Isto não é uma banda-sonora
João Lobo não assinou a banda-sonora de John From. O baterista foi o director musical do filme. A distinção é importante. O guião contaminou a música, a música contaminou o filme.
As adolescentes fazem coisas de adolescentes. Ouvem música, programam saídas à noite, percorrem as ruas de sempre do bairro a pensar em paragens mais interessantes. Aborrecem-se, divertem-se, zangam-se, flirtam, destratam os pais. Rua acima, rua abaixo, mão no iPod, cabeça no ar. Adolescentes são adolescentes e Telheiras é Telheiras, bairro de vida recente enfiado entre a Padre Cruz, Campo Grande, e a Segunda Circular que atravessa a cidade de ocidente a oriente, o espaço ocupado (literalmente) por John From, o novo filme de João Nicolau.
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As adolescentes fazem coisas de adolescentes. Ouvem música, programam saídas à noite, percorrem as ruas de sempre do bairro a pensar em paragens mais interessantes. Aborrecem-se, divertem-se, zangam-se, flirtam, destratam os pais. Rua acima, rua abaixo, mão no iPod, cabeça no ar. Adolescentes são adolescentes e Telheiras é Telheiras, bairro de vida recente enfiado entre a Padre Cruz, Campo Grande, e a Segunda Circular que atravessa a cidade de ocidente a oriente, o espaço ocupado (literalmente) por John From, o novo filme de João Nicolau.
Não é história de aventura em alto mar, como a primeira longa, A Espada e a Rosa (2010), e não é conto de inércia deprimida na chegada à idade (mais ou menos) adulta, como em Rapace. Mas tal como nessa curta de 2006, Telheiras é personagem, e tal como nela, descobriremos coisas no bairro de que não suspeitávamos – o que fazem uma exposição fotográfica sobre a Melanésia e uma paixoneta adolescente. A fantasia vai passar por ali, vai contaminar o espaço e as pessoas até que ele e elas sejam uma outra coisa, processo que decorre ao som de música tradicional das ilhas da Melanésia e de canções a passarem-se por melanésias, ao som de electrónica para dançar sexta à noite e de dub-reggae, ao som de pop solar delicada, de música a dar-lhe no exotismo como se fazia nos anos 1940 e 1950, da memorável Lambada, dos Kaoma, que fechou a década de 1980 e que, na verdade, nunca nos abandonou.
A música tem lugar de destaque no cinema de João Nicolau, realizador que, de resto, é também músico – ouvimo-lo nos München, nos Silence is a Boy, no Secret Museum of Mankind. John From reafirma-o. Não só porque Rita (Júlia Palha) e Sara (Clara Riedenstein) são adolescentes e, sendo adolescentes em 2016, a música é omnipresente nas suas vidas, fruída e utilizada muito de acordo com o tempo – que se pegue então um iPod para jogar à versão tecnologicamente evoluído do “bem-me-quer-mal-me-quer”. Não, não só por isso. “A ideia era a música ir sendo feita ao mesmo tempo que o filme”, diz João Lobo.
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Com formação jazz mas músico de horizontes vastos, Lobo foi o director musical de John From. O termo que designa a função é aqui importante. “Ele [João Nicolau] não queria um compositor de bandas-sonoras, queria alguém com quem pudesse colaborar. Alguém que fizesse a direcção musical, num trabalho cena a cena, género [musical] a género [musical]. O meu objectivo não era seguir uma linha artística, o meu objectivo foi servir o filme o melhor possível”.
Hoje habitante de Bruxelas, onde recebeu o telefonema do Público, João Lobo tem a bateria como primeiro instrumento. Ainda não sabe exactamente porque João Nicolau o convidou para John From, mas deixa escapar que “é capaz de ter a ver com o facto de eu fazer várias coisas”. De facto. O seu talento valeu-lhe rasgados elogios do contrabaixista Carlos Bica ou do trompetista italiano Enrico Rava. Mas o seu trabalho extravasa as fronteiras do jazz: integrou os supracitados München, tocou rock com rédea solta nos Norman partilhados com Norberto Lobo e Manuel Lobo, editou com Norberto os álbuns Mogul de Jade e Oba Loba. No Verão, lançará pela editora suiça three:four um álbum de bateria acústica – “é arriscado, mas estou muito contente com o resultado”.
Foi a partir de Bruxelas que a música que completa John From começou a ser preparada. Ali recebeu o guião, ali preparou a música e os sons cuja presença em determinadas cenas estava já prevista. Sozinho no quarto com um pequeno gravador de pistas, ou recorrendo à “sua” comunidade musical belga; ouvindo o que lhe enviava João Nicolau, música tradicional da Melanésia, região da Oceânia onde encontramos a Nova Guiné, as Ilhas Salomão, Vanuatu ou Fiji (“uma das coisas que me deu mais gozo foi descobrir e trabalhar aquela música”); João Lobo foi também criando peças sonoras, sem espaço destinado no filme, mas que acabaram por encontrar lugar nele.
“Houve cenas alteradas pela música entretanto criada, houve cenas criadas porque o João Nicolau gostava de uma canção e queria incluí-la”. Contaminação, síntese, transformação – o mesmo processo que, de resto, vemos decorrer no filme. Um novo lugar. “Nunca me passou pela cabeça tentar reproduzir igual [a música tradicional melanésia]. O que gostei no resultado final é que não se percebe exactamente de onde aquilo vem”. Precisamente. Kikori, Honiara, Noumea. Ouvimos e não distinguimos os registos tradicionais daquilo que João Lobo compôs para o filme. E damos por nós a pensar se já ouvimos aquela canção reggae ou aquela melodia pop em algum lado – temos a certeza que a Lambada é mesmo a Lambada.
O músico em Bruxelas acabaria novamente em Telheiras. A sua presença era necessária para dirigir uma cena importante - Sara ao órgão acompanhada por coro amador. Ao contrário de João Nicolau, ainda hoje habitante do bairro, João Lobo foi nele estudante, no Colégio Alemão, mas nunca seu habitante. Ainda assim, conhece-o bem. “Musicalmente também cresci ali: os Norman são de Telheiras, os München também”.
Telheiras? “É um bairro de classe média de professores universitários, que gerou uma geração que cresceu relativamente confortável. Por alguma razão havia ali muitas pessoas criativas, com quem aprendi muito. A música, o cinema, está tudo interligado”. Fala de Norberto Lobo e do irmão Manuel, de Mariana Ricardo, irmã de João Nicolau, música e argumentista para, por exemplo, Miguel Gomes, ou de Joana Sá, que co-fundou com Mariana os Pinhead Society, nos anos 1990, e que prosseguiu depois carreira como pianista. Pensa em voz alta: “Não é um bairro especialmente bonito e é longe do centro, se bem que agora com o metro isso tenha mudado um pouco. Há um certo mistério... Pois, é misterioso”. Palavra muito adequada para falar de John From. É e não é o bairro que conhecemos. É e não é um bairro qualquer. Mistério.