Emigrantes lesados do BES: duas vezes lesados
Mais do que inaceitável, esta situação configura uma vergonha nacional: a de um Portugal migrante que abandona os seus filhos mais frágeis e indefesos.
Os emigrantes lesados do BES são um universo de cerca de 8 000 portugueses, radicados na França, Suíça, Luxemburgo, Alemanha, Bélgica e Reino Unido. Cerca de 80% têm idade igual ou superior a 60 anos e são reformados. Os raros jovens são, na maioria dos casos, os herdeiros da poupança dos pais que entretanto faleceram. Os emigrantes lesados do BES são esmagadoramente emigrantes da década de sessenta com um perfil onde sobressai o trabalho ininterrupto e a constituição de poupança, destinada a acautelar pequenas e minúsculas reformas, o percalço de uma doença, as necessidades de entes queridos.
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Os emigrantes lesados do BES são um universo de cerca de 8 000 portugueses, radicados na França, Suíça, Luxemburgo, Alemanha, Bélgica e Reino Unido. Cerca de 80% têm idade igual ou superior a 60 anos e são reformados. Os raros jovens são, na maioria dos casos, os herdeiros da poupança dos pais que entretanto faleceram. Os emigrantes lesados do BES são esmagadoramente emigrantes da década de sessenta com um perfil onde sobressai o trabalho ininterrupto e a constituição de poupança, destinada a acautelar pequenas e minúsculas reformas, o percalço de uma doença, as necessidades de entes queridos.
Incentivados pelo BES em Portugal - e/ou as suas dependências no estrangeiro – a subscreverem produtos de poupança especialmente criados para eles – em 2001 e 2002 – e baptizados com nomes apelativos – Poupança Plus, Top Renda, Euro Aforro... – os emigrantes pensavam estar a constituir depósitos a prazo, e isto tanto mais quanto, para além da total inocuidade em matéria de risco que lhes era atestada, se podia ler no contrato que o banco se comprometia a comprar os títulos na maturidade, servindo aos subscritores a totalidade do capital mais os juros.
Qualquer cidadão com alguma literacia financeira e avesso ao risco poderia ter subscrito estes produtos, inclusive os mesmos (gestores de clientela) que os propunham aos emigrantes.
Mas isto era sem contar com a possibilidade de falência do banco e o facto de os produtos subscritos não serem depósitos a prazo mas acções preferenciais integrando veículos sediados no paraíso fiscal de New Jersey. Os emigrantes ficaram a sabê-lo quando, a partir do verão de 2014, foram confrontados com o “congelamento” das suas poupanças (cerca de 800 milhões de euros). Se fossem depósitos, poderiam beneficiar da garantia até 100 000 euros a eles associada em caso de colapso do banco, mas não eram. Eram acções de SPV [1] que ficaram registadas no BES e no Novo Banco como recursos de clientes, mas cuja responsabilidade o BdP ordena que fique no Banco mau, enquanto as provisões correspondentes transitaram para o Novo Banco.
Perante a luta levada a cabo pelos emigrantes lesados corporizada no movimento do mesmo nome e o eco que suscitou nos media, o Novo Banco veio a lume com uma proposta de solução que implicava a adesão da maioria dos emigrantes [2], nos prazos estipulados (prazos que curiosamente se iam dilatando à medida que iam “prescrevendo” os inicialmente previstos...) a fim de desbloquear o capital dos veículos sediados nos paraísos fiscais.
Mas qual era afinal essa solução, ou antes a proposta subjacente, cuja data limite de aceitação era objecto de contagem decrescente nas manchetas dos jornais e a cuja adesão os emigrantes eram convidados com insistência pelo Novo Banco, em situações configurando – segundo os testemunhos de muitos e dos seus porta-vozes – a pressão, o assédio e a ameaça velada ou não? Se não assinar vai perder tudo...
Ao subscrevê-la, para não perder tudo, os emigrantes aceitavam trocar os títulos actuais (acções preferenciais) por obrigações (sénior) do Novo Banco, por um valor correspondendo a 60% do capital [3]. A recuperação poderia atingir os 90% se à primeira solução (troca de títulos) se associasse a constituição de depósitos a prazo que o Novo Banco dotaria anualmente, com uma verba correspondente a 5% do capital, durante seis anos, somas apenas disponíveis no final daquele período. Quanto às obrigações sénior, cotadas na Bolsa do Luxemburgo, o Novo Banco não garante a liquidez sendo que a recuperação do valor total (nominal) aconselha a que se conservem os títulos até à maturidade, ou seja, 2049 ou 2051.
Assim sendo, um emigrante de 70 anos que tenha subscrito esta solução, deveria aguardar até aos 103 ou 105 anos para recuperar parte das somas que foi pondo de lado, ao longo de toda uma vida de labor e sacrifício, para poder fazer face à velhice!
Convenhamos que semelhante solução mais parece um artifício para acalmar os ânimos revoltados e assegurar a pax judicial ao Novo Banco: com efeito, ao aceitar a solução proposta, os emigrantes reconhecem que subscreveram acções preferências (e não depósitos a prazo) e renunciam a qualquer acção nos tribunais.
De fora dos acordos, ficaram os detentores de acções preferenciais do veículo EG Premium (cerca de 400) já que o Crédit Suisse, que montou os outros veículos (Poupança Plus, Top Renda e Euro Aforro) diz não ter sido responsável pela montagem deste. Mas de fora, ficou também o núcleo irredutível (umas largas centenas) de lesados que recusou aceitar os termos do acordo e continua a lutar para recuperar a poupança constituída, os juros a ela inerentes e reclama ao Novo Banco reparação pelos danos morais causados.
Eis porque é incompreensível que o recente apelo do primeiro-ministro para se encontrar uma solução para o problema dos lesados do BES tenha sido considerado como letra morta para os emigrantes. Com efeito, e no seguimento daquele apelo, e da reunião que juntou o Banco de Portugal, a CMVM e um representante do governo, a Associação dos Indignados do Papel Comercial era convidada para se sentar à mesa das negociações. Mas a Associação dos Emigrantes Lesados, daqueles que compraram títulos de dívida do BES, pensando estar a subscrever depósitos a prazo, foi completamente ignorada.
Mais do que inaceitável, esta situação configura uma vergonha nacional: a de um Portugal migrante que abandona os seus filhos mais frágeis e indefesos, os que estão longe e têm menos capacidade de se fazer ouvir, os que são mais susceptíveis de ceder a pressões, os que estando no fim da vida têm menos força para lutar. Há que reparar urgentemente este erro chamando os emigrantes para a mesa das negociações, instaurando inquéritos para averiguar as condições em que a maioria aceitou propostas configurando novas situações de privação de fundos, em suma tratando o problema dos emigrantes lesados do BES como aquilo que ele é: um problema nacional.
Economista, lecciona Economia portuguesa na Universidade de Paris IV-Sorbonne e é autarca na região de Paris (a autora esclarece que não é lesada do BES, e que não é nem nunca foi cliente desta instituição)
[1] Special Purpose Vehicule
[2] De facto, um número de emigrantes representando mais de 50% do capital de cada um dos veículos Poupança Plus, Top renda e Euro Aforro
[3] Se a troca de acções pelas obrigações, sediadas no mesmo veículo, não chegasse para perfazer 60% do capital, o Novo Banco reporia o diferencial numa conta a prazo