Brasil: guerra civil fria
Num palco em que as instituições são frágeis, é muito ténue a esperança de uma saída negociada da crise.
Para os que se sentem solidários com o Brasil, que admiram o trajeto da sua consolidação democrática e as suas conquistas sociais, o momento só pode ser de enorme preocupação. O Brasil conhece atualmente um clima de guerra civil fria, com uma polarização extrema da sociedade. Não é provável que se venha a desencadear um conflito violento – se por violência entendermos violência armada, com ou sem envolvimento das forças armadas. Mas se por violência entendermos discurso de ódio, o insulto, a intimidação e humilhação do adversário e divisões fratricidas, então podemos falar de guerra civil. Aplica-se a fórmula de Raymond Aron para a guerra fria: paz impossível, guerra improvável.
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Para os que se sentem solidários com o Brasil, que admiram o trajeto da sua consolidação democrática e as suas conquistas sociais, o momento só pode ser de enorme preocupação. O Brasil conhece atualmente um clima de guerra civil fria, com uma polarização extrema da sociedade. Não é provável que se venha a desencadear um conflito violento – se por violência entendermos violência armada, com ou sem envolvimento das forças armadas. Mas se por violência entendermos discurso de ódio, o insulto, a intimidação e humilhação do adversário e divisões fratricidas, então podemos falar de guerra civil. Aplica-se a fórmula de Raymond Aron para a guerra fria: paz impossível, guerra improvável.
Existem dois dados essenciais: por um lado, uma grave crise política, agravada por uma crise económica, e, por outro, um processo judicial de casos de corrupção. A crise política traduz-se na tentativa de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, um processo que se iniciou no dia seguinte à sua reeleição, em 2014, quando ela foi obrigada adoptar medidas económicas que tinha combatido na campanha eleitoral. No processo judicial, estamos perante uma vasta rede de corrupção, num país onde ela é endémica e onde, pela primeira vez, não só políticos, mas também grandes empresários estão a ser julgados, o que podia ser um sinal da maturidade do Estado de direito.
O que torna a compreensão particularmente difícil é o facto de as duas questões se confundirem. Confunde-se porque os juízes tomam partido na guerra civil, como diversos exemplos o comprovam: o juiz Sérgio Moro, responsável pelo processo Lava Jato, publicou um comunicado a agradecer o apoio dos manifestantes que defendiam o impeachment da Presidente; o juiz que suspendeu a tomada de posse de Lula da Silva tinha na sua página de Facebook uma selfie com o slogan “Fora Dilma”; e os procuradores que pediram a prisão preventiva de Lula da Silva fizeram declarações sobre o desagrado que “Marx e Hegel” (que confundiram com Engels) teriam, se fossem vivos, com o líder do PT.
A polarização da sociedade está bem manifesta na dimensão das manifestações contra ou a favor do impeachment. As manifestações contra o governo mobilizaram centenas de milhares de pessoas, nomeadamente em São Paulo, que terá sido a maior de sempre. No entanto, as manifestações contra o processo de destituição da Presidente foram igualmente enormes: no Recife, terá sido a maior manifestação de que há memória. Os manifestantes anti-Lula e Dilma são maioritariamente da classe média alta-de acordo com o inquérito da Datafolha cerca de 77% dos manifestantes, em São Paulo tinham curso superior. A polarização brasileira é certamente política, mas também social e regional, nomeadamente a dicotomia entre São Paulo e o Nordeste do Brasil.
A agenda dos movimentos anti-Dilma é particularmente conservadora, o que permitiu o seu apoio a Eduardo Cunha, Presidente da Câmara dos Deputados, que vai ser julgado pelo Supremo por corrupção e é conhecido pelas suas declarações homofóbicas. Os que se opõem à destituição de Dilma, fazem-no sobretudo por medo de um regresso a um passado de arbitrariedade e de injustiça social, apesar de muitos deles criticarem a Presidente pela sua inabilidade política, bem como o PT, incluindo Lula, por não terem sido capazes de garantir uma agenda ética.
É neste contexto que deve ser vista a nomeação de Lula da Silva para integrar o governo. Não é, como tem sido afirmado, uma fuga à justiça, pois na qualidade de ministro poderá ser julgado pelo Supremo Tribunal, mas sim uma tentativa de ultrapassar o cerco de Sérgio Moro, juiz de primeira instância que, sem que nada o justificasse, obrigou Lula da Silva a prestar depoimento de forma coerciva e com o máximo de aparato mediático. Por outro lado, esta nomeação também é uma tentativa, que parece tardia ou mesmo contraproducente, de salvar o governo Dilma, hoje com uma base aliada muito fragilizada.
Em Portugal, a maioria da imprensa tem alinhado a sua análise dos factos pela narrativa desenvolvida pela TV Globo ou de jornais que se afirmam como órgãos políticos, como o Estado de S. Paulo ou a Folha de S. Paulo. Mas é fundamental não esquecer que um dos problemas da democracia brasileira é a sua imprensa, que não procura ser objectiva e apoiou no passado as conspirações anti-constitucionais contra as forças políticas que consideram de esquerda – ou seja, contrárias aos interesses da Casa Grande, como se diz no Brasil. Foi assim na conspiração que levou ao golpe militar de 1964, que derrubou João Goulart, um presidente democrático, e impôs uma ditadura militar, que teve o apoio e incentivo da Globo, da Folha e do Estado de São Paulo.
No Brasil, muitos consideram que em nome do superior interesse da luta contra a corrupção, os direitos dos suspeitos são uma questão secundária. Por isso tantos rejubilaram, quando Lula foi levado à força para ser ouvido pelo Ministério Público ou quando as escutas telefónicas de Lula foram entregues pelo juiz aos meios de comunicação. Como escreveu o filósofo da Universidade de São Paulo, Renato Janine Ribeiro, “Hoje muitos estão felizes porque acham que pegaram Lula e Dilma. Na verdade, pegaram você”. Não existe uma perda de direitos seletiva. As liberdades, como bem sabemos em Portugal, são para todos ou não são para ninguém.
No caos gerado pela sobreposição do processo judicial e do processo político, num palco em que as instituições são frágeis, é muito ténue a esperança de uma saída negociada da crise. Caso o impeachment triunfe, existe um claro risco de que sectores que nunca aceitaram a agenda social da PT – que radica, aliás, em algumas políticas dos mandatos de Fernando Henrique Cardoso – ponham em causa as conquistas mais significativas dos últimos vinte anos: as políticas ativas de combate à miséria e à desigualdade social. A destituição de Dilma Rousseff também não encerra em si qualquer garantia de um executivo sólido – basta ver que como a maioria dos políticos que estão na linha de sucessão a Dilma se encontram já envolvidos na operação Lava Jato. Resta, mesmo assim, a esperança no poder da sociedade civil brasileira – de longe a mais ativa e influente dos BRICS – que se apropriou da Internet, ontem para exigir melhores serviços públicos, hoje para exigir uma saída constitucional para a crise.
Investigador convidado do IRI da Universidade de São Paulo, 2014/2015