A violência com nome de religião

Nestas conversões não é a “morte sem sentido” que se afigura como fim inexorável, mas a morte como forma última, ou única, de sentido.

No início de Março, divulgou-se na comunicação social uma lista com nomes de jihadistas do Daesh, provenientes de países ocidentais. Alguns teriam ascendência portuguesa. Todos viviam em cidades europeias, tendo-se subitamente convertido ao islão. Num noticiário, o jornalista mostrava-se perplexo com a decisão de vida destes jovens, que, citando a peça, não pode conduzir senão a “uma morte sem sentido”.

O fenómeno do “Estado Islâmico” [ISIS] é, indubitavelmente, motivo de perplexidade. Porém, interessa reflectir sobre o que este episódio nos pode sugerir a respeito da violência que se autojustifica com a religião. Em dois milénios de violência dita “religiosa” no mundo ocidental, as linhas de fractura dividiram fiéis de uma e outra religião e, dentro das religiões, as várias interpretações da tradição (ortodoxos e heréticos). O poder estatal foi frequentemente o braço de uma religião ou de uma interpretação da tradição. Este poder abateu-se sobre muçulmanos, judeus, protestantes, católicos heréticos e indígenas. No Ocidente, a modernidade dissolveu estas oposições em mesas redondas ecuménicas, muitas vezes de circunstância, e que nem sempre reflectem as diferenças e desconhecimento entre religiões. Isso mesmo sublinharam vários representantes religiosos num encontro promovido, a 9 de março, pelo Observatório da Religião no espaço Público (Policredos) do Centro de Estudos Sociais (Universidade de Coimbra) na Gulbenkian sobre o tema da violência exercida em nome da religião.

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No início de Março, divulgou-se na comunicação social uma lista com nomes de jihadistas do Daesh, provenientes de países ocidentais. Alguns teriam ascendência portuguesa. Todos viviam em cidades europeias, tendo-se subitamente convertido ao islão. Num noticiário, o jornalista mostrava-se perplexo com a decisão de vida destes jovens, que, citando a peça, não pode conduzir senão a “uma morte sem sentido”.

O fenómeno do “Estado Islâmico” [ISIS] é, indubitavelmente, motivo de perplexidade. Porém, interessa reflectir sobre o que este episódio nos pode sugerir a respeito da violência que se autojustifica com a religião. Em dois milénios de violência dita “religiosa” no mundo ocidental, as linhas de fractura dividiram fiéis de uma e outra religião e, dentro das religiões, as várias interpretações da tradição (ortodoxos e heréticos). O poder estatal foi frequentemente o braço de uma religião ou de uma interpretação da tradição. Este poder abateu-se sobre muçulmanos, judeus, protestantes, católicos heréticos e indígenas. No Ocidente, a modernidade dissolveu estas oposições em mesas redondas ecuménicas, muitas vezes de circunstância, e que nem sempre reflectem as diferenças e desconhecimento entre religiões. Isso mesmo sublinharam vários representantes religiosos num encontro promovido, a 9 de março, pelo Observatório da Religião no espaço Público (Policredos) do Centro de Estudos Sociais (Universidade de Coimbra) na Gulbenkian sobre o tema da violência exercida em nome da religião.

Porém, se em geral as diferenças entre religiões, no Ocidente, não se traduzem hoje em repressão estatal ou em oposições violentas, isto não significa que não tenham surgido novas linhas de divisão, geralmente centradas em problemas internos às religiões, como o sacerdócio das mulheres, no catolicismo, e temas que são classificados como “morais”, pelo menos no universo cristão. É o caso dos direitos LGBT, das discussões em torno de temas como o aborto, a reprodução medicamente assistida e a eutanásia.

É sabido que, actualmente, a extrema-direita na Europa estabelece uma relação unívoca entre violência na religião e islão. Finge-se esquecer que, em países como a Birmânia, a população muçulmana rohingya é vítima de uma perseguição fomentada pelo Estado e alguns monges budistas e que, na Nigéria, há massacres envolvendo cristãos e muçulmanos. Por outro lado, a perseguição a cristãos em países como a Coreia do Norte, a Eritreia, a Síria e o Paquistão; ou a China, que, apesar de formalmente consagrar a liberdade de religião, persegue não só grupos cristãos, mas também os membros do Falun Gong, muçulmanos e budistas tibetanos, é também uma realidade. No Irão e outros países, a fé bahá’í é perseguida; e no Iraque, a comunidade yazidi é vítima do ISIS. Porém, a diversidade de referências religiosas dos países mencionados apela a análises mais complexas no que toca à associação da violência às diferentes religiões e impõe a necessidade de superar visões que estabelecem um corte entre a identidade religiosa e a realidade política.

Na década de 2000, as militâncias ateias em países como a Grã-Bretanha e os Estado Unidos acentuaram a fractura, esta tipicamente moderna, entre religiosos e ateus militantes. Para estes ateus, qualquer religião, mesmo vivida no plano pessoal, fere a racionalidade científica, é mistificadora e contrária ao progresso social. Ora, esta problemática não se confunde com uma quarta fractura, que percorre as paisagens políticas tocadas pela secularização (recuo do religioso para a esfera privada e separação formal entre Estado e Igrejas). Com efeito, as vagas migratórias dos últimos anos reacenderam os debates sobre a identidade europeia e nacional, em que se debatem modelos de laicidade, mais ou menos universalistas ou multiculturalistas. O caso francês é, a este respeito, exemplar. Da direita à esquerda, nenhum interveniente político dispensa, em França, a repetição do mantra da fidelidade à República laica.

As atrocidades recentes cometidas pelos que se dizem jihadistas combatendo pelo ISIS ou pela Al-Qaeda, em nome de Alá, na Europa, África, América e Ásia, e de que muitos muçulmanos são vítima, vêm acrescentar a estas quatro linhas de fractura — entre fiéis de religiões diferentes, entre intérpretes da mesma religião, entre religiosos e ateus, e entre defensores de diferentes modelos de laicidade — uma nova oposição. Trata-se, neste caso, de um diferendo sobre a presença da religião nesta violência, envolvendo diversas interpretações de religião. Integrando-se na análise das causas destes actos, tais interpretações influem nas estratégias que os visam conter e combater.

Aqueles que vêem nesta violência uma componente religiosa descrevem o perigo de um islão fundamentalista e violento. Contra esta interpretação argumentam os que olham para as invocações de Alá e da jihad como uma retórica justificativa sem relação com a religião. Com efeito, a análise dos processos concretos de invocação religiosa por parte das novas identidades violentas chama a atenção para o desenraizamento de alguns destes homens e mulheres que, em muitos casos sendo europeus, se tornam jihadistas, para a injustiça no acesso ao mundo laboral e para a violência quotidiana de que são alvo as pessoas com nomes árabes. Por outro lado, não é possível compreender esta nova violência com nome de religião sem ter em conta a Internet, veículo incontornável de circulação de sentidos e de deslocalização das linguagens e técnicas de morte. Não podemos, igualmente, deixar de equacionar as representações mediáticas. Ora, estes processos retêm muito pouco dos mundos religiosos tradicionais e mesmo dos termos do debate moderno sobre a religião.

A interpretação que dissocia as motivações religiosas do islão é defendida por líderes e responsáveis religiosos, intelectuais, pela generalidade da classe política europeia e por académicos relevantes nos estudos da religião. A inautenticidade ou superficialidade dessas motivações resultaria do autodidactismo e iliteracia religiosa dos recém-convertidos. Robert Pape, James Feldman e Karen Armstrong referem a iliteracia religiosa dos “convertidos” ao ISIS. Por exemplo, dois ingleses ingressados nas suas fileiras teriam encomendado pela Internet, pouco antes de partirem para a Síria, um livrinho chamado Islam for Dummies. A partir de uma posição de esquerda, mas sublinhando, pelo contrário, a necessidade de levar a sério a “energia religiosa” destes convertidos, Jean Birnbaum critica nestas posições a desvalorização das motivações expressas pelos autoproclamados jihadistas. Para este autor, tal posição resulta de uma tradição marxista tendente a ver no discurso religioso a ideologia das “verdadeiras causas”, económicas e sociais. Para Birnbaum, se a posição é criticável no plano teórico — as razões e motivações podem também ser causa de acção —, o seu problema principal estaria na negação de alguns dados empíricos. O autor acrescenta que, se é certo que alguns dos convertidos sabem pouco do islão e se encontram em posições precárias ou subalternas, outros há que têm cursos superiores, boas condições de vida e um conhecimento da religião por que dizem lutar documentado por uma prática religiosa longa e por boas bibliotecas pessoais.

Há, pois, nestes debates sobre a violência com nome de religião uma guerra de interpretações sobre o que é a religião e que se reflecte no modo como interpretamos a violência feita em seu nome. Porventura, este diferendo ressoava já nas quatro linhas de fractura religiosa atrás enunciadas, tornando-o apenas mais visível. A este respeito, é oportuno citar de novo Karen Armstrong, que lembra que o conceito de religião geralmente utilizado nestes debates — como sistema de crenças e rituais implicando um envolvimento afectivo dos indivíduos — existe apenas num caso histórico, o de algumas Igrejas cristãs reformadas. Seria artificioso prescindirmos da noção de religião para olhar para algumas destas formas de violência. Mas não nos devemos esquecer de a completar e qualificar de acordo com os contextos e tradições religiosas em análise.

Assim, questões como a “lista dos jihadistas” e da dimensão religiosa dos atentados devem remeter para uma série de questões mais afinadas. Quem são estes convertidos? Quais as suas trajectórias? De que forma “receberam” o islão? E que islão é esse? É necessário ainda olhar para um problema que se situa aquém da violência em nome de Alá. Porque é que para tantos o suicídio e a “morte em nome de...” parecem fazer mais sentido do que a vida? Nestas conversões não é a “morte sem sentido” que se afigura como fim inexorável, mas a morte como forma última, ou única, de sentido.

NOTA: o debate “Violência religiosa e violência com nome de religião” decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian no dia 9 de Março de 2016, contando o com a presença de Abel Pego (pastor da Igreja Evangélica Baptista de Cedofeita), António Matos Ferreira (professor universitário), Boaventura de Sousa Santos (sociólogo), David Munir (imã da mesquita de Lisboa), Ludwig Krippahl (Associação Ateísta Portuguesa). A gravação em vídeo do debate será disponibilizada no site do Observatório Policredos.

Coordenadores do Observatório Policredos, Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado Universidade de Coimbra

 

NOTA: o debate “Violência religiosa e violência com nome de religião” decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian no dia 9 de Março de 2016, contando o com a presença de Abel Pego (pastor da Igreja Evangélica Baptista de Cedofeita), António Matos Ferreira (professor universitário), Boaventura de Sousa Santos (sociólogo), David Munir (imã da mesquita de Lisboa), Ludwig Krippahl (Associação Ateísta Portuguesa). A gravação em vídeo do debate será disponibilizada no site do Observatório Policredos.

 

Referências:

Karen Armstrong (2014), Fields of Blood. Religion and the History of Violence.

Robert Pape (2005), Dying to Win. The Strategic Logic of Suicide Terrorism.

Robert Pape e James K. Feldman (2010), Cutting the Fuse: The Explosion of Global Suicide Terrorism and How to Stop It.

Jean Birnbaum (2016), Un silence religieux. La gauche face au djihadisme.