Correio da Manhã é “assistente” ou “acusador” no processo de Sócrates?

Dois jornalistas do diário assistentes no processo pediram a constituição como arguidas da ex-mulher e da ex-namorada de Sócrates. Conselho Deontológico dos jornalistas condena esta intervenção.

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Dois jornalistas do Correio da Manhã, que são assistentes no processo conhecido como Operação Marquês, pediram a constituição como arguidas da ex-mulher do antigo primeiro-ministro José Sócrates, Sofia Fava, e da ex-namorada, Fernanda Câncio, “em virtude da existência de fundada suspeita da prática do crime de branqueamento por cumplicidade”. Contactado pelo PÚBLICO para comentar este tipo de procedimento, em que o Correio da Manhã foi pioneiro, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas condena o pedido e constata que, “de assistentes, os jornalistas passam assim a acusadores”.

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Dois jornalistas do Correio da Manhã, que são assistentes no processo conhecido como Operação Marquês, pediram a constituição como arguidas da ex-mulher do antigo primeiro-ministro José Sócrates, Sofia Fava, e da ex-namorada, Fernanda Câncio, “em virtude da existência de fundada suspeita da prática do crime de branqueamento por cumplicidade”. Contactado pelo PÚBLICO para comentar este tipo de procedimento, em que o Correio da Manhã foi pioneiro, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas condena o pedido e constata que, “de assistentes, os jornalistas passam assim a acusadores”.

Numa posição assinada pela presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, São José Almeida (jornalista do PÚBLICO), considera-se que o facto de o Correio da Manhã requerer diligências a partir de uma análise do processo “é uma violação directa do artigo 7.º do Código Deontológico: ‘O jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado’”.

O Conselho Deontológico sublinha que “os visados nem arguidos são, mas sim de pessoas referidas nos autos”. E critica que os jornalistas passem de assistentes a acusadores, “sem que sejam eles a oferecer provas”. “Uma atitude que o Conselho Deontológico só pode considerar incorrecta e condenar”, remata-se.

Sobre o facto de os jornalistas se constituírem assistentes em processos judiciais — uma figura que permite que qualquer cidadão auxilie o Ministério Público na investigação de crimes que lesam o erário público –, o Conselho Deontológico remete para uma outra posição tomada em Novembro do ano passado. Nesta, o órgão critica a constituição de jornalistas como assistentes, considerando que a mesma sofria de “ilegitimidade ética e deontológica”. Na resposta enviada ao PÚBLICO, a presidente do conselho considera que as normas que regulam o exercício da profissão, nomeadamente o Estatuto do Jornalista e o Código Deontológico, “impõem que uma investigação jornalística seja dirigida pelo jornalista em obediência aos princípios da presunção de inocência, do contraditório e da confirmação dos factos”.

Já a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista optou por não se pronunciar sobre o requerimento apresentado pelos redactores do Correio da Manhã, remetendo igualmente para uma posição tomada em Novembro passado por este organismo público. Nessa, o plenário da comissão, que atribuiu os títulos profissionais aos jornalistas, afirma que a constituição dos repórteres como assistentes “é incompatível com o exercício da profissão, uma vez que a natureza e a função desse sujeito processual, tal como legalmente definidas, comprometem a independência, integridade profissional e dever de imparcialidade desses jornalistas”.

Também ouvida pelo PÚBLICO, Fernanda Câncio, jornalista do Diário de Notícias, considera que o requerimento apresentado pelo Correio da Manhã foi clarificador. “O pedido permitiu que o Correio da Manhã assumisse ao que vinha. Que o seu objectivo é implicar-me neste caso”, afirma.

A ex-namorada de José Sócrates, que foi ouvida como testemunha na Operação Marquês no ano passado, recorda que no âmbito de uma acção intentada nos tribunais para proteger a sua vida privada e visava vários jornais, o próprio Correio da Manhã garantia que nenhum dos artigos que envolviam Fernanda Câncio levantava “qualquer suspeita” sobre a mesma. “Os artigos são objectivos e não contêm qualquer juízo de valor”, lê-se na contestação a que o PÚBLICO teve acesso, datada de 12 de Novembro. Um mês e uns dias mais tarde, a 15 de Dezembro, num requerimento apresentado pelos jornalistas António Sérgio Azenha e Sónia Trigueirão, lê-se que os assistentes procederam à análise dos autos, tendo concluído que “existem fundadas suspeitas de que Sofia Fava e Fernanda Câncio podem ter tido uma participação activa em alguns factos que, em abstracto, são subsumíveis na previsão da norma que prevê o crime de branqueamento de capitais”.

ERC não comenta
A repórter do Diário de Notícias diz que os jornalistas do Correio da Manhã assumem o papel de acusadores e lamenta que no último ano e meio aquele jornal nunca lhe tenha feito uma única pergunta. Acredita que não o fazem porque ela contradiria as suas teses. “Eles sabem que estão a fabricar uma história e a mentir”, acusa a ex-namorada de Sócrates, que não consegue compreender que a Comissão da Carteira não tome qualquer posição face aos atropelos diários do Estatuto do Jornalista.

Confrontado com as posições assumidas pelo Conselho Deontológico e pela CCPJ, o director do Correio da Manhã, Octávio Ribeiro, reagiu por escrito. “Infelizmente, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas gosta de olhar para os jornalistas como rebanho, cada vez mais escasso, aliás. Nesse rebanho, a própria noção de notícia talvez seja discutível. Levado ao extremo, e descontextualizado, o princípio aqui evocado pelos pastores levaria a grandes momentos de humor”, refere Octávio Ribeiro. E completa: “A presunção de inocência é um valor absoluto no seio do processo jurídico, até trânsito em julgado da sentença. O processo de produção jornalística não é cego, surdo, nem mudo”.

O director do Correio da Manhã diz que é pena que o mesmo Conselho Deontológico não encontre “outros princípios, bem mais fundacionais, para censurar quem escreve notícias e opinião sem dar conta da sua manifesta falta de independência e objectividade”, numa alusão a comentários públicos feitos por Fernanda Câncio. 

Já esta quinta-feira, o PÚBLICO recebeu um email da jornalista do Correio da Manhã, Tânia Laranjo, onde esta garante que Fernanda Câncio foi contactada várias vezes por profissionais do diário. "Fernanda Câncio não só foi contactada por jornalistas do CM de cada vez que escrevemos sobre ela, como até tentámos convidá-la, mais do que uma vez, para participar em programas da CMTV", afirma Tânia Laranjo. E acrescenta: "Estaremos naturalmente disponíveis para ouvir e receber Fernanda Câncio sempre que a mesma se mostre disponível para explicar o seu envolvimento no processo Marquês". 

A ERC recusou-se a comentar o pedido feito pelos jornalistas do Correio da Manhã, assinado por um dos representantes legais do diário, o advogado Martim Menezes. “Gostaríamos de lhe transmitir que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social não se pronuncia sobre processos judiciais em curso, uma vez que os mesmos integram a competência exclusiva dos órgãos a quem compete, nos termos constitucionais, a função jurisdicional”, respondeu por email Catarina Rodrigues, do departamento de comunicação do regulador.