Lugares que são como corpos tatuados
Passos Perdidos, de Paulo Varela Gomes, corresponde ao apelo de um discurso narrativo que faz da digressão geográfica um correspondente da digressão das ideias.
Aprende-se muito, neste romance de Paulo Varela Gomes: geografia, história, história da arquitectura. Esse saber, às vezes da ordem da erudição, é solicitado pela trama narrativa que não tem grande complexidade e acaba por ser uma base ficcional sobre a qual se edifica algo muito mais importante. No entanto, a história relativamente linear e até voluntariamente artificial ganha densidade através de uma personagem problemática, inquietante, enigmática, uma dessas personagens cheias de aura romanesca. “O autor deu à personagem principal deste livro o nome de Anna W.”, assim começa o romance, com um baptismo onde ecoa um nome freudiano, a célebre Anna O., uma paciente de Freud cujo caso clínico ele descreveu e tão importante foi para a elaboração da sua teoria sobre a histeria feminina. As intromissões de um autor demiurgo serão constantes, fazem parte do contrato que ele estabelece com o leitor, ou melhor, com a leitora, porque é quase sempre no feminino que a figura é invocada, como se o romance supusesse um leitor ideal feminino. Na verdade, este é um romance onde domina o olhar feminino e em que toda a líbido é feminina. O que, de resto, será fatal para a personagem masculina de C. Brandon, que a conhece em Paris, se apaixona por ela e a segue em várias paragens de uma viagem de metamorfose e conhecimento, sem perceber que ela “não gosta de homens”, só gosta de rapazes, de jovens adolescentes (algo, aliás, que um olhar masculino, falocêntrico —para o qual uma mulher que não gosta de homens só pode significar que gosta de mulheres —teria dificuldade em perceber e identificar.
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Aprende-se muito, neste romance de Paulo Varela Gomes: geografia, história, história da arquitectura. Esse saber, às vezes da ordem da erudição, é solicitado pela trama narrativa que não tem grande complexidade e acaba por ser uma base ficcional sobre a qual se edifica algo muito mais importante. No entanto, a história relativamente linear e até voluntariamente artificial ganha densidade através de uma personagem problemática, inquietante, enigmática, uma dessas personagens cheias de aura romanesca. “O autor deu à personagem principal deste livro o nome de Anna W.”, assim começa o romance, com um baptismo onde ecoa um nome freudiano, a célebre Anna O., uma paciente de Freud cujo caso clínico ele descreveu e tão importante foi para a elaboração da sua teoria sobre a histeria feminina. As intromissões de um autor demiurgo serão constantes, fazem parte do contrato que ele estabelece com o leitor, ou melhor, com a leitora, porque é quase sempre no feminino que a figura é invocada, como se o romance supusesse um leitor ideal feminino. Na verdade, este é um romance onde domina o olhar feminino e em que toda a líbido é feminina. O que, de resto, será fatal para a personagem masculina de C. Brandon, que a conhece em Paris, se apaixona por ela e a segue em várias paragens de uma viagem de metamorfose e conhecimento, sem perceber que ela “não gosta de homens”, só gosta de rapazes, de jovens adolescentes (algo, aliás, que um olhar masculino, falocêntrico —para o qual uma mulher que não gosta de homens só pode significar que gosta de mulheres —teria dificuldade em perceber e identificar.
Mas tanto a personagem de Anna W. como a de C. Brandon têm um potencial que faz deslizar o romance para o plano das ideias e da reflexão ensaística: ele é historiador da arquitectura e ela, antes de se ter tornado funcionária do Estado francês, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, frequentou círculos próximos da RAF, a fracção armada de Baader-Meinhof. A longa viagem que empreende antes de se instalar na ilha de Santa Helena, onde vai ocupar um cargo diplomático, é uma espécie de cesura, de modo a criar uma relação de descontinuidade com o passado. Mas se muitas vezes Passos Perdidos se configura como um romance de ideias, essas ideias não têm apenas a ver, nem sequer maioritariamente, com ideias políticas: elas advêm dos lugares, daquilo a que poderíamos chamar uma visão topográfica que se abre a uma dimensão alegórica que a dobra e a prolonga. Por isso, personagens deste romance são também esses lugares: a ilha de Santa Helena, para onde Napoleão foi exilado e onde morreu, Paris, Antuérpia, Bruxelas, Munique, Milão, Valletta (Malta), Bombaim. A ilha de Santa Helena, etapa última da viagem (mas é por ela que o romance se inicia, tudo o resto é narrado num longo flashback) acaba por ser uma espécie de arquétipo: o arquétipo da insularidade que é um motivo fundamental em todo o romance.
Diga-se com toda a clareza: é certo que o romance, lá mais para o fim perde alguma da sua força inicial, na medida em que a coerência e a necessidade interna dos seus elementos se tornam mais frouxos, mas bastariam as descrições da ilha de Santa Helena (que, numa passagem, o autor diz só conhecer do Google Earth), para podermos dizer que estamos perante as mais belas páginas literárias que Paulo Varela Gomes escreveu, desde que em 2013 publicou O Verão de 2012. São páginas de uma prosa soberba. E devemos fazer aqui apelo à noção de prosa para designarmos uma escrita que corre (a prosa, como nos diz a etimologia, é o que segue para a frente, provorsus) com uma enorme delicadeza, eficiência e rigor, como se cada palavra fosse um projéctil que acerta no alvo e nada falha na pontaria. Evidentemente, a ilha de Santa Helena, tal como é aqui descrita, é uma utopia, por mais realistas que sejam as descrições. Mas uma utopia é sempre um lugar formado pelas palavras, um jogo de espaços e de linguagem. Vamos encontrar um virtuosismo semelhante nalgumas descrições de um conjunto de edifícios, grandes monumentos arquitectónicos, que são as etapas das personagens, na sua deambulação: por exemplo, a estação de Antuérpia, O Palácio da Justiça de Bruxelas e de Munique, a Estação Central de Milão, o Victoria Terminus de Bombaim. “Passos perdidos”, o nome que dá o título ao romance, é a certa altura explicado desta maneira: “A expressão ‘sala dos passos perdidos’ [...] aplica-se às salas de espera, tanto dos tribunais, como das estações de caminho-de-ferro e dos parlamentos, lugares onde todos os passos estão efectivamente perdidos porque, na nulidade desses espaços inertes, sem função que não seja servir outros espaços, entra-se na esperança de poder sair o mais depressa possível.
É pois um motivo arquitectónico que determina o percurso das personagens e, por conseguinte, a trama narrativa. Alguns livros de Sebald (e muito especialmente Austerlitz, que faz da estação de Antuérpia um dos lugares sebaldianos mais conhecidos) podem ser evocados como pertencendo à mesma família, o que de resto o próprio romance de Paulo Varela Gomes consente ao referir por várias vezes o escritor alemão. Não se trata meramente de uma viagem destinada a satisfazer ou a confirmar a erudição arquitectónica. É muito mais do que isso: vão desfilando neste romance também pedaços da história política da Europa da segunda metade do século XX.
O que confere mais força a este romance é, portanto, a prosa descritiva, tanto da cidade como das paisagens naturais. A paisagem acaba por ser muito mais do que o simples lugar que dá cor e enraizamento à intriga. Ela é um romance integral, oferecendo-se continuamente em “imagens de pensamento”, um cosmos de linguagem, como se toda a paisagem, urbana ou natural, estivesse tatuada de nomes. Ou suscitasse, por força de algo indefinido a que podemos chamar aura, o movimento que consiste em levantar os olhos (há aqui um júbilo da visão —da visão que eleva). Em muitas destas páginas pressentimos que Paulo Varela Gomes entende cada cidade como uma língua, um sotaque, e que há uma frase urbana que não é igual à sintaxe da natureza, tal como a “rêverie” paradisíaca se opõe à tensão urbana. Mas de ambas nos dá este Passos Perdidos decifrações eloquentes. Mal entramos em Santa Helena, entramos na ilha primordial, mas também ficamos a saber que o mundo é a perda do paraíso.