Para se combater a tuberculose também são precisas medidas sociais
Organização Mundial da Saúde quer reduzir incidência da tuberculose em 90% até 2035. Mas um estudo liderado por cientista portuguesa mostra que é necessário juntar medidas sociais às medidas de saúde
Um artigo científico publicado há poucos anos mostrava que a tuberculose infecta o homem há cerca de 70.000 anos. Mesmo a medicina moderna ainda não conseguiu erradicar a doença. Em 2014, houve 9,6 milhões de pessoas que adoeceram devido ao bacilo da tuberculose Mycobaterium tuberculosis e 1,5 milhões de pessoas morreram, segundo os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que em 2015 definiu um objectivo ambicioso para a doença: reduzir a sua incidência (os novos casos) em 90% até 2035.
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Um artigo científico publicado há poucos anos mostrava que a tuberculose infecta o homem há cerca de 70.000 anos. Mesmo a medicina moderna ainda não conseguiu erradicar a doença. Em 2014, houve 9,6 milhões de pessoas que adoeceram devido ao bacilo da tuberculose Mycobaterium tuberculosis e 1,5 milhões de pessoas morreram, segundo os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que em 2015 definiu um objectivo ambicioso para a doença: reduzir a sua incidência (os novos casos) em 90% até 2035.
Mas um estudo teórico mostra agora que, para o objectivo ser atingido, são necessárias não só as medidas de saúde, mas também políticas sociais para evitar que os indivíduos mais susceptíveis voltem a adoecer depois de curados. O trabalho foi publicado na revista BMC Infectious Diseases, de acesso livre.
O que está em causa neste trabalho é a diferença de susceptibilidade entre indivíduos de uma determinada população. “Mesmo os mais eficientes mecanismos de detecção e cura terão impactos modestos num contexto em que as pessoas curadas retornam à sua situação de alto risco e adoecem recorrentemente”, explica ao PÚBLICO Gabriela Gomes, líder do estudo e especialista em modelação matemática de epidemias, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto e da Escola de Medicina Tropical de Liverpool, no Reino Unido.
Esta quinta-feira é o Dia Mundial da Tuberculose. A doença que marcou os românticos do século XIX continua a matar principalmente na África subsariana e no Sudeste asiático. Em 2014, a notificação de novos casos de tuberculose foi de 4,8 em cada 10.000 pessoas na Holanda, 10 na Espanha, 21 em Portugal, 36 no Brasil, 60 na China, 103 no Vietname, 123 na Etiópia, 198 na Serra Leoa e 567 na África do Sul. Nos países populosos, o número total de pessoas notificadas com a doença ascendeu às centenas de milhares nesse ano: 100.349 no Vietname, 306.166 na África do Sul e 819.283 na China.
Em Portugal, onde foram notificados 2264 casos de tuberculose em 2014, a Direcção Geral da Saúde (DGS) enumera vários factores de risco que torna alguém mais susceptível à tuberculose como as pessoas infectadas com VIH ou que têm diabetes, que consomem álcool ou drogas ilícitas, e reclusos – onde a “taxa de incidência é cerca de 19 vezes maior que a nacional”, de acordo com um relatório da DGS de 2015.
É este tipo de heterogeneidade do risco da tuberculose na mesma população – que em outros países é muito mais grave, estando o risco fortemente associado a factores socioeconómicos – que Gabriela Gomes trouxe para os modelos matemáticos de epidemiologia da doença. A pergunta principal era qual seria o efeito de uma vacina contra a tuberculose com eficácia parcial numa população homogénea relativamente à susceptibilidade à doença e noutra população que é heterogénea?
“Um aspecto crítico para a resiliência das doenças nas populações desiguais é que as pessoas de alto risco tendem a sê-lo para a vida toda. Existem estudos que apontam que ‘ter tido malária alguma vez na vida’ é um dos mais importantes factores de risco para vir a ter malária no futuro. O mesmo se verifica na tuberculose”, diz a investigadora. Em muitos países, é frequente haver pessoas que tiveram tuberculose, curaram-se e, passado algum tempo, voltaram a ficar doentes. “Se os serviços de saúde passarem a distribuir uma nova vacina ou outra forma de prevenção com cobertura universal, a redução de casos de doença será maior na população onde o risco é mais uniforme. A descrição matemática deste fenómeno é nova e ainda estamos agora a enumerar as suas implicações práticas.”
No artigo, os modelos matemáticas mostraram isso onde a incidência da doença é maior. Nas simulações, enquanto numa população homogénea, com uma incidência anual da tuberculose alta, a introdução de uma vacina capaz de reduzir para metade a susceptibilidade à doença diminuía a incidência da tuberculose para um décimo ao fim de 20 anos, numa população heterogénea não havia praticamente redução da incidência da tuberculose.
Numa população heterogénea, “uma intervenção de saúde faz com que o risco médio [de se ser infectado] aumente”, diz Gabriela Gomes. É fácil compreender porquê. Numa população heterogénea, quem já está doente já era, em geral, mais susceptível à doença. Por isso, um grande esforço de combate contra a doença fará com que estas pessoas passem do grupo de doentes para o grupo de saudáveis. Mas se elas voltarem para o contexto que as torna susceptíveis, então a probabilidade de adoecerem outra vez aumenta. Deste modo, o risco cresce em toda a população.
O problema é que os modelos matemáticos anteriores tratavam as populações como sendo homogéneas. E as expectativas sobre a evolução do combate às doenças saíam goradas. O novo objectivo de luta contra a tuberculose da OMS também corre esse risco. “As desigualdades [socioeconómicas] não foram inteiramente tomadas em conta quando os novos alvos foram definidos”, explica Gabriela Gomes, que há cerca de um ano começou um diálogo com a organização, que está a dar frutos. “Estamos agora a estudar medidas especificamente pensadas para reduzir as desigualdades.”
Parte dessa estratégia passa por pensar na tuberculose não como uma doença isolada mas integrada numa realidade complexa. “Uma forma prática de atingirmos as previsões optimistas seria reduzindo a susceptibilidade dos indivíduos de alto risco através de medidas de protecção social”, argumenta Gabriela Gomes. A investigadora prevê que esta nova forma de pensar as doenças tenha implicações na própria OMS: “O departamento das doenças crónicas vai interagir mais com o departamento da tuberculose, e estes dois departamentos vão interagir mais com o das acções sociais.”