Howard Sounes apostado em encontrar o monstro Lou Reed
Howard Sounes parece mais apostado em encontrar o monstro, acabando por desumanizar Lou Reed. Isso resulta numa biografia terrivelmente redutora, apesar dos inúmeros testemunhos (embora alguns sejam de quem mal o conheceu), da pesquisa meticulosa, do trabalho árduo que se nota.
Lou Reed não era uma pessoa particularmente simpática. Que o digam os jornalistas que lhe ouviam monossílabos irritados em vez de respostas, os músicos aos quais não perdoava a menor falha na sua busca obsessiva pela perfeição sonora, os amigos e ex-amigos com quem mantinha apaixonadas relações de amor-ódio, entre muitos, muitos outros. Os biógrafos, por seu lado, não são obrigados a venerar os biografados. De resto, a reverência costuma ser um obstáculo à imparcialidade e à objectividade, originando, antes, obras excessivamente elogiosas (quando não verdadeiros panegíricos), cheias de mitificações e deslumbramentos (não que estas não possam ser óptimas). No entanto, o mesmo pode ser dito em relação ao seu oposto. Quando o biógrafo diz, de viva voz, que o biografado é “um monstro”, e não está a escrever sobre um ditador sanguinário ou um serial killer, é de desconfiar. Ora, foi assim que Howard Sounes descreveu Lou Reed, à altura da publicação de Notes from the Velvet Underground.
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Lou Reed não era uma pessoa particularmente simpática. Que o digam os jornalistas que lhe ouviam monossílabos irritados em vez de respostas, os músicos aos quais não perdoava a menor falha na sua busca obsessiva pela perfeição sonora, os amigos e ex-amigos com quem mantinha apaixonadas relações de amor-ódio, entre muitos, muitos outros. Os biógrafos, por seu lado, não são obrigados a venerar os biografados. De resto, a reverência costuma ser um obstáculo à imparcialidade e à objectividade, originando, antes, obras excessivamente elogiosas (quando não verdadeiros panegíricos), cheias de mitificações e deslumbramentos (não que estas não possam ser óptimas). No entanto, o mesmo pode ser dito em relação ao seu oposto. Quando o biógrafo diz, de viva voz, que o biografado é “um monstro”, e não está a escrever sobre um ditador sanguinário ou um serial killer, é de desconfiar. Ora, foi assim que Howard Sounes descreveu Lou Reed, à altura da publicação de Notes from the Velvet Underground.
Os mais cínicos poderão supor tratar-se apenas de uma manobra de marketing, para atrair a atenção para “mais uma” biografia de Reed. A ser estratégia, terá resultado em parte. No entanto, à medida que se vai lendo a obra de Sounes, vai-se percebendo que as suas palavras são genuínas. Se calhar, é exagerado chamar ódio ao sentimento que o autor nutre por Reed (até porque nunca o chegou a conhecer pessoalmente, ao que se sabe), mas parece óbvio que não gosta muito dele. Em sua defesa (ou ataque preventivo), deixou escrito, no posfácio do livro, ter começado o seu trabalho sem preconceitos, chegando à conclusão de que o músico nova-iorquino não era lá grande coisa, depois de muita pesquisa (e levado por esta). A princípio, queria simplesmente escrever sobre alguém cuja obra o fascinava. E percebe-se que Sounes gosta verdadeiramente da música de Lou Reed (ou parte dela, mas poucos serão os que prezam a obra toda). Tem de se levantar em conta, também, a natural resistência de um admirador de qualquer pessoa em ler coisas desagradáveis sobre a dita (embora a persona de Lou Reed se baseasse muitíssimo na sua desagradibilidade).
Posto isto, existe uma fronteira para lá da qual é complicado defender Notes from the Velvet Undergound e Howard Sounes ultrapassa-a vezes de mais. Pode-se deixar passar a insistência com que relembra o passado de violência sobre as mulheres de Lou Reed, apesar de, no meio de 140 entrevistas a ex-namoradas, amigos de infância, colegas de profissão, agentes, produtores e outros que tais (mas não Laurie Anderson, nem John Cale, nem Sylvia Morales), só ter conseguido desencantar duas instâncias desta prática supostamente recorrente — ou seja, se Sounes prova que Lou Reed bateu em ou foi, no mínimo, agressivo com mulheres, jamais estabelece que tal era regra, mesmo nos períodos mais negros da sua vida (nos quais bebia muito e se drogava muito). Às tantas, o argumento mais forte em que baseia a acusação é o facto da violência sobre as mulheres ser um tema constante nas canções de Reed. Parece pouco para quem faz tanto alarde da sua descoberta, mesmo que esta não seja totalmente infundada.
Já o regozijo na denúncia de que Lou Reed continuou a beber um copito ou outro (muitas vezes, diluído em água e gelo) depois de ter renunciado publicamente ao álcool roça a mesquinhez. Esta revelação serve apenas para Sounes se auto-congratular: o gozo de se apresentar como o biógrafo implacável, impiedoso em relação ao seu objecto de estudo, o grande desmistificador, obcecado em provar que todos os outros estavam errados, torna-se absolutamente evidente. Nesse sentido, Notes from the Velvet Underground começa a derrapar para a autobiografia. Até porque o autor leva tudo para o campo pessoal (quase no sentido de ataque pessoal, como se qualquer pecadilho de Reed fosse uma ofensa a si próprio e tivesse de lhe responder na mesma moeda), demonstrando, ainda, uma intrigante falta de capacidade de empatia para um biógrafo. Sounes preocupa-se demasiado com a seriedade da sua pesquisa, a sua independência, a sua reputação, para deixar Lou Reed ser o centro das atenções. Não se lhe pediria, com certeza, que justificasse as acções mais censuráveis do músico, tão-só que as apresentasse sem os contantes e repetitivos apartes (alguns de profundo mau gosto).
Neste último ponto, revelam-se as características mais inusitadas e indefensáveis de Notes from the Velvet Undergound: o moralismo e o louvor da “normalidade”. A maior parte das veze, Howard Sounes põe-se ao lado dos entrevistados com discursos mais normalizadores —e mais ressabiados em relação a Lou Reed, caso do de Paul Morrissey; aliás, Sounes está sempre a puxar pela má-língua dos outros -, citando-os mesmo quando são abertamente homofóbicos ou transfóbicos. É verdade que autor nunca assume rever-se nessas palavras, mas estas quase nunca lhe suscitam um reparo. O que é estranho numa pessoa tão pronta a apontar o dedo noutras ocasiões. Uma dúvida fica a pairar: será que Sounes as reproduz por concordar com elas (e nota-se algum desconforto quando o tema é a incerteza da orientação sexual de Lou Reed) ou apenas para as usar como (mais umas) armas de arremesso contra o músico. Num caso ou noutro, a biografia fica inquinada.
Um biógrafo escrever “contra” o biografado não é assim tão excêntrico. Em Rosebud: The Story of Orson Welles, por exemplo, David Thomson faz um levantamento de todas as falhas do realizador de Citizen Kane, inventando algumas pelo meio, mas o livro soa sobretudo a lamento por este não ter feito mais e melhores filmes. Ora, Howard Sounes, conscientemente ou não, parece mais apostado em encontrar o monstro, acabando por desumanizar Lou Reed. Isso resulta numa biografia terrivelmente redutora, apesar dos inúmeros testemunhos (embora alguns sejam de quem mal o conheceu), da pesquisa meticulosa, do trabalho árduo que se nota ao longo do livro.