E os nus emergiram na obra de Cabrita Reis

Pela primeira vez, Pedro Cabrita Reis desenha nus. Com ironia, utiliza um modelo vivo e faz uma reflexão sobre as questões colocadas pela representação do corpo feminino.

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Desenho da exposição Horas Quietas

Parecem corpos que aterraram nos desenhos de Pedro Cabrita Reis vindos não se sabe de onde, nus fugidos de qualquer outra história que não esta. Mas não se trata de um engano, porque estes nus femininos são recorrentes nos 28 desenhos da exposição Horas Quietas, inaugurada pelo escultor esta semana na Galeria João Esteves de Oliveira.

Os corpos despidos, reconhece Pedro Cabrita Reis, são completamente novos: “É a primeira vez na minha vida que tal acontece. Nunca houve nus.”

Mas comecemos pelo que já havia antes nos seus desenhos, recuando até à exposição Herbarium (Madrid), que o artista plástico português fez na Galeria Juana de Aizpuru na capital espanhola, no início de 2015, e onde as folhas de papel que servem de suporte aos desenhos cresceram até uma dimensão de rectângulos com uma altura de 2,5 metros. Há uma certa ecologia, palavras nossas, que passa de uma para a outra exposição, árvores secas, flores, verdes, seres vivos não humanos.

Comum às duas, continua o artista, há essa representação do meio ambiente natural, aqui em desenhos com dimensões bastante mais reduzidas, menos de um metro de altura: “Em termos formais, quando há uma representação mais verosímil, ela acaba por ser em torno da natureza: são troncos, pedras, motivos de ordem vegetal, tratados de forma mais ou menos abstracta, que se vêem e transparecem.” Seja a lápis (simulações de ervas, de plantas, de arbustos), seja com tintas diversas. “Essas são coisas que têm aparecido ao longo dos tempos nos meus desenhos.”

A exposição nesta galeria do Chiado é o regresso de Cabrita Reis a uma individual num espaço comercial em Lisboa, cidade onde vive e trabalha mas onde não tem uma galeria que o represente, ao contrário do que acontece em Nova Iorque, Zurique, Londres, Berlim, Roma ou Madrid. A última vez que mostrou o seu trabalho aqui foi em 2012, também na  Esteves de Oliveira, uma galeria especializada em trabalhos sobre papel, situada na Rua Ivens.

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Pedro Cabrita Reis Daniel Rocha

Os desenhos de Pedro Cabrita Reis são, diz, "um território onde aparecem coisas só aparentemente contraditórias". Motivos naturais tratados de uma forma relativamente informal, ainda que por vezes realista, encontram-se com grelhas e manchas de tinta monocromáticas geométricas. “Sempre houve na minha obra essa espécie de olhar recíproco entre um lado muito racional e outro de pulsão. Uma atitude geométrica  aqui como simbólico de racional, cerebral , que vive em ligação, não sabemos se conflitual ou se natural, com a erupção de uma tensão interior mais orgânica.”

Num texto incluído no livro-catálogo da exposição, escrito em Março a partir da Serra de Tavira, onde tem uma casa, Cabrita Reis explica o que esteve na origem desta exposição: “No princípio seriam uns quantos desenhos mesmo só de modelo nu, talvez mesmo só a carvão, sem disfarce da vontade de um olhar zombeteiro e de través sobre as muitas contemporâneas academias e os seus curadores sempre tão zelosos de categorias e exclusões. Mas depois e, em verdade, como sempre me interessou tão pouco aquilo que os outros dizem ou fazem, nem sequer é interessante questionar ou estar contra, e sendo assim, então a mim os meus desenhos e a cada um, eu incluído, o inferno possível.”

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A ironia, explica-nos numa conversa na tarde da inauguração de Horas Quietas, passa por aí: desenhos feitos como se estivéssemos na academia, recorrendo ao um modelo vivo, dão origem a corpos completamente naturalistas, aparentemente orgânicos, mas que o artista classifica de outra maneira. “Aqueles nus são desenhos geométricos. Exactamente. Digo que são feitos com a mesma cerebralidade. Se quisermos, é um lugar estranho, de mistura. Aquele corpo que está ali não tem particulares traços de identidade ou de expressividade. É talvez o sítio em que se possa imaginar, afinal bastante bem, o encontro possível da racionalidade com a pulsão, a organicidade.”

Pedro Cabrita Reis usou um modelo nu, mas de modo diferido. Trabalhou com uma profissional que posa normalmente nas Belas-Artes, porque lhe apetecia a ideia, mas não desenhou uma linha. Sujeitou a modelo a centenas de horas de fotografia e depois trabalhou sobre as imagens que lhe interessavam. “Não quis, de forma alguma, a proximidade. Interessa-me a utilização do modelo e a discussão teórica sobre as validades ou as invalidades no discurso da arte.”

O processo para chegar ali é o mesmo que usa para os seus famosos auto-retratos, cuja última série datará de 2004. “Esta representação tinha que ser absolutamente gelada, destituída de qualquer laivo de amor. Uma observação, digamos, científica, do contorno da forma, mais nada. Limitas-te a representar um perfil e jogas com esse perfil como jogarias com uma linha se fizesses o perfil de uma pedra ou outra coisa qualquer."

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É na questão do nu, diz Cabrita Reis, que está pendurado todo o apetite pequeno-burguês pela representação do corpo da mulher. “Então é aí que lhes vamos tirar a sopa quando começam a comê-la. O nu é um trabalho de ironia. É como se eu apanhasse uma revista da Playboy na rua, a cortasse com uma tesoura e a colasse no papel.”

O galerista João Esteves de Oliveira conta ao PÚBLICO que quando falou na possibilidade de fazer nova exposição, Cabrita Reis pôs uma condição, que fosse sobre nus. O artista explica que foi por aí que começou nestes desenhos. Delimitou o território, vieram depois as manchas de tinta, as colagens, voltou a desenhar coisas por cima, traçou uma linha a direito com a régua, etc., etc. “Isso é uma atitude do desenho. O desenho, por muito orgânico que seja, é muito determinado por uma disciplina de ordenação do pensamento.”

Aos desenhos desta exposição, feitos com várias folhas de papel, que também variam no tamanho, Cabrita Reis chama “retabulismo”, de retábulo, sublinhando que mostram “uma apetência de construção”. Ele, que se diz um escultor, não desenha para construir as suas peças. “São raríssimas as vezes em que projecto. O desenho só vem depois.”

À pergunta como é que surgiram os nus, de onde vêm, Pedro Cabrita Reis responde que “apareceram porque antecipam qualquer coisa que vai acontecer mais à frente”. “Esta era a forma de os tirar da lata e deixá-los chegar cá acima. Isto depois vai transformar-se noutras coisas.” Há um ano e meio começou a pensar em fazer nus gigantescos a carvão, com quatro metros de altura. A sua ambição era ter apresentado “um panteão a carvão à antiga”, mas nem o espaço da galeria era adequado, nem o ritmo de trabalho o permitiu.

“Estes três últimos anos têm sido brutais”, explica. Entre Setembro de 2014 e Junho de 2015, para dar um exemplo, Pedro Cabrita Reis fez 14 exposições, nove das quais individuais, todas com trabalho novo. Na TEFAF, considerada a mais importante feira de arte e antiguidades do mundo, que terminou esta semana em Maastricht, na Holanda, apresentou três trabalhos na secção contemporânea, através da galeria londrina Sprovieri, numa exposição intitulada Show your Wound com curadoria Mark Kremer, juntamente com outros seis artistas.

Em Basileia, na feira de arte contemporânea, vai mostrar em Junho a peça South Wing na secção Unlimited, com curadoria de Gianni Jetzer, dedicada às esculturas de grande escalas, entre outras obras de arte com formatos menos comuns. É uma série de portas, que vem na sequência da Ala Norte (2000), hoje na colecção António Cachola, mas, por favor, não lhe chamem instalação  com cerca de 15 metros, há-de ser uma escultura.

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Gate of Hell, que apresentou este mês na TEFAF PCR Studio/João Ferro Martins