Peggy Guggenheim já tem a vida que merece

Até quando as anedotas à volta da Peggy ninfomaníaca vão ocultar os contributos da Peggy coleccionadora para a definição da arte do século XX? Uma nova biografia olha para a colecção de Veneza, um dos melhores pequenos museus dedicados à arte moderna, e resgata-a ao mexerico.

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Peggy Guggenheim no quarto do Palácio Venier dei Leoni com um dos cães e uma peça de parede, em prata, de Alexander Calder Arquivo CameraphotoEpoche. Gift, Cassa di Risparmio di Venezia, 2005

Há cidades que são explicadas por palavras e Peggy Guggenheim encontrou uma boa para Veneza: flutuar. Há cidades que se explicam pelas pessoas que as habitam ou que as escolheram para viver e podemos dizer que a coleccionadora de arte e mecenas merece Veneza e vice-versa.

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Há cidades que são explicadas por palavras e Peggy Guggenheim encontrou uma boa para Veneza: flutuar. Há cidades que se explicam pelas pessoas que as habitam ou que as escolheram para viver e podemos dizer que a coleccionadora de arte e mecenas merece Veneza e vice-versa.

Não vamos falar de extravagância, isso seria demasiado fácil, mas de intensidade, de máscaras, de exuberância e de um gosto por viver no limite ou na fronteira entre dois mundos, seja Oriente e Ocidente, seja entre homens e mulheres que inventaram o que é ser moderno no século XX.

Podemos, então, começar por flutuar e tomar um vaporetto no Canal Grande (Peggy teve uma das últimas gôndolas privadas de Veneza) até à Colecção Guggenheim e sair ao pé da Academia, um pouco antes da Ponta da Dogana e de termos uma vista esplendorosa da Praça de São Marcos. Apesar do Palácio Venier dei Leoni onde está instalada a colecção ser do século XVIII, é difícil reconhecê-lo se formos focados nessa data, uma vez que só foi construído um piso por causa das guerras napoleónicas e parece Art Deco. Estamos alerta para isso e semicerramos os olhos à procura da escultura de Marino Marini, The Angel of the City (1948), que dá título ao primeiro capítulo da nova biografia dedicada à coleccionadora, Peggy Guggenheim, The Shock of The Modern (Yale University Press, 2015), escrita por Francine Prose, e recebe, em êxtase, quem chega ou passa de barco. “Os elementos visuais mais impressionantes da estátua são: cavalo, cavaleiro, pénis – especificamente, um pénis apontado ao tráfego, aos barcos e aos passageiros que viajam entre o museu, e, no outro lado do Canal Grande, o maciço Palácio Corner, que serve de sede à prefeitura de Veneza.”

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Peggy em 1960 no átrio do Palácio Venier dei Leoni: da esquerda para a direita peças de Antoine Pevsner, Developable Surface (1941), Alexander Calder, Arc of Petals (1941), Georges Braque, The Bowl of Grapes (1926) e ainda uma escultura da sua colecção de Arquivo CameraphotoEpoche. Gift, Cassa di Risparmio di Venezia, 2005

A biógrafa usa as famosas memórias de Peggy Guggenheim para explorar o gesto provocador, acrescentando que a coleccionadora afirma em Out of This Century que Marini construiu a escultura de maneira ao falo poder ser removido. Era o que acontecia, continua a biografia, quando Peggy sabia que podia ser visto pelas freiras que passavam pelo canal. A história ilustra “o seu desejo de chocar que durou toda uma vida”, “a sua natureza irónica e divertida”, e deve ser lida para além do aspecto anedótico – segundo o mentor de Peggy Guggenheim, o crítico e historiador de arte Herbert Read, a sua localização era um desafio ao prefeito (a coleccionadora gostava de ficar a observar a reacção das pessoas da janela da sala). Ilustra também, se pensarmos que Veneza é a cidade que escolheu para viver desde 1949 até à sua morte em 1979, outra característica da norte-americana, a difícil relação com as pessoas e as coisas de que gostava, cheia de contradições e ambivalências.

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Arquivo CameraphotoEpoche. Gift, Cassa di Risparmio di Venezia, 2005

O difícil na vida de Peggy Guggenheim é não ir de anedota em anedota, de história em história ou de tragédia em tragédia. O primeiro título da sua autobiografia esteve para ser “Cinco Maridos e Mais Alguns Homens” e ela contabilizou 400 amantes - a lista dos últimos inclui o dramaturgo Samuel Beckett, e os artistas Yves Tanguy e Jean Arp.

Marguerite Guggenheim nasceu dois anos antes do virar do século, em 1898. É a segunda de três filhas de Benjamin Guggenheim e de Florette Seligman, num casamento que junta duas grandes fortunas norte-americanas. O seu pai é o Guggenheim de que se fala no naufrágio do Titanic (vestiu-se para morrer, impecavelmente, com traje de jantar) e deixou Peggy órfã, a entrar na adolescência, com um trauma freudiano, diz a biógrafa. Há também a morte precoce da filha Pegeen, aos 41 anos, resultado de anos de depressão e de uma overdose de medicamentos. São muitos os relatos de violência doméstica em relação ao pai dos dois filhos, Laurence Vail, com quem esteve casada seis anos: a biografia dedica ao problema um longo parágrafo descritivo em que o menos complicado é o seu gosto em despejar compota pela cabeça de Peggy. O segundo marido oficial foi o artista Max Ernst, porque com “o amor da sua vida”, o escritor John Ferrar Holms, que também a menosprezava, não chegou a casar, nem com o pretendente a escritor Douglas Garman, sobre o qual também há relatos de violência. “Garman e eu tivemos uma discussão sobre comunismo. Eu fui tão irritante que ele me bateu.” Os complexos de inferioridade de Peggy são analisados detalhadamente.

Um dos argumentos principais da biografia, nota Christopher Benfey no texto que escreveu sobre a obra de Francine Prose em Dezembro para a New York Review of Books, que como sublinha faz parte da série de Yale dedicada às vidas judias, “é a notoriedade de Guggenheim – o resultado de décadas de mexericos sobre o seu dinheiro, a sua aparência, bem como as suas extravagantes memórias – nos ter impedido de compreender com rigor os seus feitos”. O gosto para chocar, que dá título às memórias, misturou-se com uma persona com uma voz cândida e supostamente natural, muitas vezes vitimizada, que escondeu aquilo que ela obviamente é: uma pessoa que também escolheu desafiar os cânones visuais “mostrando arte que era verdadeiramente nova e algumas vezes perturbadora”.

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Arquivo CameraphotoEpoche. Gift, Cassa di Risparmio di Venezia, 2005

A Colecção Guggenheim em Veneza é um pequeno museu de arte moderna que pode ser considerado um tesouro e faz também da cidade italiana, com a sua ligação à bienal de artes e ao pavilhão dos EUA, aquilo que ela é hoje.

“A ingénua caprichosa e vagamente insensata que encontramos nas páginas do seu livro - e que era provável termos encontrado durante a sua vida -, era apenas uma representação parcial da mulher inteligente e determinada que trabalhou muito e ultrapassou uma série de obstáculos (um dos que não terá sido pequeno foi o do preconceito que existia contra as mulheres dominante no mundo da arte e que ainda agora existe).” Preconceitos contra mulheres que “dirigiam galerias, construíam a sua colecção, financiavam causas políticas que valiam a pena e apoiavam uma lista longa e notável de artistas e escritores”.

Francine Prose escreve logo nas primeiras dezenas de páginas que a autobiografia Out of This Century “é um documento notável”. “É difícil pensar num artista visual importante da primeira metade do século XX que não apareça nestas páginas, na companhia de um número impressionante de romancistas célebres, poetas, memorialistas.”

Essas duas mulheres, muitas vezes contraditórias, são ainda possíveis de encontrar para quem visita a colecção, actualmente gerida pela fundação do seu tio, Solomon Guggenheim, que tem o famoso museu em Nova Iorque desenhado por Frank Lloyd Wright.

No jardim de esculturas que nos recebe em Veneza, ao lado de uma peça poética de Jenny Holzer Go Where People Sleep And See If They Are Safe (a colecção tem recebido doações depois da morte da sua fundadora), encontramos o seu túmulo, mesmo ao lado do dos seus cães: “Here rests Peggy Guggenheim”; “Here lie my beloved babies”. Os seus bebés amados vão reaparecer no interior. Cappucino, Madam Butterfly, Sir Herbert, Hong Kong são alguns dos nomes dos seus 14 lhasas apsos, retratados em inúmeras fotografias, como a do quarto de Peggy, onde um deles está confortavelmente deitado na cama ao lado da dona, tendo atrás uma escultura de parede de prata desenhada por Alexander Calder.

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Peggy Guggenheim com um par de brincos feito para ela pelo artista Yves Tanguy nos anos 50 Arquivo CameraphotoEpoche. Gift, Cassa di Risparmio di Venezia, 2005

Mal entramos no museu sucedem-se obras de arte e artistas que fazem a história da arte do século XX: Picasso (The Poet, On the Beach), Braque (The Clarinet), Duchamp (Sad Young Man on a Train), Léger (Men in the City), Brancusi (Maiastra, Bird in Space), Picabia (Very Rare Picture on Earth), De Chirico (The Red TowerThe Nostalgia of the Poet), Mondrian (Composition No. 1 with Grey and Red 1938 / Composition with Red 1939), Kandinsky (Landscape with Red Spots, No. 2, White Cross), Miró (Seated Woman II), Giacometti (Woman with Her Throat CutWoman Walking), Klee (Magic Garden), Ernst (The Kiss, Attirement of the Bride), Magritte (Empire of Light), Dalí (Birth of Liquid Desires), Pollock (The Moon Woman, Alchemy), Gorky (Untitled), Calder (Arc of Petals), etc..

Alguns dos quadros, percebemos pelas fotografias espalhadas aqui e ali, estão no mesmo lugar que ocupavam quando Peggy vivia no palácio do Canal Grande e não conseguimos, também nós, deixar de ser voyeurs em relação à sua vida, deixar de ficar fascinados a espreitar as decorações. Se o móbile do Calder ainda nos recebe à entrada sobre as nossas cabeças, já Bird in Space, de Brancusi, está agora na antiga biblioteca, em frente à lareira. A única dúvida sobre este museu que parece perfeito é não conseguir escapar ao sortilégio de fazer aparecer, mesmo que brevemente, a Peggy extravagante, a Peggy dos cãezinhos.

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A peça de Brancusi ocupa um lugar central na missão de comprar uma obra de arte por dia, que Peggy Guggenheim impôs a si própria em 1939, mesmo antes de começar a Segunda Guerra Mundial. A mãe tinha morrido dois anos antes, deixando-lhe uma vasta herança. Peggy já tinha aberto uma galeria em Londres, Marchel Duchamp tornara-se um dos seus primeiros conselheiros e ela escrevia cartas de Paris, onde tinha ido ver a Exposição Universal em que Picasso expôs a Guernica, com a seguinte boutade: “Estou em Paris a trabalhar muito para a minha galeria e a foder.” Peggy, escreve Prose, “corria de atelier em atelier, de compra em compra”.

Brancusi com a guerra à porta

“Se a descrição de Peggy do seu casamento com Laurence Vail está entre os capítulos mais perturbadores das suas memórias, o seu relato das compras antes de a guerra começar em Paris é um dos menos atraentes. Faz parecer as saídas para comprar arte como uma série de escaramuças em que invariavelmente ganha, mantendo-se sempre na sua e esperando que os artistas mudem de ideias.” Era um jogo, em que ela e eles sabiam que a guerra vinha aí, que ninguém fazia ideia do que ia acontecer e em que os próprios artistas receavam ter diante de si o último comprador – “isto presumindo que o seu trabalho iria sobreviver”.

A pergunta da biógrafa é se os relatos são mesmo verdadeiros ou efabulados por Peggy. “Teve dúvidas sobre as pechinchas que conseguia, rebates de consciência que lhe terão parecido demasiado sérios e maçadores para incluir numa narrativa vívida sobre como ultrapassou os alemães e conseguiu reunir uma grande colecção de arte?”

Várias páginas das memórias são dedicadas à mais difícil destas lutas, a compra de Bird in Space, de Brancusi. A coleccionadora cobiçava há muito tempo esta peça que combina movimento e inércia, que procura representar mais o voo do que a figura do pássaro, mas não tinha dinheiro suficiente. O artista romeno pedia 4000 dólares e tiveram “uma discussão terrível”. Um dia, quando os alemães já estavam perto de Paris, Peggy conseguiu comprar a peça, considerada uma das obras-primas da escultura moderna, por uma fracção daquele valor. Brancusi ainda polia a peça à mão, as lágrimas corriam-lhe pela cara, descrevia a coleccionadora, acrescentando que não percebia por que razão estava tão perturbado.

Jackson Pollock foi “uma verdadeira descoberta” da Galeria Art of This Century, que Peggy Guggenheim abriu em 1942 em Nova Iorque, tornando-se um ponto de encontro para os artistas que então trabalhavam na cidade e uma montra para os europeus emigrados e os jovens talentos americanos. Foi Mondrian que insistiu com a coleccionadora sobre a novidade da obra de Pollock: “Peggy, não sei. Tenho a sensação que esta pode ser a pintura mais interessante que vejo em muito tempo, aqui ou na Europa.” Peggy organizou quatro exposições para o artista. “De 1943 até sair da América em 1947, dediquei-me a Pollock”, lê-se na epígrafe do capítulo sobre Pollock.

Quando chegou com a sua colecção à bienal de Veneza, um ano depois, Peggy Guggenheim seria responsável pela apresentação do expressionismo abstracto aos artistas europeus, dando a Pollock, Arshile Gorky e Mark Rothko a oportunidade de mostrarem o seu trabalho pela primeira vez na Europa.

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Peggy Guggenheim em 1964 com dois dos lhasas apsos no átrio do Palácio Venier dei Leoni. Na parede vê-se uma pintura de Picasso e à frente uma peça de Giacometti, além das obras de Pevsener e Calder David Lees/Corbis
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O Palácio Venier dei Leonie visto do Canal Grande Andrea Francolini/Corbis

Três anos depois, em 1951, abre a sua colecção ao público no Palácio Venier dei Leoni, onde já vivia desde 1948. Foi o ano do Angel of the City, de Marini, com o seu falo móvel, entretanto fundido com o corpo da escultura, depois de alguém o ter tentado roubar numa festa. Pelo menos, é essa a história que hoje nos contam no museu.

Peggy Guggenheim morreu em 1979, poucos anos antes do aparecimento da sida, que iria moldar nos anos 80 todo um novo comportamento sexual, em contraste com a revolução a que ela própria assistiu e de que, de certa forma, acabou por ser uma das figuras, na sua persona feminista e libertina. Hoje, essas figuras tornaram-se difíceis de perceber, ainda mais quando são mulheres, mas elas simbolizam, talvez melhor do que ninguém, um mundo que tinha urgência em ser moderno.