Nikolai Vavilov: o primeiro guardião da biodiversidade vegetal

É pouco conhecido do grande público. Mas foi o primeiro cientista a perceber que, para salvar a humanidade da fome, era imperativo conservar a biodiversidade genética das plantas cultiváveis do mundo inteiro em “bancos de sementes”. Ironicamente, morreu de fome na prisão durante o estalinismo.

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Todos (ou quase) terão ouvido falar, nos media, do grande Cofre-Forte de Sementes Global de Svalbard, uma espécie de congelador gigante, de aspecto futurista, construído numa zona montanhosa do Árctico. Inaugurado em 2008, tem como objectivo proteger o maior número de espécies cultiváveis úteis do mundo – como feijões, arroz ou trigo –, contra as piores calamidades que possam acontecer, de forma a preservar o sustento alimentar da humanidade. Mas o que quase ninguém sabe é que essa ideia de preservação da biodiversidade agrícola nasceu há um século na cabeça de um cientista russo.

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Todos (ou quase) terão ouvido falar, nos media, do grande Cofre-Forte de Sementes Global de Svalbard, uma espécie de congelador gigante, de aspecto futurista, construído numa zona montanhosa do Árctico. Inaugurado em 2008, tem como objectivo proteger o maior número de espécies cultiváveis úteis do mundo – como feijões, arroz ou trigo –, contra as piores calamidades que possam acontecer, de forma a preservar o sustento alimentar da humanidade. Mas o que quase ninguém sabe é que essa ideia de preservação da biodiversidade agrícola nasceu há um século na cabeça de um cientista russo.

Foi precisamente em 1916 que Nikolai Vavilov, biólogo, geneticista, geógrafo, agrónomo e especialista do melhoramento das espécies vegetais partiu para a Pérsia (actual Irão) na sua primeira expedição, para recolher sementes cultivadas em regiões mais e menos “exóticas”. Essa sua actividade intensa de exploração dos quatro cantos do globo continuaria ao longo da sua vida e conduziria à criação, já em 1924 em São Petersburgo (então Leningrado), do primeiro banco de sementes do mundo.

“O sonho de Vavilov era acabar com a fome no mundo e o plano que tinha para o conseguir consistia em utilizar a ciência emergente da genética para gerar ‘super-plantas’, capazes de crescer em todos os locais e em todos climas – dos desertos de areia às gélidas tundras, durante secas ou inundações”, lê-se no site da cadeia global de televisão Russia Today. E para o poder fazer, o cientista precisava de trazer para o seu laboratório a diversidade genética global.

Coleccionador de plantas

Nikolai Vavilov nasceu em Moscovo a 25 de Novembro de 1887. O seu pai era um “próspero homem de negócios tornado milionário”, lê-se numa recensão de 1994, na revista Nature, da primeira da tradução em inglês (publicada em 1992) dos mais importantes trabalhos de Vavilov, coligidos sob o título de Origin and Geography of Cultivated Plants. Depois de acabar o curso no Instituto de Agricultura de Moscovo, Vavilov passou quase um ano, entre 1913 e 1914, no Reino Unido, no laboratório de William Bateson, pioneiro da genética moderna – e que cunhara aliás a palavra “genética” em 1901.

Quando estalou a Primeira Guerra Mundial, Vavilov regressou a Moscovo e, na Universidade de Saratov, (cidade situada a uns 700 quilómetros a sudeste de Moscovo, nas margens do rio Volga) começou a fazer investigações sobre a resistência das plantas às doenças, lê-se ainda na Nature, “virando-se depois para o estudo dos parentes selvagens das plantas cultivadas e formulando a ideia de que todas as plantas domesticadas tinham surgido em áreas de actividade humana na pré-história”. E foi para demonstrar esta hipótese que Vavilov organizou expedições “para sítios onde supostamente tinham assentado as povoações humanas mais antigas”. Identificou assim, primeiro cinco “centros de origem” das plantas cultiváveis. Mais tarde, esse número aumentou para sete ou oito (segundo as fontes).

A paixão de Vavilov pelas plantas vinha de longe. “Vavilov começou a coleccionar plantas durante a infância: tinha um pequeno herbário em casa”, escrevia em 1991 Barry Mendel Cohen (que fizera a sua tese de doutoramento sobre o cientista) num texto publicado na revista Economic Botany.

“Contudo”, prossegue Cohen, “a primeira verdadeira expedição destinada à recolha de plantas foi a sua viagem à Pérsia em 1916” – em plena Primeira Guerra Mundial. Vavilov não fora recrutado pelo exército por razões de saúde e o Ministério da Agricultura decidira então enviá-lo em missão à Pérsia.

Aquela expedição, que durou de Maio a Agosto, foi certamente uma aventura, salienta Cohen. “Primeiro, Vavilov ficou detido na fronteira durante três dias pelas autoridades russas, porque transportava com ele alguns manuais em alemão e mantinha um diário escrito em inglês” – um hábito que tinha adquirido durante a sua estadia no Reino Unido. Vavilov “foi acusado de ser um espião alemão e só foi libertado quando chegou a confirmação oficial da autenticidade dos seus documentos”, acrescenta Cohen.

Mas as peripécias não se ficaram por aí. “A sua caravana percorreu áreas de deserto onde a temperatura ultrapassava os 40 graus Celsius à sombra e chegou a estar a entre 40 e 50 quilómetros da frente de guerra da fronteira russo-turca”, diz ainda Cohen.

A julgar pela lista dos destinos que visitou até ao início dos anos 1930, Vavilov não tinha medo das situações perigosas (fossem elas devidas à topografia, ao clima, aos conflitos ou simplesmente à vulgar criminalidade local) em que por vezes se via envolvido.

Visitou mais de 64 países e aprendeu 15 línguas para conseguir falar directamente com os agricultores. “Foi um dos primeiros cientistas a ouvir realmente os agricultores tradicionais, a gente do campo de todo o mundo, para saber por que é que achavam que a diversidade das sementes era importante nos seus campos ”, declarou em 2010, numa entrevista à rádio pública norte-americana, o ecologista e botânico Gary Paul Nabham, autor de uma biografia de Vavilov.

Depois da Pérsia, sempre a recolher espécies locais, Vavilov fez várias viagens aos Montes Pamir da Ásia Central; atravessou territórios nunca antes explorados do Afeganistão; percorreu países da zona mediterrânica, europeus (incluindo Portugal) e não só. No Sul da Síria, contraiu malária. Esteve na Palestina e, em África, foi até à Abissínia (na actual Etiópia), onde apanhou tifo. Também organizou expedições à China, Japão, Coreia, Taiwan, América do Norte, Central e do Sul. 

Diga-se ainda que, em 1921, foi convidado a assistir, com outro colega russo, ao Congresso Americano de Patologista dos Cereais – “um convite de histórica importância”, diz Cohen, “na medida em que foi o primeiro exemplo de cooperação científica entre os Estados Unidos e a recém-criada União Soviética”. O convite também mostra que o trabalho de Vavilov já era, naquela altura, reconhecido fora da Rússia.

Lisenko, inimigo mortal

A partir de 1920 e durante 20 anos, Vavilov dirigiu a Academia Lenine de Ciências Agrícolas da União (mais tarde rebaptizada Instituto Vavilov da Indústria Vegetal da União em sua honra), com sede em Leningrado. Criou 400 estações experimentais, espalhadas por toda a União Soviética e onde trabalhavam cerca de 20.000 pessoas. Publicou centenas de artigos de genética, biologia, geografia e selecção vegetal.

Ao longo de 16 anos de périplos, Vavilov e os seus alunos recolheram umas 200.000 amostras de sementes oriundas da União Soviética e do resto do mundo, que a seguir foram organizadas e estudadas nas diversas estações. “Foi assim que nasceu o primeiro banco mundial de genes de plantas do mundo”, lê-se ainda na já referida recensão da Nature, da autoria do norte-americano Valery Soyfer, da Universidade George Mason.

Mas a partir de 1935, aquele que seria o maior inimigo de Vavilov – e aliás da genética e das ciências da vida soviéticas – começou a ensombrar a vida pessoal e profissional de Vavilov: Trofim Lisenko (1898-1976).

Ao contrário de Vavilov, que era de família burguesa e portanto suspeito – Lisenko era de origem camponesa e tinha conseguido fazer um curso de agronomia. De facto, o próprio Vavilov começou por louvar e promover o trabalho de Lisenko por achar que ele era um digno “filho” da revolução bolchevique.

Em poucos anos, Lisenko tornou-se o “cientista” favorito de Estaline e o promotor de uma “genética soviética” que negava a própria existência dos genes e do ADN. Lisenko também fazia pouco da selecção natural, o processo basilar da teoria da evolução emitida por Darwin em meados do século XIX.

Como explicava Soyfer em 1989, num outro artigo na Nature, hoje ninguém duvida que as actividades de Lisenko tenham contribuído para a destruição das ciências agrícolas, biológicas e até médicas na União Soviética.

Porém, no início da sua ascensão, Lisenko conseguiu uma aparente vitória contra a fome que alastrava na URSS devido à colectivização forçada da terra. E em 1929, anunciou que uma técnica da sua invenção, dita de “invernalização”, iria permitir fazer florescer em pleno inverno o trigo que normalmente só desabrochava na Primavera. O método não foi validado e acabou por não cumprir as promessas de Lisenko de aumento da produção. Mas ele não estava disposto a arcar com a responsabilidade do falhanço e o culpado escolhido seria Vavilov, o homem que tanto contribuíra para o celebrizar. Lisenko tinha-se tornado o seu inimigo mortal.

Assim, após o seu regresso do México, em 1933, Vavilov foi proibido de empreender novas viagens. E a partir de 1934, Lisenko fez dele “o bode expiatório pelas desastrosas políticas agrícolas de Estaline”, lia-se na revista Science em 2008.

Quando Vavilov percebeu o que estava a acontecer, começou a criticar a “ciência” de Lisenko, numa controvérsia que culminaria com a “vitória” do pseudo-cientista Lisenko – e com uma tragédia: a detenção de Vavilov a 6 de Agosto de 1940 pela polícia secreta soviética.

“Vavilov estava a recolher amostras de plantas na Ucrânia” quando foi detido, escrevia em 2008 na Nature Jan Witkowski, geneticista do Laboratório de Cold Spring Harbor (EUA), a propósito da publicação de um livro sobre o assassínio de Vavilov. Transferido para Moscovo, foi submetido a um terrorífico interrogatório durante 11 meses. Em Julho de 1941, Vavilov e dois dos seus colegas foram condenados à morte. Os colegas foram fuzilados, mas a sentença de Vavilov acabou por ser comutada em 20 anos de prisão… na cadeia de Saratov, aquela mesma cidade onde tinha iniciado a sua carreira 26 anos mais cedo. Sobreviveu dois anos numa cela subterrânea e sem janelas, em condições tais que contraiu escorbuto.

Vavilov morreu de fome em Saratov a 26 de Janeiro de 1943, aos 55 anos de idade. Nem a própria mulher, que voltara a residir em Saratov, sabia que o marido estava ali tão perto.

Vavilov só seria parcialmente reabilitado – e Lisenko definitivamente desacreditado – em 1965 pelo então presidente da URSS Leonid Brejnev, sob a pressão de dissidentes russos como o físico Andrei Sakharov e o escritor Alexandre Soljenitsyne, explica ainda Barry Mendel Cohen.

A ausência de Vavilov não passou despercebida a nível internacional. O próprio Winston Churchill fez vários apelos a Estaline para saber o que tinha acontecido a Vavilov. E, numa carta publicada na revista Science a 21 de Dezembro de 1945, Karl Sax, da Universidade de Harvard (EUA), perguntava: “Onde está Vavilov, um dos maiores cientistas da Rússia e um dos maiores geneticistas do mundo? Vavilov fora eleito presidente do Congresso Internacional de Genética, que decorreu em Edimburgo em 1939, mas não apareceu e desde então não temos tido notícias dele. Recebemos agora a informação da nossa Academia Nacional das Ciências de que Vavilov morreu. Como morreu e porquê?”

Alguns colegas de Vavilov já tinham tido o mesmo destino trágico do que ele – não na prisão, mas no cerco de Leningrado pelas tropas nazis, de 1941 e 1944, que matou à fome dezenas de milhares de cidadãos.

Numa outra carta publicada na Science em 2003, apelando a Vladimir Putin para salvar a preciosa colecção do Instituto de Leningrado (que esteve à beira de ser demolido por promotores imobiliários), três antropólogos norte-americanos resumiam o que acontecera àqueles cientistas: “Apesar de sofrerem eles próprios de subnutrição grave e apesar de trabalharem a poucos metros de uma vasta reserva de alimentos [sementes, tubérculos e fruta], os cientistas preferiram morrer a empobrecer a herança genética do país”, que “percebiam ser indispensável para o futuro da agricultura” soviética. Oito morreram em 1942 e “pelo menos um deles (…), um especialista em amendoins, morreu sentado à sua secretária”, escrevem os autores.

Mas foi o seu gesto, mais do que heróico, que permitiu que o banco de genes do Instituto Vavilov seja, ainda hoje, um dos maiores do mundo.