Resposta do país não está pensada para homem-vítima e mulher-agressora
Casas-abrigo são só para mulheres e crianças vítimas de violência doméstica e programa público de tratamento de agressores é só para homens. Mulheres ainda protagonizam 80% das denúncias.
O sistema nacional de combate à violência doméstica tem por base o pressuposto de que a vítima é sempre mulher e o agressor é sempre homem. E se um homem tem de fugir? E se uma mulher precisa de tratamento para agressores de violência doméstica? E se as vítimas são idosas?
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O sistema nacional de combate à violência doméstica tem por base o pressuposto de que a vítima é sempre mulher e o agressor é sempre homem. E se um homem tem de fugir? E se uma mulher precisa de tratamento para agressores de violência doméstica? E se as vítimas são idosas?
“Continuamos a ter muito mais mulheres vítimas, mas começam a aparecer mais denúncias apresentadas por homens”, diz, para início de conversa, Teresa Morais, do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) do Porto. “Se as mulheres têm vergonha, os homens muito mais. É muito mais complicado.”
Não é só a tristeza, a vergonha ou o medo. É também a ideia do que é uma mulher e do que é um homem. “Os homens, às vezes, são vítimas de violência psicológica e nem têm ideia”, refere Vieira Pinto, chefe do Núcleo de Investigação e de Apoio a Vítimas Específicas da GNR no Porto. Têm dificuldade em ver-se no papel de vítimas.
A estatística dos últimos anos vai mostrando a subida, ainda que tímida, de denúncias. No Relatório Anual de Segurança Interna vê-se 18,1% de vítimas do sexo masculino em 2012; 18,6% em 2013; 19,2% em 2014 – o referente ao ano passado só deverá ser entregue na Assembleia da República no final deste mês.
“O paradigma está a mudar”, corrobora Teresa Magalhães, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Até porque “alguns começam a usar a denúncia como estratégia. Há uma cena de violência, alguém chama a polícia. ‘Ai é. Então também apresento queixa! Ela também me bateu!’ Isto reduz o grau de culpa. Eles estão a fazer-se espertos, a perceber que podem seguir essa estratégia.”
A investigação internacional, feita com base em inquéritos de vitimação e perpetração, “revela que a maioria da violência entre parceiros, na intimidade, é mútua ou bidireccional”¸ observa Marlene Matos, investigadora da Universidade do Minho. Ainda há pouco, participou num estudo feito a partir de uma amostra de 1556 homens, maiores de 18 anos, envolvidos em relações heterossexuais, e encontrou “uma taxa de prevalência, quer de vitimação quer de perpetração, elevada: superior a 75% ao longo da vida.”
O estudo reforça a ideia de que as agressões praticadas por mulheres nas relações de intimidade são, na maior parte dos casos, moderadas e de natureza psicológica. Um dos seus maiores contributos, porém, “é avançar dados sobre o duplo envolvimento, que tem sido pouco estudado em Portugal”. “O duplo envolvimento foi reportado por 73,7% dos participantes. A violência unidirecional representou menos de 10%”, esclarece. Na sua opinião, isto “evidencia a necessidade de se ultrapassar leituras simplistas e porventura dicotómicas”.
Parâmero da violência de género
“A legislação foi feita de acordo com o parâmetro da violência de género”, comenta Teresa Morais, numa alusão à lei n.º 112/2009, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas. Os programas para agressores de violência doméstica, aplicados pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, destinam-se apenas a homens, com processo em tribunal, exemplifica a procuradora. “As mulheres não podem frequentar. Não está previsto.”
A rede nacional de casas-abrigo destina-se apenas a mulheres e crianças vítimas de violência doméstica. “Quando queremos transpor esta lei para violência contra idosos, que em muitos casos é violência doméstica, temos dificuldade porque a lei não está pensada para idosos”, sublinha Teresa Morais. Não são só os homens vítimas de violência doméstica que não têm resposta específica. As mulheres também podem sentir-se limitadas pela falta de flexibilidade das estruturas existentes. “Basta que tenha um filho que é maior de idade, que é deficiente ou que é estudante universitário e que está dependente dela, já não pode ir para uma casa-abrigo”, exemplifica o 1.º sargento Vieira Pinto.
“Há uma razão bastante clara para que exista uma maior preocupação com as mulheres”, enfatiza a secretária de Estado da Igualdade, Catarina Marcelino. “Como qualquer política pública, esta procura responder ao maior número de situações”, clarifica. E as mulheres ainda protagonizam 80% das denúncias.
Portugal dispõe de 39 casas-abrigo destinadas a mulheres e crianças vítimas de violência doméstica e, sublinha, “estão todas cheias”. “Uma casa-abrigo tem custos elevados. O Estado tem recursos limitados. Os recursos têm de ser alocados ao que é o problema maior e o problema maior é a violência contra as mulheres.”
Para Catarina Marcelino, não se pode dizer que o país não tem uma resposta de alojamento de emergência para homens vítimas de violência doméstica. Em caso de necessidade, podem ser alojados pela emergência social “numa residencial ou pensão ou num centro de acolhimento para sem-abrigo”. Há respostas específicas para menores de idade, no âmbito do sistema de promoção e protecção de crianças e jovens. Falta, reconhece a secretária de Estado da Igualdade, encontrar com o Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, uma resposta específica para idosos. “É uma preocupação do Governo.”
A violência doméstica na intimidade não ocorre apenas em famílias heterossexuais. A esse respeito, adianta, está a ser pensada, com a Ilga-Portugal, a criação do primeiro centro de apoio para um núcleo de apoio à violência doméstica em relações homossexuais. “É uma realidade muito escondida.”
Debate extremado
Em encontros temáticos e nas redes socias, o debate por vezes sobe de tom. “O discurso sobre a violência doméstica está inflamado com questões ideológicas extremadas, está polarizado”, entende a psicóloga forense Catarina Ribeiro, professora da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica. “De um lado, a ideia da agressão acontecer sempre do masculino para o feminino. Do outro, a ideia de que a maior parte das mulheres que se queixam dos companheiros estão a inventar para obter benefícios secundários.”
Ninguém nega a existência de falsas queixas – por despeito, para conseguir um bom acordo de divórcio ou de regulação das responsabilidades parentais. “Isso existe e há-de existir em todos os tipos de crime, mas não deve criar ruído, não nos pode desviar a atenção das verdadeiras situações”, achega Teresa Morais.
O preconceito, aponta Catarina Ribeiro, é “um obstáculo à intervenção mais sustentada e mais justa é o preconceito”. “Não conseguimos batalhar contra isto enquanto não percebermos que há mulheres que agridem, homens que são vítimas, casais que se agridem, que não é necessário as pessoas terem dependência económica para se manterem numa relação abusiva.”
“Não se pensa que a vítima de violência doméstica pode ser um homem, uma pessoa formada, com emprego”, enfatiza a psicóloga forense. “Ficar numa relação abusiva muitas vezes não tem nada a ver com questões logísticas, tem a ver com questões afectivas e relacionais, com dependências emocionais que não se explicam só através do dinheiro ou dos filhos, nem do poder físico.”