Depois de Miguel e Paulo, haverá espaço para mais um Portas na política? Catarina diz nim

Preocupada com o rumo da situação a nível autárquico, Catarina Portas admite que tem havido quem lhe fale na possibilidade de uma candidatura à Câmara de Lisboa. Encolhe os ombros e diz que “só se o panorama fosse absolutamente assustador”.

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Catarina Portas Miguel Manso

Refugiámo-nos na sala do fundo da pastelaria Bénard, em Lisboa. Em contraste com a sala principal, regurgitando de gente ao fim da tarde, não há um único cliente neste que é, habitualmente, um dos espaços mais tranquilos do Chiado, mesmo em hora de ponta. Com a vantagem, como assinala Catarina Portas, de nem sequer haver aqui rede de telemóvel. Assim ninguém, mesmo ninguém, nos interrompe a conversa, depois de servidos os chás que ambos pedimos. A criadora d’A Vida Portuguesa é hoje, aos 45 anos, uma empresária bem-sucedida. Criou uma marca, mas recusa-se a ceder à tentação do franchising. Quer crescer, mas não aceita massificar o conceito que já estendeu por quatro lojas: três em Lisboa e uma no Porto. Filha de urbanistas, Catarina Portas tem onde ir buscar a paixão pela cidade onde nasceu. Uma paixão que a levou, nos últimos tempos, a intervenções públicas com críticas contundentes à actuação da Câmara de Lisboa. Viveu de perto a ascensão política dos irmãos, o ex-ministro Paulo Portas e o falecido fundador do Bloco de Esquerda Miguel Portas, mas nunca lhes seguiu as pisadas, nem na militância nem nas opções ideológicas.

Como é que se define ideologicamente?
Ui, isso é tão difícil. Não sei. Já muitas vezes me defini como anarca porque achei que era mais fácil, mas na realidade também não é bem isso [risos].

Não quer a ausência de governo.
Não, de todo, exactamente. Isto era há muitos anos, era mais por género. Sendo que o meu próprio irmão uma vez me definiu como anarquista.

Qual deles?
O Paulo. Uma vez, há muitos anos, o Carlos Cruz, quando ele estava n’O Independente perguntou-lhe: “E a sua irmã?” E ele disse qualquer coisa como: “Suspeito que ela é anarquista, sabe.” [risos]

Gostou dessa definição e passou a usá-la.
Não, eu própria já a usaria. Mas é uma boutade, nada mais do que isso.

À parte a boutade, então, como é que se define ideologicamente?
Tenho sempre mais tendência para votar à esquerda. Por outro lado, quando enveredei por esta ocupação, que diz que se chama empresária – a mim, é uma palavra que me faz alguma espécie, parece-me um saco onde se mete tudo –, quando comecei a perceber que fiz uma empresa e comecei a perceber como era, o que tinha de pagar de impostos, o que o Estado me impunha, lembro-me que aí tive imensas discussões com os meus irmãos. O meu irmão Miguel insistia em achar uma pouca-vergonha que eu tivesse contratos a prazo na altura. E eu dizia-lhe: “Mas Miguel, tenho um contrato de arrendamento trimestral nesta loja do Chiado.” Durante vários anos tive um contrato trimestral porque o prédio estava para ir para obras. No fundo, tinha uma renda mais baixa, mas foi um risco que tomei.

De um momento para o outro, a loja podia desaparecer.
Sim, e não sabia como é que depois ia pagar os salários às pessoas. E mesmo, quando se começa uma relação de trabalho, deve ser uma relação a prazo. Depois a pessoa vê se essa relação funciona, se ambas as partes estão de acordo. Às vezes não se percebe nos primeiros três meses, às vezes só se percebe passado um ano.

É como um namoro antes do casamento?
É um bocado. Eu tento dar a maior estabilidade possível às pessoas, mas isto tem de ser um risco partilhado por todos, não pode ser um risco só do patrão.

O Miguel era intransigente?
Eu explicava-lhe: “Miguel, estás maluco? Como queres que faça isto se nem sei se daqui a um mês tenho negócio, como queres que assuma esse tipo de compromissos?” Com o meu irmão Paulo discuti muito a grande distribuição. Tivemos muitas conversas sobre isso. Neste momento tenho mais de 300 fornecedores activos, em muitas áreas diferentes. Alguns são empresas minúsculas, pequenos artesãos, outros são empresas enormes com milhares de trabalhadores, como a Vista Alegre. Lido com um panorama bastante vasto da indústria portuguesa.

São empresas que estão nas mãos da grande distribuição?
Muitas delas são fornecedoras da grande distribuição, sim. Muitas vezes venho a saber de histórias que elas não podem contar porque a seguir existem retaliações, mas que são histórias… Houve aí um período, na altura da crise, em que as coisas foram de facto muito, muito agrestes. Muita gente fechou.

Histórias de contratos leoninos?
Sim. Temos em Portugal uma situação bastante difícil. No fundo, existem duas empresas que controlam 70% da distribuição alimentar.

A Jerónimo Martins e a Sonae.
Entre as duas, têm de facto um poder de vida e de morte sobre os fornecedores. Posso falar porque não sou fornecedora da grande distribuição. Portanto, às vezes, também falo por eles.

Desentendeu-se com o seu irmão Paulo por isso?
Não. Até tenho a dizer que a sua ministra se portou bastante bem nesse aspecto. De facto a Assunção Cristas fez uma lei em que pela primeira vez se instituíram multas a sério para a prática de dumping.

Alguma vez se zangaram por razões políticas?
Sim, uma vez, há muito tempo. Crescemos todos com opiniões diferentes, num ambiente em que tudo era amplamente discutido. E sobretudo sempre com imenso sentido de humor.

Habituaram-se a divergir.
Sim. E às vezes até havia opiniões coincidentes, atenção. Às vezes dos extremos [risos]. No fundo, o inimigo era sempre o centrão.

A Catarina fazia mais vezes equipa com o seu pai [o arquitecto Nuno Portas]?
Depende. Muitas vezes ficava a ouvi-los. Como nunca se calavam... [risos] Tenho uma memória muito divertida das viagens para Vila Viçosa. Não era preciso ligar o rádio. Eu era a mais pequenina, ficava muitas vezes calada a ouvi-los digladiarem-se uns com os outros. Sempre fui bastante observadora.

Votou no seu irmão Paulo quando ele foi candidato à Câmara de Lisboa?
Votei no meu irmão Miguel [que foi cabeça de lista pelo Bloco de Esquerda]. E tenho a dizer que muito me arrependi.

Porquê?
Porque o Santana Lopes foi eleito por muito poucos votos. E o Santana Lopes não foi o melhor presidente da câmara de que me recordo. O candidato do PS era o João Soares, que perdeu por muito pouco. Menos de mil votos, penso eu. E, de alguma forma, o facto de Santana ter chegado à câmara fez com chegasse depois a primeiro-ministro. Esse foi um voto que me fez pensar muito.

Na altura viveu algum tipo de luta interior por ter dois irmãos candidatos?
Não, de todo. Pelo contrário, isso não tem rigorosamente nada a ver. Até acho que o João Soares foi um bom presidente de câmara. Mas na altura ele tinha tomado decisões de que eu não gostei muito. Uma delas foi a do Mercado da Ribeira. Foram coisas menores; uma série de decisões que coincidiram, uns tempos antes. Pensei que haver outra força à esquerda talvez não fosse mau. Mas pronto, enganei-me redondamente.

O protagonismo público dos seus irmãos nunca a motivou para a actividade política?
Não tive aquela apetência juvenil pela política que os meus irmãos tiveram. Eles eram mais velhos do que eu no 25 de Abril: um já estava na adolescência e o outro a chegar lá. Eu tinha cinco anos. Ainda fui assistir à saída dos presos de Peniche em cima de uma pedrinha, aos gritos.

Lembra-se bem disso?
Perfeitamente. Foi a primeira directa da minha vida [risos]. O namorado da minha tia Isabel estava preso em Peniche e eu ia lá com muita regularidade visitá-lo aos fins-de-semana. Algumas vezes até passei para o lado de dentro do parlatório. Há uma coisa engraçada: uma vez, numa exposição na Cadeia da Relação, no Porto, vi uma fotografia do outro lado da sala, uma fotografia com azulejos brancos e uns bancos. Olhei e disse: “Aquilo é Peniche.” Juro! Atravessei a sala e era Peniche. Isto 40 anos depois. O parlatório. Tinha estado ali em criança. Foi uma altura em que a minha vida mudou muito. A seguir a isso os meus pais separaram-se, o meu pai foi para o Governo [secretário de Estado da Habitação e Urbanismo nos três primeiros governos provisórios], a minha mãe foi estudar para a Universidade de Reading, e depois levou-me.

Com todas essas vivências, o 25 de Abril ficou associado a alguma coisa de traumático, para si?
Por acaso, não. Ao contrário. A ideia que tenho do 25 de Abril é uma ideia de felicidade. Lembro-me de as pessoas estarem muito felizes. Nessa saída da prisão, só me lembro de pessoas incrivelmente felizes, a chorar de felicidade. Eu a andar às cavalitas do Zé, que estava a sair da prisão. Só me lembro do clima mais ou menos efervescente desses dias. Também há muitas coisas de que já não me lembro. Não me lembro nada da manifestação do 1.º de Maio. Sei que fui, mas não tenho recordação nenhuma. Algumas coisas ficaram, outras não. Depois fui viver com a minha mãe para Inglaterra durante um tempo. A seguir, a minha mãe foi para Paris, para a UNESCO, e eu fui com ela para França durante um ano.

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Para uma pessoa andar assim independente e sozinha, é bom que tenha uns objectivos lá ao fundo, se não ainda se perde

Isso afastou-a dos seus irmãos?
Sim, afastou-nos nessa altura. O Miguel vivia connosco, com a minha mãe e com o meu pai; o Paulo vinha aos fins-de-semana. Depois da separação, passei a estar com os meus irmãos ao fim-de-semana com o meu pai. E depois quando voltei fui para o Liceu Francês. Nos estudos sempre tive um lado muito pouco português.

Terá sido a separação a impedir que inoculasse o mesmo vírus da política que eles inocularam?
Não, foi mais uma coisa de idade. Eles apanharam com aquilo na adolescência. Entraram os dois muito cedo para a política. Lembro-me de o Paulo estar em Vila Viçosa nas nossas férias a estudar calhamaços com todas as votações do partido; do PPD, na altura. Ele era um grande fã do Sá Carneiro. Tinha para aí 13 ou 14 anos, e nas férias estudava as votações no país inteiro. O Miguel também fazia outras iguais.     

Como é que encarava isso?
Eles tinham lá as suas obsessões, pronto [risos]. Cada um tem direito às suas. O meu pai sempre foi PS portanto as discussões em casa eram muitas, e muito variadas, às vezes até mais entre as esquerdas do que entre a esquerda e a direita [risos].

Isso é curioso.
Não é curioso, é um reflexo do que foi a esquerda portuguesa durante muitos anos, até chegarmos a esta altura, que é todo um novo ciclo.

O apelido Portas tem sido para si, sobretudo, um trunfo ou um fardo?
É as duas coisas. Para mim, na realidade, quando cresci, Portas não era nada. Era o meu pai, uma pessoa que os arquitectos e os urbanistas conheciam. A carreira política dos meus irmãos só se deu a partir dos meus vinte e tal anos, pelo menos com mais visibilidade.

A partir daí passou a ter consciência do efeito que o seu apelido tinha?
Sim, mas nunca me prejudicou. Há uma coisa boa: tinha um de cada lado. As pessoas nunca me arrumam facilmente. Sabem que havia um à esquerda e um à direita, percebem que a família tem gente muito divergente e portanto não me arrumam logo numa prateleira primária.

Quando vê escrito, “a irmã de Paulo Portas”, como é que reage?
Isso foi o Diário de Notícias. Ao fazer um título desses, põe-se ao nível de uma Caras. O meu comentário a isso é que o Diário de Notícias está a fazer crónica social.

Sabe sempre bem o que quer ou é dada a momentos de hesitação?
Depende. Muitas vezes sou dada a momentos de hesitação.

A sua imagem pública é a de uma mulher resoluta.
Tenho umas ideias. Para uma pessoa andar assim independente e sozinha, é bom que tenha uns objectivos lá ao fundo, se não ainda se perde.

E a linha do horizonte qual é?
Tenho este projecto d’A Vida Portuguesa, que foi uma grande surpresa, que tornou a minha vida muitíssimo mais interessante. Aconteceu por acaso. Eu queria fazer um livro sobre a história da vida quotidiana em Portugal no século XX. Não tinha quem pagasse essa investigação e comecei a fazer umas caixinhas com uns produtos para pagar o livro. Afinal, nunca fiz o livro. Apercebi-me de que havia muitas formas de contar as histórias; que as fábricas e o consumo também seriam uma forma muito interessante de perceber o meu país.

Entretanto, tornou-se uma espécie de representante da tradição.
Não defendo tradição nenhuma, defendo a produção portuguesa. Odeio que digam que tenho lojas saudosistas. É uma coisa que me enerva muito. Para mim, A Vida Portuguesa não é uma questão de saudade, é uma questão de identidade. Oitenta por cento dos produtos que vendo existiam antes de o Salazar chegar ao poder e continuaram a existir depois de o Salazar chegar ao poder.

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Mas no início a sua loja chamava-se, como o fado, Casa Portuguesa.
Sim, mas eu escolhi esse nome porque para mim isso era uma atitude punk. É um fado que eu odeio, tem uma letra sinistra. Entretanto, aconteceu aquele concurso dos Grandes Portugueses e de repente parece que houve uma mordaça que se soltou para uma data de gente.

O concurso em que Salazar foi eleito o maior português de sempre.
Sim. Uma coisa que me fazia muita impressão era que não se falava muito da história recente. Estudei no sistema francês nos dois últimos anos, 11.º e 12.º, e só estudávamos a História do século XX até aos nossos dias. De repente, fui fazer um exame, fui ver os programas de Português para ter equivalência, e percebi que o século XX praticamente não era dado nas escolas. Sempre achei que o passado recente é uma coisa que devemos conhecer e discutir. Até para não voltarmos a cometer os mesmos disparates.

Mas há seguramente clientela na sua loja para quem aquilo é um mercado da saudade.
Claro que há. Na minha loja tanto vendo os cartazes do 25 de Abril, do Abel Manta, como vendo as reedições dos livros da primária do tempo do fascismo. Mas acho isso tudo útil. A loja, no fundo, é um ponto de partida para a descoberta de um país, de um povo. De como é que umas pessoas que viveram aqui num canto do mundo se foram organizando ao longo dos tempos.

Observando tudo isso, o que é que diria que é a identidade portuguesa?
Não sei dizer. Quanto mais investigo… De alguma forma isso é aquela coisa que está lá ao fundo e que eu persigo sem nunca a atingir. Ainda bem que não atinjo, se não tinha de mudar de rumo.

Na política, há uma regra sagrada: não se pode dar parte de fraco. É uma regra válida também nos negócios?
Sim e não. Às vezes, parecermos pequenos – pequenos e não ameaçadores – também pode ser uma vantagem. Mas isso tanto nos negócios como na vida.

É chique ser uma coisa pequena, de culto e não ameaçadora?
Às tantas, quando A Vida Portuguesa surgiu, houve uma espécie de onda que eu podia ter surfado. Podia ter desatado a fazer franchising, a abrir lojas que nunca mais acabam. Não o fiz por várias razões: primeiro porque não vinha do mundo dos negócios nem da gestão. Era eu e a minha máquina de calcular e o meu bom senso. Estavam comigo meia dúzia de pessoas, nenhuma delas vinda do comércio. De alguma forma autoformámo-nos, fomos aprendendo com a experiência. No fundo, também não é assim tão dramático: se uma pessoa fizer contas e se pensar nas coisas, vai lá. Depois fui fazer um curso de gestão para confirmar se não estava a fazer grandes asneiras. Conferi que não estava a fazer nenhum disparate extraordinário. Mas bom, sempre tive o cuidado de crescer devagarinho para não comprometer o negócio. Era muito fácil espalhar-me.

Se de hoje para amanhã fosse fazer outra coisa, A Vida Portuguesa continuava?
Houve um ano em que percebi isso. Ao longo deste percurso de dez anos, sobretudo nos primeiros, dei o litro, não tive férias. E por razões várias, mais ou menos a seguir à morte do meu irmão Miguel, tive um esgotamento e tive uma depressão. Foi um ano em que trabalhei muito pouco. Estava muito abatida, desanimada. Nesse ano a loja continuou a crescer. Aí percebi que tinha uma equipa incrível, e que dava o litro. De facto a equipa foi extraordinária e a coisa continuou. Sem mim, A Vida Portuguesa também continua.

Acredita nas perspectivas de crescimento do Governo?
Acredito. Espero que sim. Como sabemos, nada disto depende apenas do Governo, depende de toda uma conjuntura internacional, depende de vontades europeias e de vontades políticas diversas. Hoje as coisas estão muito interdependentes a todos os níveis. Este programa do PS, uma das coisas boas que tem na área da economia é no sentido de replicar um programa que existe em França. Aquilo a que os franceses chamam les entreprises du patrimoine vivant; no fundo são as empresas históricas e que ainda têm todo um saber fazer. A França tem mil empresas nessas condições. Há todo um programa de apoio, de venda, também no estrangeiro, através das suas embaixadas, de publicidade, dando-as a conhecer.

Diplomacia económica.
Exactamente.

Esta expressão é-lhe familiar.
Muito familiar. Aliás, o meu irmão fez um excelente trabalho a esse nível.

Já agora, considera o actual Governo legítimo?
Claro que sim.

Porque o seu irmão…
Eu não sou o meu irmão [risos]. E no fundo não me parece que isso seja uma má solução para o partido dele. Este tipo de solução faz com que o voto útil já não seja tão útil. Isso é uma coisa que no futuro provavelmente vai beneficiar um partido como o CDS/PP.

Como é que observa a saída de cena dele em termos políticos?
Acho que lhe vai fazer muito bem.

Vão discutir política mais vezes?
Vamos falar de tudo. Falamos muito de cinema, de muita coisa. E sim, temos uma relação, sobretudo depois da morte do Miguel, até muito mais próxima.

Como é que encara as acusações que se ouvem em relação ao seu irmão, aquelas coisas que se dizem e se publicam?
Eu conheço a realidade económica do meu irmão. Há tanta realidade nos submarinos como em eu ser dona de todos tuk-tuk da cidade. É mais ou menos isso. Deve ser por isso que ele tem o mesmo carro há não sei quantos anos e vive numa casa alugada.

Alguma vez lhe passou pela cabeça dedicar-se à política?
A maior parte dos nossos gestos diários são políticos. O consumo, por exemplo, também pode ser um acto político.

Então acrescento: alguma vez lhe passou pela cabeça dedicar-se à política activa?
Não, à política activa nunca pensei dedicar-me. Até fui convidada, mas nunca tive essa tentação.

Há quanto tempo foi convidada?
Há muitos, muitos anos. Nunca falei disso nem vou falar. Era uma criança e as razões pelas quais me estavam a convidar não eram provavelmente as razões certas.

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Eu conheço a realidade económica do meu irmão [Paulo]. Há tanta realidade nos submarinos como em eu ser dona de todos tuk tuk da cidade.

Porque é que acha que a convidaram?
Porque era jovem, porque era mulher, porque aparecia na televisão [risos]. Poderia ficar bem nos cartazes.

Hesitou, nessa altura?
Estudei o assunto. Quando me fazem propostas, estudo os assuntos. Dediquei-me; estive a ler orçamentos.

De que área política veio o convite?
Era do PS.

Para a lista de deputados, para a câmara?
Não digo [risos]. As coisas não aconteceram, portanto não vale a pena falar delas.

O que eu queria perceber é se as suas repetidas intervenções públicas, nos últimos tempos, sobre a política autárquica de Lisboa podem um dia destes ganhar outros contornos.
Digamos que não é propriamente uma vontade minha.

Mas é uma hipótese que já lhe passou pela cabeça?
Há um problema que temos. E hoje em dia – pela minha experiência, pelo meu conhecimento, pelo meu interesse por isto – posso dar uma ajuda se houver coisas a fazer. Por exemplo, no conselho consultivo das Lojas com História, onde estou com imenso prazer. Não ganho um tusto, mas é um trabalho no qual me empenho imenso porque o acho necessário. 

A possibilidade de dar um passo em frente já lhe ocorreu?
Não sei. Tenho muito que fazer n’A Vida Portuguesa.

Isso é um não?
Há quem brinque comigo – pessoas que conheço e pessoas que não conheço – e me fale dessa possibilidade. Não é um objectivo meu, de todo. Agora, não sei quem vão ser os candidatos à câmara, e preocupa-me quem serão. Há outro aspecto: a eleição do Rui Moreira, no Porto, veio provar que os presidentes de câmara das grandes cidades podem ser independentes. Isso é uma coisa extremamente positiva.

Já se percebeu que uma candidatura autárquica não é uma prioridade sua, mas é uma possibilidade?
Só se o panorama fosse absolutamente assustador é que eu podia considerar essa hipótese.

Descreva-me o que seria para si um panorama absolutamente assustador.
A cidade está num momento muito crítico, e espero que o próximo executivo da Câmara siga um caminho mais interessante do que aquele que está a ser seguido.

Está desiludida com Fernando Medina?
Estou muito desiludida, estou. Fui apoiante de António Costa no primeiro mandato e acho que foi um bom mandato. Assisti de perto a duas coisas: uma foram os quiosques, com o vereador Sá Fernandes. Por outro lado, abri uma loja no Intendente, renovado pela câmara. A câmara não é a minha senhoria, mas abri ali uma loja e assisti de perto a um processo que estava a ser muitíssimo bem conduzido. Tenho alguma pena de que no dia a seguir às eleições tudo isso tenha sido abandonado.

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Refere-se às eleições que deram o segundo mandato a António Costa?
Sim. Quando o António Costa deixou de estar no seu gabinete no Intendente e passou para a câmara. O que é natural, tinha de o fazer. Mas de alguma forma a atenção da câmara esmoreceu muito. Foi imediatamente desfeito o GABIP (Grupo de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária), o gabinete que tinha sido criado para aquela renovação. Quando se faz um investimento público tão grande como o que se fez no Intendente, depois tem de se continuar. A gestão de uma câmara não é só macro: é uma gestão macro e uma gestão micro. E é preciso que as duas avancem em simultâneo, senão geram-se desequilíbrios grandes.

O que é que mudou desde que Fernando Medina substituiu António Costa?
Mudaram várias coisas que não têm a ver com Fernando Medina. O turismo em Lisboa não tem a ver com o Fernando Medina. Tem a ver com vários factores, como as low cost. E tem a ver com todo um trabalho feito pelo anterior Governo e pelo secretário de Estado do Turismo, que foi bastante hábil e inteligente.

O secretário de Estado Adolfo Mesquita Nunes.
Sim, ele fez um bom lugar. E tem a ver obviamente com uma cidade que António Costa tornou muito atractiva. Não tenho nenhuma dúvida sobre isso. É uma cidade que agora sai à rua. Há dez anos, Lisboa quase não tinha esplanadas. Quando tive a ideia dos quiosques, tinha essa vontade. Como não tenho carro e não guio, ando muito a pé. Estava sempre a esbarrar com aqueles quiosques fechados. Às tantas pus-me a investigar porque é que estavam fechados, de onde é que vinham. Fui desvendando toda uma história. Fui à procura do tipo de coisas que vendiam, e fiz um exercício: ok, como é que se podia trazer isto para os dias de hoje em vez de mandar tudo para o ferro-velho? O espaço público melhorou imenso com o António Costa.

Já se arrependeu de ter apoiado Costa nas primárias do PS?
Não, de todo.

Costa não teria saído da câmara se não tivesse conquistado a liderança do PS.
É um facto, mas ele também está a fazer coisas importantes pelo país. Ter juntado as esquerdas... tiro-lhe o chapéu. Agora, tenho pena que ele não tenha deixado uma herança com maior qualidade na câmara. A qualidade média desceu muito.

A qualidade da vereação?
Sim.

E a da presidência?
Do executivo. Era um executivo mais equilibrado no tempo de António Costa. Neste momento, existe uma grande preponderância do urbanismo, que é obviamente um sector crucial. Mas nesta questão do turismo, o urbanismo tem feito opções que não são as mais interessantes. Sobretudo, não são as mais inteligentes a longo prazo.

Quando dizia há pouco que só poria a hipótese de ter uma participação política activa se o panorama fosse absolutamente desastroso, e situando-se na área do PS, posso concluir que se está a referir a quem venha a ser o candidato socialista?
Presumo que o candidato do PS seja o Fernando Medina.

E isso será desastroso, do seu ponto de vista?
Não tenho nada contra o Fernando Medina pessoalmente, mas enquanto lisboeta faz-me alguma impressão ouvir o presidente da câmara, perante a febre turística que Lisboa conhece neste momento. Ouço por exemplo donos de hotéis, associações de hotelaria portuguesa a dizerem: "Estamos a chegar a um limite.” E depois ouço o presidente da câmara: “Nunca ninguém me ouvirá dizer que é preciso pôr limites ao turismo.”

Sente isso como um erro político?
Absolutamente. Estamos todos fartos de saber o que o turismo faz hoje em dia. Hoje, o turismo não é o mesmo que há 20 anos. Veneza tinha 400 mil habitantes há dez anos, hoje tem 40 mil. É isto que se está a passar. O Airbnb é um fenómeno muito recente, mas é um fenómeno avassalador.

Vê o turismo como um fenómeno predador?
Pode não ser predador, mas é preciso ter alguns cuidados, porque neste momento ele é massificado, é extremamente agressivo. No meio disto vem um óptimo turismo, mas também vem um turismo complicado. Pergunto-me se faz sentido investir milhões num terminal de cruzeiros. Já me dei ao trabalho de passar um dia inteiro na saída de um cruzeiro a ver turistas a sair e a entrar. Até levei para lá uma banquinha.

Para tentar vender?
Sim, sim. Metade deles não sai do barco. Os que saem são metidos em camionetas que vão a Sintra e voltam. Quem lucra são as camionetas. Normalmente, esses programas são pagos dentro do barco, portanto as camionetas também só lucram uma parte. E depois vejo voltar os turistas. Muitos vêm almoçar ao barco, porque o almoço está incluído no preço, nem sequer deixam o dinheiro desse almoço na cidade. Quando muito, alguns chegam com uns sacos da Zara e da Seaside, e percebi que tinham ido para o Colombo fazer compras. Ainda para mais, os cruzeiros hoje em dia são bairros inteiros. Aquela paisagem linda de Alfama até ao rio vai passar a ter à frente um edifício permanente de oito andares. É um edifício aquático mas é um edifício. Vale a pena comprometermos isto? Justifica o dinheiro que cá fica deste tipo de turistas?

Isso requer decisões políticas; não basta deixar o mercado a funcionar?
Há muitas coisas que são decisões políticas. Uma das decisões da Câmara de Barcelona, quando este novo executivo tomou posse…

O executivo do Podemos.
A Ada Colau [presidente de Câmara de Barcelona] dirigia uma associação que era contra os despejos provocados pela falta de pagamento das prestações das casas. Neste momento, acho que na Câmara de Barcelona há uma coligação de vários partidos.

Sim, apoiada maioritariamente no Podemos.
Sim. O que eles fizeram foi suspender, renegociar com o Airbnb uma série de coisas, e tomar ali algumas decisões. O turismo é extremamente voraz hoje em dia. Há que ter algum cuidado. Não vejo a câmara [de Lisboa] a ter esse cuidado. Não estou ao corrente de todas as posições da câmara, mas acho que ela própria também devia falar um bocadinho mais sobre isso. Seria pedagógico para a cidade.

Defende um papel mais interveniente do Estado?
O Estado às vezes tem de regular algumas situações. Sou pela iniciativa privada, tenho o meu negociozito, mas em alguns casos, quando se chega a situações como aquela em que estamos hoje, acho que é preciso regulamentar algumas coisas.