A propósito da anunciada extinção dos “cursos vocacionais”
O modelo escolar em vigor está gasto. Mas a situação não se ultrapassa pela via das medidas avulsas.
Na Assembleia da República, de acordo com as notícias divulgadas, o Governo anunciou o fim dos cursos vocacionais, argumentando: “Não foram um programa maravilhoso de promoção de sucesso escolar, mas de segregação precoce”.
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Na Assembleia da República, de acordo com as notícias divulgadas, o Governo anunciou o fim dos cursos vocacionais, argumentando: “Não foram um programa maravilhoso de promoção de sucesso escolar, mas de segregação precoce”.
Será assim?
A Portaria n.º 292-A/2012, de 26 de Setembro, que criou os cursos vocacionais afirma, no seu preâmbulo, que estes visam“ (…) garantir uma igualdade efetiva de oportunidades, consagrando alternativas adequadas e flexíveis, que preparem os jovens para a vida, dotando-os de ferramentas que lhes permitam vir a enfrentar no futuro (…) e os desafios do mercado de trabalho”. Daqui decorre que a lei que os criou visa, explicitamente, garantir a igualdade efectiva de oportunidades.
Será assim?
A resposta a estas interrogações remete para questões centrais, como a da igualdade de oportunidades para o sucesso escolar e a forma como o sistema educativo oferece – ou não – condições para lhe dar resposta.
A propósito e a título de esclarecimento, entendemos clarificar, desde já, que consideramos desadequada a designação “curso vocacional”. Desde logo, porque vocacional nos remete para o que tem a ver com vocação e consequentemente para o objectivo geral educativo de ajudar a descobrir e a desenvolver a vocação de cada um e de todos. Neste sentido, todas as vias educativas são vocacionais. Por outro lado, o modelo em causa corresponde a um conjunto de medidas que visa permitir que um conjunto de alunos permaneça na escola e conclua com sucesso determinado nível de escolaridade, e não a um curso, no sentido de uma via estruturada de ensino. Finalmente, a aplicação indevida do termo vocacional às medidas em causa induz uma subalternização dos saberes – vocacional por alternativa a cientifico-humanístico – e consequentemente contamina ainda mais negativamente as vias de ensino profissional e tecnológico tidas também como “vocacionais”.
Feito este esclarecimento, retomemos a reflexão sobre a anunciada extinção.
Rejeita-se a ideia de uma escola que segregue e discrimine, mas não pode ignorar-se, nem subestimar-se, a diversidade da população escolar que frequenta a escola pública e a necessidade de providenciar a todas as crianças e jovens um ensino que tenha em conta esta realidade concreta e permita uma adequada diferenciação de programas e metodologias, de modo a ir ao encontro dessa diversidade, com a preocupação de a todos assegurar uma educação básica de qualidade.
De acordo com a lei, a que agora se pretende pôr fim, a oferta de “cursos vocacionais” destina-se a um grupo de jovens com manifesto insucesso escolar (pelo menos duas retenções seguidas ou três interpoladas no seu percurso educativo) que desejem optar por uma via alternativa de conclusão de um ciclo de escolaridade. Estão previstos pareceres do director de turma, do director de curso, do psicólogo/a escolar. Estabelece-se como idades mínimas para o ingresso nos ditos “cursos vocacionais”, 13 anos para os alunos do 2.º ciclo e 15 para o 3.º ciclo. Trata-se, assim, de uma alternativa que os visados e os seus encarregados de educação podem aceitar ou rejeitar.
O aluno que ingressa num “curso vocacional” beneficia de apoios sociais e pedagógicos específicos que procuram colmatar insuficiências de aprendizagem e desigualdades decorrentes do seu contexto familiar e socioeconómico, oferecendo-lhe oportunidades de recuperação e permitindo uma melhor adaptação dos currículos aos seus interesses.
De acordo com a lei, estão asseguradas as transições no caso do aluno, posteriormente, vir a optar pelo reingresso no ensino regular ou pelo prosseguimento de estudos para o ensino secundário bem como a prossecução de estudos de nível superior, se o aluno/a o pretender.
Os alunos que frequentam os “cursos vocacionais” prestam provas idênticas aos alunos do ensino regular no final dos ciclos (6.º e 9.º ano) e obtêm os correspondentes certificados.
Com ou sem “cursos vocacionais”, a escola pública continuará a deparar com um conjunto de crianças e jovens que evidenciam grandes carências de condições básicas para a aquisição de conhecimentos e competências que assegurem o seu sucesso escolar, entre as quais se incluem múltiplos factores exógenos à escola. À desadaptação psicossocial e cultural destes alunos aos programas e metas do ensino regular, há que acrescentar, em muitos casos, a ocorrência de contextos familiares problemáticos, a propensão para a anomia social, a marginalidade e a delinquência, quando não a sua prática reiterada.
Nestas condições, será defensável nada fazer para ir ao encontro destas pessoas-alunos e obrigá-los a frequentar aulas de matérias que não querem aprender e a seguir currículos que lhes são desajustados?
Os cursos vocacionais estão a funcionar há 4 anos e foram objecto de uma avaliação recente. Não devem ser ponderadas as respectivas conclusões (aspectos positivos e negativos) antes da sua extinção pura e simples, enquanto se equaciona um novo desenho do sistema educativo?
Há certamente muitas falhas a colmatar e novos caminhos a percorrer. Em particular, há que providenciar uma melhor monitorização das iniciativas do terreno (por ex. o reforço do aconselhamento psicológico, a implementação dos estágios de observação, a maior exigência na avaliação de conhecimentos, a qualificação dos professores para esta tarefa educativa específica e demais aspectos apontados na avaliação) enquanto se aguarda a definição de um quadro mais inclusivo e universal.
Não será, porém, uma enorme leviandade a decisão de extinção dos “cursos vocacionais” no começo do novo ano escolar, sem que estejam encontradas alternativas que respondam a este problema?
Como pensa o Governo incluir com sucesso estes alunos garantindo-lhes o seu efectivo direito fundamental à educação.
A nosso ver, o desafio que se coloca é, pois, o de aprender com a experiência, eliminando efeitos perversos, aproveitando com os erros para a sua correcção, retendo o positivo para o integrar e desenvolver, num quadro mais vasto de uma estratégia global de acção com vista a melhor educação para todos. Em particular há que reconhecer e destacar o papel desempenhado pelos professores, auscultar as suas opiniões e aproveitar das suas respectivas experiências.
Dito isto, devemos acrescentar que partilhamos a opinião de tantos e tantos especialistas em educação, de que o modelo escolar em vigor está gasto. A escola está desajustada aos desafios do mundo contemporâneo, não estimula nem motiva, deixa para trás um elevado número de jovens e adolescentes que, por uma multiplicidade de factores, não atingem sequer patamares mínimos de conhecimentos básicos. A situação não se ultrapassa, porém, pela via das medidas avulsas.
Preconizamos, por conseguinte, uma reflexão alargada e profunda sobre a educação no País que conduza à definição de uma estratégia que consensualize, entre os principais actores do sistema, designadamente os professores e os líderes políticos, os objectivos a prosseguir, um desenho curricular diversificado, mas integrador, para a escolaridade obrigatória e as traves mestras de todo o sistema. Foi essa uma das conclusões do projecto Pensar a educação em que nos empenhamos.
Manuela Silva, Belmiro Cabrito, Graça Leão Fernandes, Margarida Chagas Lopes, Maria do Céu Tostão, Maria Eduarda Ribeiro, Maria do Rosário Carneiro (Grupo Pensar a Educação)