Carlos Martins, o nostálgico
Na continuidade pela busca do silêncio encetada em Absence, o saxofonista regressa ano e meio depois com um novo capítulo homónimo de uma música em quarteto que não tem pressa em chegar.
Há uma depuração tal na música que Carlos Martins tem desenvolvido com o seu quarteto actual que Suave Luz, tema de abertura do seu novo álbum, parece equilibrar-se impossivelmente sobre notas que mal sustêm a música. É de uma fragilidade extrema, como se subtraído de uma única nota todo o tema se desfizesse e acabasse reduzido a pó. Na continuação de Absence, disco que Martins, Carlos Barretto, Alexandre Frazão e Mário Delgado haviam lançado em finais de 2014 em despedida a Bernardo Sassetti, consagrado a uma relação espiritual com o silêncio (ou talvez seja melhor chamar-lhe respiração compassada), este registo homónimo volta a pegar nessas pistas diáfanas, de absoluta nudez, tão reduzido ao mínimo que menos do que isto possivelmente implicaria não tocar.
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Há uma depuração tal na música que Carlos Martins tem desenvolvido com o seu quarteto actual que Suave Luz, tema de abertura do seu novo álbum, parece equilibrar-se impossivelmente sobre notas que mal sustêm a música. É de uma fragilidade extrema, como se subtraído de uma única nota todo o tema se desfizesse e acabasse reduzido a pó. Na continuação de Absence, disco que Martins, Carlos Barretto, Alexandre Frazão e Mário Delgado haviam lançado em finais de 2014 em despedida a Bernardo Sassetti, consagrado a uma relação espiritual com o silêncio (ou talvez seja melhor chamar-lhe respiração compassada), este registo homónimo volta a pegar nessas pistas diáfanas, de absoluta nudez, tão reduzido ao mínimo que menos do que isto possivelmente implicaria não tocar.
“Quando se ouve, dói”, reconhece Carlos Martins ao Ípsilon acerca de Suave Luz. Depois questiona-se se não deveria ter prosseguido uma abordagem mais densa e saturada, algo que lhe permitisse “retratar uma certa urgência ocidental, que está sempre a querer mostrar mais, desfiar, desfiar, vestir, vestir”. Mas não, há algo de dolorosamente belo nesta tentativa conjunta de tocar o menos possível, em que tudo concorre para o oposto da urgência, e a gravação do tema seria um momento tão cristalino, frágil e irrepetível que nem houve lugar a segundo take, como se fosse gesto pouco avisado voltar a colocar as mãos em algo que miraculosamente não se quebrara à primeira.
Essa busca pelo silêncio que vem de Absence e se prolonga até aqui, de forma mais evidente em Suave Luz e A Árvore da Romã, alastra depois ao resto do disco enquanto paradigma. Começa, por isso, a ouvir-se Carlos Martins como um álbum gémeo de Absence – uma vontade inicial do saxofonista que, não tendo sido abandonada por completo, foi transformada pela experiência de palco dos últimos meses, trocando alguma da tranquila melancolia anterior por uma lenta respiração e pela “transposição ainda desse silêncio para uma música mais rápida ou mais alegre”. “No Absence foi muito difícil o esforço para conseguir sintetizar ao máximo a música”, lembra. “E senti que havia um lado brilhante, quer na nossa música quer na música do Bernardo Sassetti, que não estava lá porque era um disco muito sentido, muito intenso, muito íntimo, uma espécie de epílogo de toda a música que tínhamos feito em conjunto.”
Ao dobrar o segundo tema, Bairro da Esperança, o disco homónimo já prossegue uma rota de subida à tona e para fora da sua redoma que se vai acentuando até à sublimação de Matriz 4, tema infiltrado por um pulsar funk que soa a súbita rebentação no caudal pouco agitado de Carlos Martins. “Libertação de energia”, chama-lhe o saxofonista, realçando a dinâmica de grupo e a escuta e resposta colectivas que permitem a um tema como este avançar com fluidez e um balanço síncrono. “Há longos anos que não me sentia tão livre, a fazer o que quero e quando quero, percebendo em simultâneo que todos eles estão a passar pelo mesmo”, diz.
Até Rabat
Se em Absence se ouvia a ausência de Bernardo Sassetti, se em Absence aquela era a música de um quarteto a que fora roubada uma existência enquanto quinteto, este seu segundo álbum de grupo constrói-se agora não sobre uma falta, mas por cima de uma nova identidade, para a qual Carlos Martins reclama a ausência de um líder tradicional – a sua única função, defende, é apontar o caminho, delinear o ambiente de cada tema com as suas primeiras notas sopradas. Não é por acaso que o desígnio inicial do grupo passou por abrir-se ao silêncio, porque cada faixa, parece óbvio agora, é um espaço de concentração em que quatro músicos falam e ouvem em simultâneo, tentando não atropelar discursos. A consequência deste processo, admite Carlos Martins, é que a longa ligação artística e pessoal, feita de “momentos muito intensos – e não propriamente só agradáveis” –, não tem de mascarar-se por detrás de um jorro de notas infindáveis, trepando por cima umas das outras, em exercícios que facilmente podem resultar mais individuais do que colectivos e excessos que poderiam muito bem indiciar fugas emocionais. Agora ninguém foge. “Neste momento”, acrescenta, “estamos juntos a tocar tudo: tocamos a alegria, a tristeza, tudo se incorpora na música.”
Em vez da ausência, Carlos Martins trata da presença de Sassetti, ao incluir um inédito, Chant of Kali, que o saxofonista descobriu nuns “papéis perdidos”, parte de um pequeno espólio que guarda com composições do músico com quem partilhou 25 anos de vida embalada pela música. Chant of Kali, composta durante uma “fase pentatónica” de Sassetti, fortemente ancorada no património jazzístico norte-americano, desponta depois em direcção a outros territórios que o título não esconde. Carlos Martins tem essa subtileza de farejar sonoridades mais distantes – ou talvez ilusoriamente distantes. Se o álbum termina com Ali É África, tema contaminado pelo ritmo angolano kilapanga, o músico faz questão de frisar que África nos é mais próxima do que aquilo que achamos. “Há muitos estereótipos sobre África que se mantêm. As pessoas têm a tendência a ver os batuques e aquela coisa térrea do continente, mas eu gosto muito do lado poético de África. E muitas vezes não nos damos conta de que a capital mais próxima do sul de Portugal não é Madrid, é Rabat. Não voltemos as costas para o Atlântico ou para o Mediterrâneo para ver a Europa e a Merkel e não deixemos que tantas vidas se percam.”
Sob uma marca profunda da nostalgia (passada e futura), Carlos Martins acumula referências em pessoas e lugares que o músico explicita, como que chamando a sua biografia para traçar correspondências com cada tema. A Árvore da Romã e Bairro da Esperança funcionam, precisamente, como evocações do Alentejo em que o músico cresceu. Bairro da Esperança esteve embuchado durante algum tempo e Carlos Martins não percebia como podia resolvê-lo. “Percebi que andava um bocado deprimido com a história a seguir às eleições e com toda a direita e alguma esquerda a revelarem-se incrivelmente agressivas, via este país dividido e pensava que tudo ia resultar outra vez num país frustrado, com indivíduos incapazes.” Foi o desenlace político a soltar um tema que o deixa partir em visita a uma infância em que, tal como agora, se vê “à espera, muitas vezes estupidamente optimista, que as coisas mudem devagarinho”.
E é essa a essência desta música – a lenta transformação.