.º ano de Direito Constitucional, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, é “uma mensagem bonita”.

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A João Pinto Ramos, 21 anos, os três primeiros artigos da Constituição parecem-lhe “poesia jurídica”. O 1.º, por exemplo, diz que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Para este aluno do 1.º ano de Direito Constitucional, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, é “uma mensagem bonita”.

Nos 40 anos da Constituição, fomos conversar com alunos de Direito, em Lisboa e no Porto. Quase todos os estudantes sentiram que a cadeira lhes permitiu “perceber melhor” Portugal. A André Simões, por exemplo, 19 anos e no 1.º ano, deu-lhe “uma compreensão mais alargada do país”.

Também a começar o curso em Lisboa, Beatriz Lopes, 19 anos, considera que Portugal “vive muito marcado pela sua história”: “O 25 de Abril foi muito importante, marcou o nosso país e a Constituição espelha isso. Mostra-nos o que deve ser preservado, porque já integrou o nosso espírito enquanto povo e, por outro lado, [deve] integrar outros princípios que podem ser alterados para que se mantenha actual.”

A este propósito, André Simões, da mesma faculdade, diz que leu o preâmbulo e pareceu-lhe “fortemente ideológico”. Para Beatriz Lopes é “difícil ter uma posição imparcial”: “O Direito Constitucional é um pouco como a economia, é impossível não ter uma opinião.”

De repente, o grupo já está a discutir o valor do preâmbulo, se é “meramente simbólico”, se é contexto histórico. “Já não reflecte as alterações que a nossa sociedade foi sofrendo ao longo destes 40 anos. Reflecte aquele momento. É interessante, mas é contexto histórico”, defende Mariana Baptista, 17 anos. A mesma aluna que agora, já no segundo semestre, diz que “a Constituição não é perfeita”, que “abre portas para a discussão”. Mas admite que as pessoas “têm uma relação emocional” com a Lei Fundamental.

A Francisco Araújo, 18 anos, também lhe causou impacto a parte inicial do texto. Leu-a ainda no 12.º ano. Começa assim: “A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista.” Admite que ficou a conhecer melhor a História, mas revê-se “menos na parte mais extremista da Constituição” e identifica-se com a parte “mais moderada”.

Para Márcio Timóteo, 19 anos, o preâmbulo devia mesmo ser alterado: “Não é por opção partidária ou política”, explica, mas, acrescenta, porque a Constituição não deve ter, ela própria, “essa opção política”.

Também há alunos como Igor Santos e Pedro Afonso Martinez – ambos de 18 anos, 1.º ano, Lisboa – que entendem que não é preciso haver uma Constituição escrita. Pedro considera que, por vezes, até é um “entrave”, quando é usada como “um mero instrumento para interesses políticos”. 

Direitos Fundamentais

No 4.º ano, os alunos desta faculdade em Lisboa têm a cadeira de Direitos Fundamentais, que está ligada ao Direito Constitucional. À volta de uma mesa, e já com uma perspectiva mais amadurecida sobre o texto, discutem vários aspectos: concordam, discordam, riem-se. João Passinhas, 23 anos, considera a Constituição “demasiado prolixa para ser a Lei Fundamental de um país”, parece-lhe que tem “artigos a mais”. Além disso, “a sociedade portuguesa está muito desligada daquilo que a própria Constituição diz. Deve ser uma lei em que qualquer nação como um todo se reveja e o problema é que o povo português não conhece a Constituição”.

 

Gonçalo Fabião, 21, discorda. Diz que, pelo menos, desde 2012, quando na comunicação social se falou da decisão do Tribunal Constitucional que considerou inconstitucionais os cortes nos salários e pensões, as pessoas passaram a ter “muita consciência do que a Constituição significa para elas e do que pode fazer por elas”. Não foi o único tema quente que apanharam durante o curso: a formação do Governo, apoiado por uma maioria parlamentar de esquerda, foi outro.

“Foi um momento muito importante para a nossa democracia, um momento importante na história da Constituição e vai ser estudado daqui para a frente”, diz Joana Vitorino, 21 anos.

A discussão instala-se novamente em torno da solução de Governo. João Passinhas começa por admitir que a Constituição diz que “o povo elege directamente os deputados” para a Assembleia da República e o Governo emana dessa câmara. Mas este estudante alerta para o facto de muitos eleitores, quando se dirigem às urnas, acreditarem que estão a votar directamente para um governo e um primeiro-ministro, quando, na verdade, estão a escolher a composição do Parlamento.

Por isso, para este aluno, os actores políticos deviam ter um papel de “pedagogia junto da população”: “A maior parte das pessoas, quando vai votar para as eleições legislativas, pensam de facto que estão a eleger um Governo e a verdade é esta: acabou-se com essa tradição nestas últimas eleições.” E acrescenta convicto: “Foi um choque com a realidade constitucional.”

Resposta pronta de Joana Vitorino: “Se fosse um choque as pessoas revoltavam-se. As pessoas estavam na rua a lutar contra o atentado à Constituição que tinha ocorrido. Não me parece que seja esse o caso.”

Dinis Braz Teixeira, 21 anos, contraria a ideia de que as pessoas têm uma relação “emocional” com a Constituição. Este estudante não tem “qualquer apego emocional” ao texto. “No preâmbulo vê-se que há uma carga emocional e histórica grande, para mim não tem tanto sentido, porque na altura não era vivo, não vivi a experiência, é um marco histórico, não tenho qualquer relação.” Mais uma vez, Joana Vitorino contrapõe: “Um marco histórico que está em vigor.”

A esta aluna toca-lhe ler “os princípios gerais consagrados como fundamentadores da nossa sociedade”: “Sente-se a carga histórica que está por detrás disto.” Também para Gonçalo Fabião, 21 anos, a Constituição tem “uma importância quase sentimental”. Tem “família muito ligada ao 25 de Abril”, o avô foi o capitão de Abril Carlos Fabião.

A Constituição faz 40 anos, estes alunos ainda nem eram nascidos. Mas Joana Vitorino não tem dúvidas: “O futuro faz-se também agora, com essa bagagem do passado que fomos adquirindo ao longo destes anos.”

Afinal, actual ou anacrónica?

Também os estudantes da faculdade de Direito da Universidade do Porto (DDUP) reconhecem, à semelhança dos de Lisboa, ter hoje em dia uma nova concepção do país e até do mundo, sentem-se mais atentos, sensíveis e informados em relação às questões que o texto constitucional consagra. Mas dividem-se entre aqueles que consideram a Constituição actual e os que lhe apontam algum anacronismo.

 

“A Constituição é a base de todo o ordenamento jurídico e é nela que estão elencados todos os direitos e deveres de qualquer cidadão”, afirma João Paiva, de 18 anos. Este estudante, que trocou São Pedro do Sul pelo Porto, revela que o seu contacto com a Lei Fundamental não aconteceu na faculdade, mas por iniciativa própria, devido ao interesse e vocação que diz ter pelo Direito. “Sempre tive muito gosto pela vertente jurídica e, neste momento, já sonho com a magistratura”, partilha.

Discorda daqueles que consideram a Constituição anacrónica. E explica porquê: “A Constituição foi fruto de um certo circunstancialismo histórico-político, mas ao longo dos anos e das sucessivas revisões constitucionais foi-se actualizando”, aponta, citando o constitucionalista Jorge Miranda, que disse que “a Constituição nunca deve ser imutável”.

Posição diferente tem José Oliveira, para quem “alguns dos princípios da Constituição são anacrónicos, porque não estão actualizados ao tempo”. Este estudante declara que a “Constituição tem uma grande relevância política na vida factual dos cidadãos”, mas tem dúvidas quanto a (mais) uma revisão constitucional.

Mais à vontade mostra-se Sara Castro, que destaca o “contexto político, social e ideológico” em que a Constituição foi aprovada para evidenciar que a “carga ideológica, mais socialista”, que começou por ter, foi-se desvanecendo com as revisões constitucionais, razão pela qual considera que a Lei Fundamental do país “é perfeitamente actual e não anacrónica”.

Quanto a uma eventual revisão constitucional, encara-a com naturalidade. “Talvez fosse necessária no sentido de aproximar os cidadãos da organização da vida política, ou seja, de tornar a participação democrática muito mais directa, mais ligada aos cidadãos”, afirma a aluna do Porto.

Sara Castro coloca-se ao lado de alguns constitucionalistas que se mostram favoráveis ao reforço dos mecanismos que permitam referendos, uma figura que alguns especialistas consideram “residual” no actual texto constitucional, mas não se mostra uma defensora entusiasta deste mecanismo. “Faz sentido”, diz, ao mesmo tempo que observa que “há certas matérias que não podem ser alvo de referendo”.

Questionada se alguma coisa mudou na sua vida, a partir do momento em que passou a conhecer melhor o texto constitucional, assume que, “em termos concretos, nada mudou”. No entanto, salvaguarda que passou a estar mais atenta aos direitos e deveres que lhe estão inerentes enquanto cidadã portuguesa e não tem dúvidas em defender que o contacto com a Constituição deveria começar mais cedo: no ensino secundário.

Ricardo Almeida, colega de Sara Castro, diz que a vida de um Estado não se esgota na Constituição, pelo contrário, e mostra-se favorável a que a Lei Fundamental de Portugal consagre o direito de os serviços secretos fazerem escutas telefónicas. Porquê? “Porque os tempos que vivemos são de ameaça terrorista”. Desta forma, os serviços secretos passariam a ter cobertura constitucional.

Com o argumento de que o que está consagrado no texto constitucional não interessa apenas aos alunos de Direito, José Pedro Pinto também recomenda que esta matéria seja leccionada no secundário. Sem apontar outros exemplos concretos, defende que o Direito Constitucional lhe permitiu perceber como é que se estrutura a organização política do país. Essa é apenas uma, entre outras razões, que fizeram com que a sua forma de pensar mudasse “bastante” também.