Um gato desaparecido e uma palavra perdida
Dois livros, dois prémios. Bissaya Barreto para Gato Procura-se e Melhor Livro de Literatura Infanto-Juvenil da Sociedade Portuguesa de Autores para A Palavra Perdida. Falámos com as autoras por isso mesmo e porque este sábado é o Dia Internacional do Livro Infantil.
A memória e a perda são elementos comuns a dois livros para a infância premiados recentemente em Portugal. Ana Saldanha recordou-se dos gatos de infância e dos que mais recentemente lhe invadiram o quintal; Inês Fonseca Santos relembrou Manuel António Pina e procurou reencontrar as palavras por dizer.
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A memória e a perda são elementos comuns a dois livros para a infância premiados recentemente em Portugal. Ana Saldanha recordou-se dos gatos de infância e dos que mais recentemente lhe invadiram o quintal; Inês Fonseca Santos relembrou Manuel António Pina e procurou reencontrar as palavras por dizer.
As ilustradoras que as acompanharam neste percurso, Yara Kono e Marta Madureira, entraram sem cerimónia nos seus universos e representaram com eficácia o que as palavras nem sempre conseguem dizer. Resultou. Escritoras e ilustradoras mostraram-se felizes ao PÚBLICO com o reconhecimento de um trabalho que fazem em parceria e com satisfação.
“Quando mudei para a casa onde vivo agora, os gatos da vizinhança frequentavam o meu quintal. Eu admirava-lhes a indolência, a elegância, a agilidade. Gostava menos de os ouvir miar a toda a hora, de como me sujavam tudo, de que tentassem abrigar-se na casinha ao fundo do quintal. Tentei afastá-los. Confesso que cheguei algumas vezes a ligar a mangueira para os intimidar com um banho frio. Mas eles escapuliam-se para o telhado e punham-se a fitar-me, com um olhar intrigado e, parecia-me, irónico”, descreve Ana Saldanha, uma conceituada escritora de literatura infanto-juvenil, que viu este Gato Procura-se (Editorial Caminho) distinguido com o prémio Bissaya Barreto.
Já Inês Fonseca Santos conta que escreveu A Palavra Perdida (Arranha-Céus/Abysmo) uns meses depois de ter nascido o seu filho, Manuel, e de ter morrido Manuel António Pina. “Dedico-o a ambos. Foi uma fase de grandes mudanças na minha vida, até profissional, de grandes conquistas e perdas. Passei muito tempo sozinha com o pequeno Manuel, o meu filho, a ouvir os seus primeiros sons. Ao mesmo tempo, tentava lidar com a morte de um amigo. E ia relendo a sua poesia, que tematiza o silêncio, a primeira palavra, a infância, a morte... Ecoava, na minha cabeça, uma pergunta que o Pina costumava repetir: ‘Como ser infans e sabê-lo?’”
Emoção e poucas palavras
Dando voz às ilustradoras, comecemos com Yara Kono, que já tinha assinado O Papão no Desvão com a escritora Ana Saldanha: “Entendemo-nos bem, mesmo trocando poucas palavras.” Diz a também designer que começou por “dividir o texto e definir o número de páginas”. Entretanto, sugeriu à autora que a frase “o meu gato desapareceu” aparecesse isolada numa dupla página, “sempre a intercalar com as demais, enfatizando assim o ritmo de leitura já criado” pela narrativa. “Além dessa pausa/repetição”, prossegue a ilustradora, “juntei a essa composição uma ilustração monocromática e minimalista que remetesse para o gato desaparecido (como uma memória), sem ele nunca estar presente”. Assim se fez.
Marta Madureira, por seu lado, comoveu-se com “a sensibilidade da Inês [Fonseca Santos] para ver o mundo”. E não pôde deixar “de ficar emocionada com a sua poesia”. Mais: era uma forma de escrita “aberta ao leitor e às várias interpretações, tão bom e tão benéfico para a criação das imagens visuais”, ao que se acrescentou ser “um texto cheio do Manuel António Pina, já depois da sua morte”. Conclusão: “Seria impossível não o querer revisitar.” Por último, justifica Marta Madureira, sócia da editora Tcharan: “É um texto que fala da descoberta, da amizade e da família, o que dá ao livro, e também a quem trabalha com ele, uma outra dimensão, a pessoal.”
Regressemos aos gatos de Ana Saldanha: “Recorri depois a uns cães (de louça, de várias raças e tamanhos, com sensores), que ladravam quando os gatos passavam por eles. Os cães foram sofrendo acidentes — o rottweiler ficou sem uma orelha, o pitbull teve um ferimento no peito — e foram ficando insensíveis à passagem dos gatos, que, de qualquer maneira, nunca se deixaram intimidar por eles. Continuavam a fazer sestas à sombra do jasmim, a regar e a estrumar o pinheiro-anão, as sardinheiras, as hortênsias, a resolver as suas disputas alto e bom som naquele terreno neutro. Aceitei a derrota.”
Quando os bichanos desapareceram, a autora acabou por recear que lhes tivesse acontecido alguma coisa má. “Foi a pensar nesses gatos e nos que fui conhecendo ao longo das suas sete vidas — o gato preto e branco que fugiu para as vizinhas do Pão-de-Ló Margaridense quando eu era pequena, a gata cinzenta, ainda antes — que decidi escrever Gato Procura-se. Escrevi-o para confrontar os meus receios de um fim irremediável. Não só dos gatos.”
A escritora, com forte ascendente junto dos leitores jovens, diz esperar que “este livro possa contribuir para abordar o tema delicado da morte — sem rodeios, mas também sem sentimentalismos sobre o que pode dar-se a ler às crianças e sem ilusões sobre o que elas sabem e podem ficar a saber”.
Ana Saldanha sente-se “contente e honrada” com a atribuição do Prémio Bissaya Barreto a Gato Procura-se, que assim se junta aos títulos anteriormente vencedores: O Livro da Avó, O Cavalo de Pau do Menino Jesus, A Bicicleta Que Tinha Bigodes e O Pequeno Livro das Coisas.
Yara Kono usou técnica mista para dar vida ao gato: “Carimbos, papéis e texturas, sempre manipuladas e finalizadas no Photoshop.” A ilustradora, sócia do Planeta Tangerina, diz ainda ao PÚBLICO: “Trabalho com uma paleta de cores reduzida e sempre ilustro a pensar no formato álbum e na composição gráfica.” Sobre o prémio, não esconde o entusiasmo: “Foi uma bela surpresa, e tem um especial valor ao partilhá-lo com a Ana, com quem gosto tanto de trabalhar.”
Infância e morte
Inês Fonseca Santos diz que nunca lhe tinha sido atribuído um prémio, excepto quando lhe saíram “dez contos de réis no Totoloto”, recorda divertida. “Sempre achei que os prémios pouco nos acrescentam. Há dias, o Mário de Carvalho, que muito estimo e respeito e que recebeu imensos prémios, disse-me que todos lhe souberam bem por serem um reconhecimento e um estímulo. E é verdade: mesmo que A Palavra Perdida em nada se altere, este prémio deixou-me feliz. Porque este é o livro em que tento aproximar-me da palavra capaz de dizer o nome do meu filho e o nome de um amigo, essa mesma palavra com que pronunciamos a infância e a morte, dois abismos fundamentais.”
Importante também para a autora é o facto de ter sido o primeiro livro que fez com Marta Madureira, que considera “uma pessoa raríssima na sua generosidade, no seu talento, na sua inteligência, no seu modo de ser amiga”. E conclui: “Este é o livro que as duas fizemos depois de sermos mães e por isso, tal como nós, este livro guarda os nossos filhos dentro. Este é o livro que fizemos para o Manuel António Pina, no momento em que ele entrou num outro jogo, uma espécie de jogo das escondidas sem coito. Mesmo de olhos vendados, continuamos à procura. E estamos cada vez mais perto.”
Marta Madureira fala-nos de método e técnica, explicando que o “trabalho começou pela distribuição do texto pelas várias páginas”, a que se seguiu “um processo mais individual, tentando perceber a direcção do texto até conseguir encontrar um conceito sólido e representativo das palavras da Inês e que desse, também, uniformidade ao livro”, descreve. “Esta é sempre a parte mais difícil e demorada”, explica.
Depois de resolvido o conceito, começaram a surgir as primeiras imagens. “O conceito-base do livro partiu da ideia de jogo, que se torna visível na ilustração pela composição de espaços labirínticos e fisicamente impossíveis e em formas geométricas que nos remetem para as peças de madeira, de um jogo de construções. A ilustração tenta sempre manter diálogos com o texto”, diz ao PÚBLICO via email.
Outra das preocupações da ilustradora foi “a necessidade de, de alguma forma, incluir a presença do Manuel António Pina”. Assim, optou por materializá-la na “figura do pássaro que vai aparecendo, de forma discreta, ao longo do livro, remetendo para o passarinho Fausto, de O País das Pessoas de Pernas para o Ar”.
Como “a técnica vem sempre depois do conceito”, Marta Madureira, tendo em conta a ideia de jogo e de peças de madeira, procurou “materiais com tonalidades mais claras e acastanhadas para a base das ilustrações, com recortes de papéis lisos, mas antigos, para manter alguma textura”. As imagens mais actuais distinguem-se pelas cores mais fortes.
“A ilustração de recorte (em digital) acentua a geometria das formas típica das peças de um jogo de construção”, explica a também professora de Ilustração e Design, que recorda com vivacidade as circunstâncias em que foi informada do Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores: “O momento em que soubemos do prémio foi único e original: estávamos as duas [Marta e Inês] em Palma de Maiorca, a convite da Universidade das Ilhas Baleares, para falarmos, precisamente, deste livro.” Ainda estão à procura da melhor palavra para descrever aquele o momento.