A parada de grotescos de Matteo Garrone
Depois de Gomorra e Reality, Matteo Garrone tropeça com um filme sumptuoso mas estéril: O Conto dos Contos abre esta quarta-feira a Festa do Cinema Italiano.
Parte grande do problema com que o cinema italiano se tem debatido desde o final da sua “idade de ouro” é, precisamente... ter tido uma idade de ouro. Isto é, tem de se medir com uma história e com uma herança específicas e aclamadas, que projectam uma sombra muito longa sobre tudo o que veio depois. A geração de Matteo Garrone – da qual constam também Paolo Sorrentino ou Luca Guadagnino, para falar apenas dos nomes com maior projecção – tem um mérito: não enjeita essa herança, preferindo convocá-la para melhor se confrontar com ela (independentemente do resultado final). Em O Conto dos Contos, Garrone não faz a coisa por menos: em co-produção falada em inglês (com um elenco que inclui Salma Hayek, John C. Reilly e Vincent Cassel), atira-se de cabeça ao grotesco Felliniano e ao dionisíaco Pasoliniano. O filme cruza em adaptação livre três fábulas napolitanas recolhidas no século XVII por Giambattista Basile e incluídas num livro conhecido também como Pentameron (por mais que tentássemos seria inevitável pensar no Satyricon de Fellini ou no Decameron de Pasolini...).
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Parte grande do problema com que o cinema italiano se tem debatido desde o final da sua “idade de ouro” é, precisamente... ter tido uma idade de ouro. Isto é, tem de se medir com uma história e com uma herança específicas e aclamadas, que projectam uma sombra muito longa sobre tudo o que veio depois. A geração de Matteo Garrone – da qual constam também Paolo Sorrentino ou Luca Guadagnino, para falar apenas dos nomes com maior projecção – tem um mérito: não enjeita essa herança, preferindo convocá-la para melhor se confrontar com ela (independentemente do resultado final). Em O Conto dos Contos, Garrone não faz a coisa por menos: em co-produção falada em inglês (com um elenco que inclui Salma Hayek, John C. Reilly e Vincent Cassel), atira-se de cabeça ao grotesco Felliniano e ao dionisíaco Pasoliniano. O filme cruza em adaptação livre três fábulas napolitanas recolhidas no século XVII por Giambattista Basile e incluídas num livro conhecido também como Pentameron (por mais que tentássemos seria inevitável pensar no Satyricon de Fellini ou no Decameron de Pasolini...).
Estamos longe do realismo trabalhado do filme que revelou Garrone ao grande público, Gomorra (2008), mas as três histórias (ambientadas em reinos medievais contíguos e envolvendo as ambições e frustrações dos seus monarcas) não andam com pezinhos de lã: sente-se algo de fantasia libertária dos anos 1970, explorando sem pejo as ligações entre o erotismo e a morte, pontualmente evocando a dimensão do body horror do Cronenberg pós-Mosca (não deve ser por acaso, a fotografia pertence a Peter Suschitzky, colaborador regular do canadiano). Se a ambição de Garrone é não só louvável como meritória (continuamos a preferir um filme que tropeça por tentar fazer algo de diferente a um mais-do-mesmo convencional), O Conto dos Contos não gere da melhor maneira os elementos que procura equilibrar. É um embrulho sumptuoso e requintado, magnificamente realizado (décors de Dimitri Capuani, figurinos de Massimo Cantini Parrini), mas cujo cuidado esteta parece sufocar a dimensão telúrica, selvagem, dos desejos fervilhantes e possessivos que comandam as decisões das personagens que lhe estão no centro, dispostas a tudo para alcançarem os seus objectivos.
O Conto dos Contos torna-se assim numa espécie de parada de grotescos cuja vertente fantasiosa/fantástica quase anula o lado humano e emocional que fez de Gomorra e do seu sucessor Reality (2012), comprazendo-se numa esterilidade que enche o olho mas deixa o espectador com fome, que se inscreve numa linhagem mas nunca a desafia como os filmes anteriores. É um passo atrás para um realizador indubitavelmente talentoso.