Na Ameixoeira as crianças dizem que é o diabo que leva as pessoas a ter armas
Sangue seco no chão. Marcas de balas nos carros. Alguma revolta. Uma manhã quase normal no bairro da Ameixoeira, onde três polícias foram alvejados e duas civis também.
Há duas ou três coisas que saltam à vista numa primeira incursão à chamada “zona 6” do bairro da Ameixoeira, em Lisboa. Raramente passam carros e transportes públicos nunca. Quase não há lojas a funcionar. A intenção inicial de ter nos pisos térreos dos prédios espaços de comércio não resistiu nem à falta de clientes nem à insegurança. A maior parte dos moradores são de etnia cigana. Não se avista polícia — mesmo no final de manhã desta quarta-feira, não muitas horas depois de estas mesmas ruas terem sido palco de um tiroteio.
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Há duas ou três coisas que saltam à vista numa primeira incursão à chamada “zona 6” do bairro da Ameixoeira, em Lisboa. Raramente passam carros e transportes públicos nunca. Quase não há lojas a funcionar. A intenção inicial de ter nos pisos térreos dos prédios espaços de comércio não resistiu nem à falta de clientes nem à insegurança. A maior parte dos moradores são de etnia cigana. Não se avista polícia — mesmo no final de manhã desta quarta-feira, não muitas horas depois de estas mesmas ruas terem sido palco de um tiroteio.
Um tiroteio que não é assim tão comum em Portugal: três agentes da PSP e dois civis foram baleados na noite de terça-feira e foi mantido durante horas um cordão de segurança que impedia a circulação. Dois suspeitos permanecem em fuga. Uma das mulheres apanhadas no fogo cruzado terá sido surpreendida quando saía de casa para arrumar na sua carrinha a roupa que ia vender na feira no dia seguinte. A poça com o sangue dela, já seco, junto à viatura branca perfurada pelas balas, ainda lá está.
Perto do sangue seco, um grupo de raparigas, entre os 7 os 11 anos, assiste ao vaivém de jornalistas — andam todas no 2.º ano do ensino básico. Uma delas, de 9 anos, pôs o batom cor-de-rosa mais brilhante que tinha em casa e explica: não gosta de viver no bairro, “há muitas zangas e às vezes tiros”.
A irmã, de 11 anos, mais discreta, continua: não faltam armas no bairro, a família dela também costumava ter, sim, mas agora não. “Desde que começamos a ir ao culto deixámos de ter armas em casa, porque Deus não gosta de armas, é o diabo que quer que as pessoas tenham armas.” E prossegue: “Vamos ao culto [evangélico] todos os dias, às oito da noite, eu e a minha família, o meu pai, a minha mãe, os meus irmãos, as minhas tias e, todos juntos, oramos. O pastor é cigano, claro, todos no culto lá são ciganos...”
Os ciganos aleluia acreditam que são melhores do que os outros
À rapariga de 11 anos junta-se outra rapariga, de 8: “não ponha aí o meu nome” — é o que todos dizem. As duas contam que as respectivas famílias não se dão bem, porque a da segunda assaltou a casa da primeira, em tempos. Mas elas, as duas miúdas, continuam amigas, até andam na mesma turma, ali na escola das Galinheiras, que fica perto. O resto é coisa de adultos.
“Se vier cá no fim do ano vai ver como toda a gente usa uma arma para celebrar, tiros para o ar”, diz uma mulher, como que em segredo, no hall de entrada da sua casa quando se lhe pergunta se há muitas armas no bairro — veio há anos para estes prédios de habitação social, vinda de um país africano de língua oficial portuguesa. Vive do Rendimento Social de Inserção, da ajuda do Banco Alimentar. “Não ponha aí o meu nome, que já me assaltaram a casa três vezes.”
5000 habitantes, diferentes etnias
Estamos numa parte do Bairro PER da Ameixoeira — PER é a sigla para Programa Especial de Realojamento —, que ocupa uma área de 92,5 hectares, com cerca de 5000 habitantes (1800 famílias), tendo as comunidades ciganas e africanas “grande expressão”. A informação consta de um relatório de 2012 da Câmara de Lisboa e da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Lisboa, feito no âmbito da Agenda 21 Local, um instrumento para a promoção do desenvolvimento sustentável a nível local. Chama-se Plano de Acção 21 e estrutura de monitorização do Bairro PER da Ameixoeira.
O relatório aponta problemas, como “deficiências da rede de acessibilidade”, níveis elevados de pobreza, escassez de “equipamentos e serviços destinados a satisfazer as necessidades específicas da população”, algumas “actividades ilícitas praticadas” no interior do bairro. “Mas não foi sempre assim”, diz uma avó, de camisola azul forte, com o neto pela mão, à entrada de um dos prédios da zona 6. Veio para o bairro quando ele estava “ainda novinho”.
Até meados dos anos 50 do século XX esta zona, que nesta quarta-feira o vento frio varre sem piedade, estava cheia de quintas. Nos anos que se seguiram surgiu o bairro camarário das Galinheiras que serviu para realojar a população que residia na área que o aeroporto da Portela foi ocupando. “Em seguida, como resultado do êxodo rural verificado por todo o país, cresceram, de forma dispersa, outros núcleos de habitação (Quinta da Torrinha e Alto do Chapeleiro) em torno do Bairro das Galinheiras”, lê-se no relatório. “Em virtude da demolição de construções provisórias, construções menos dignas e outras construções ilegais, procedeu-se à construção de vários lotes de habitação social no âmbito do PER destinados ao realojamento de pessoas oriundas do antigo bairro das Galinheiras, mas também de outros territórios da grande Lisboa.” O processo de realojamento terminou em Dezembro de 2003.
“Não falem mal do bairro”
A avó de camisola azul forte que leva o neto pela mão — ela não trabalha, o marido trabalha na construção civil — vivia numa das casas demolidas das Galinheiras e diz que era bem melhor lá. “Até deixávamos a porta de casa aberta, era seguro, era como uma aldeia. Havia ciganos e não ciganos e não havia problemas. Depois viemos para aqui e no início também era calmo. Mas as coisas foram piorando.” Ela não é de etnia cigana. Como outros moradores, diz que foi “a mistura” de pessoas de outras zonas — mais do que de diferentes etnias — que não resultou.
“Há problemas entre os ciganos e problemas entre os que são iguais a vocês e problemas entre os africanos”, afirma mais à frente uma mulher de 42 anos, determinada, quase irritada, vestida de negro da cabeça aos pés. Passou a manhã sentada com várias vizinhas à porta de casa, a ver quem passava. Quase todas dizem ser vendedoras.
“O problema é que não há polícia, devia haver mais polícia”, afirma uma moradora mais recente — 10 meses de bairro apenas, 22 anos de idade. Não anda na escola nem trabalha, “para já”. Vive com uma avó.
“Não falem mal do bairro!”, grita-lhes um homem ao longe.
Na Rua António Vilar — “Morte aos xibos”, alguém escreveu no chão em letras garrafais —, onde os tiros começaram, houve na terça-feira à noite buscas feitas pela polícia, em alguns apartamentos, segundo alguns moradores, mas há muitos moradores que simplesmente permanecem em silêncio quando se lhes pergunta alguma coisa. “Não sou de cá.”
“Até o alcatrão derrete”
No fim da rua, um grupo de homens fala dos tiros. Alguns mostraram aos jornalistas, ainda na terça-feira, as gravações de uma câmara de videovigilância da única loja que encontrámos aberta nesta zona do bairro — uma mercearia. As imagens mostravam polícias fardados e armados, a abrigarem-se na loja, a voltarem a sair e a entrar.
Os homens garantem que foram os polícias que atingiram pelo menos uma das mulheres — já depois de três polícias terem sido atingidos por moradores. “Vocês estão a dar as informações todas mal”, lamenta um, pai de duas meninas de olhos claros e cabelos longos. Parecem gémeas, mas não são, “têm 5 e 6 anos”.
Um gaba-se de já ter vendido as imagens da videovigilância a uns jornalistas por 500 euros. Outro garante, revoltado: “Se alguma das mulheres morre, vai haver guerra.” É uma espécie de recado que quer que os jornalistas registem. “Vai ser pior do que em França.” O pai das meninas perde a paciência: “Mas porque é que estão a dizer isso aos jornalistas! Isso é mentira.” O mais velho do grupo, que não está em pé e encostado aos carros como os restantes, está dentro de um dos automóveis, insiste: “Até o alcatrão derrete”.
As informações oficiais dizem que três dos cinco feridos que deram entrada no hospital na terça à noite permanecem internados em situação estável. Dois dos polícias tiveram alta. O terceiro agente realizou uma cirurgia, mas encontra-se “livre de perigo” e as duas civis — uma atingida no abdómen e outra na zona da cabeça e pescoço — foram igualmente alvo de intervenções cirúrgicas, encontrando-se ambas estáveis.
A zanga entre elementos das duas famílias, segundo fonte policial, terá começado à hora do almoço de terça-feira por motivos que a Polícia Judiciária ainda está a apurar. As duas famílias estarão desavindas há vários anos — aliás, a PSP tem sido frequentemente chamada àquele bairro por causa de desacatos entre elas.
À hora do jantar — pelas 19h40 — começaram os tiros. Três agentes “que faziam parte da equipa que estava mais perto do local, tendo sido os primeiros a chegar ao bairro”, depararam-se com “a situação de confronto entre dois grupos com armas de fogo”, explicou o porta-voz da Direcção Nacional da PSP. Foram baleados mal chegaram. Estavam à civil, num carro descaracterizado. Mais polícias apareceram depois.
A Inspecção-Geral da Administração Interna anunciou a abertura de um inquérito para apurar “todos os factos”.
Pontos fortes
A “forte dinâmica do Grupo Comunitário das Galinheiras e Ameixoeira”, que integra várias associações, e o envolvimento dos residentes nas iniciativas do grupo era um dos aspectos positivos realçados no relatório “Plano de Acção 21”. Isso e a grande quantidade de pessoas jovens que vivem no bairro.
Já o “abandono escolar precoce”, a “elevada percentagem da população empregada em profissões pouco especializadas” e a “elevada percentagem de residentes dependentes de subsídios e outras formas de apoio social”, aliados ao “sentimento de insegurança”, eram dos aspectos negativos sublinhados.
Irene Ribeiro, presidente da associação Áster — uma associação de artistas e professores que trabalham em gravação e serigrafia — foi para o bairro para que a associação tivesse um atelier onde pudesse trabalhar, a uma renda que pudesse suportar. Não tem apoio para trabalhar com os moradores, mas não deixa de fazer algumas actividades com eles, às vezes. “Sempre que podemos convidamos os nossos vizinhos.”
Os resultados estão à vista nalguns prédios da "zona 6", que nas suas entradas têm painéis de azulejos com mãos coloridas gravadas, as mãos dos moradores, e poemas — “...nas tuas mãos começa a liberdade” (Manuel Alegre), lê-se num deles. Com Pedro Sales Dias