Márcio Faraco, Brasil com B grande

Hoje como ontem, Márcio Faraco, brasileiro radicado em Paris, continua atento ao mundo que o rodeia. O que canta é disso reflexo, como confirmou o seu espectáculo no CCB.

Foto
Márcio Faraco: um maior nervo no violão e na viola caipira DR

Já tardava, o regresso a Portugal de Márcio Faraco, cantor e compositor brasileiro que começou a sua carreira em Paris e daí se fez ao mundo, Brasil incluído. E já tardava porque o disco em que se baseia a sua actual digressão portuguesa, Cajueiro, é de 2014. Mas nesse ano a viagem foi impossível e ele foi andando por outros palcos até aqui chegar. Começou por Lisboa, no Pequeno Auditório do CCB, na noite de quarta-feira dia 16 de Março. E começou muito bem.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Já tardava, o regresso a Portugal de Márcio Faraco, cantor e compositor brasileiro que começou a sua carreira em Paris e daí se fez ao mundo, Brasil incluído. E já tardava porque o disco em que se baseia a sua actual digressão portuguesa, Cajueiro, é de 2014. Mas nesse ano a viagem foi impossível e ele foi andando por outros palcos até aqui chegar. Começou por Lisboa, no Pequeno Auditório do CCB, na noite de quarta-feira dia 16 de Março. E começou muito bem.

Foi um espectáculo tão ritmado e envolvente quanto espartano: treze temas apenas, incluindo os encores, mais um solo do jovem alagoano Douglas Marcolino, um virtuoso do acordeão. Mas Márcio Faraco continua, desde a sua estreia em palcos portugueses, em 2003, a provar que não há qualquer contradição entre o seu estilo vocal ameno e quase sussurrante e uma presença de palco a pedir meças ao rock. É verdade que a formação que desta vez o acompanhou carregou nas rítmicas nordestinas, do baião ao frevo e à embolada (e como o rock anda lá perto), mas ele próprio deu maior nervo às suas prestações no violão e na viola caipira (que, como ele lembrou, descende da braguesa lusitana). Por seu lado, os cariocas Júlio Gonçalves (percussionista que já o acompanha há muito) e Ricardo Feijão (no contrabaixo), compuseram solidamente o naipe.

O espectáculo começou precisamente pela faixa-título do novo disco, Cajueiro, e nela Márcio confirma que o seu ímpeto para compor sobre memórias não esmoreceu, pelo contrário. Aqui ele fala de um cenário bucólico de infância (no Recife) arrasado para erguer um condomínio. E, como não podia deixar de ser, um shopping center, dos muitos que vão povoando as cidades. Daí recuou a um dos temas mais recorrentes de Ciranda, o seu primeiro disco, Na casa de seu Humberto, de novo a infância nas memórias do quotidiano familiar na casa do seu avô. Ao embalo de Neguinha, do novo disco, seguiram-se Um sinal (o Brasil das desigualdades) e Paris, outra novidade, esta escrita num francês incrustado de palavras portuguesas. O sexto tema foi instrumental e coube por inteiro a Douglas Marcolino, muito aplaudido nas artes do acordeão.

Depois veio Vitrine carioca e um “truque” antigo: se em 2003, no São Luiz, Júlio Gonçalves pusera a cuíca a uivar, desta vez fê-la miar como um gato. “Tem um gato lá dentro”, gracejou Márcio. “Precisamos vários gatos, para os vários shows.” Resulta sempre. Pão com pão, por sua vez, veio lembrar os primeiros tempos amargos da imigração em Paris (onde, como ele nos disse há anos, chegou até a tocar em “aniversário de cachorro”) e Com tradição sublinhou o sofrer silencioso do sambista (“Sabe o samba bem dissimular um sentimento/ Notas lado a lado versus solidão”). Aqui, estávamos já perto do fim. Ouviríamos ainda À quoi ça sert l’amour (que Michel Emer compôs e foi um êxito na voz de Edith Piaf), com um assobio viciante transmitido à plateia; e, depois, o afro-samba Berimbau, de Vinicius de Moraes e Baden Powell (Márcio costuma tocar com o filho, o pianista Philippe Baden-Powell, que desta vez tinha uma digressão paralela), tema que faz quase sempre parte do alinhamento dos seus concertos.

O regresso dos músicos à sala, após o “fim” oficial (“uma hipocrisia, a gente volta sempre”, brinca Faraco), trouxe três outros temas: Fortuna, escrito por Márcio para António Zambujo, que o gravou no seu disco Quinto, seguido de São Sebastião (mais um do novo disco) e, por fim, Vida ou game, do disco de estreia, um olhar de ácida ironia sobre o mundo que nos cerca: “Passando de madrugada por/ uma fronteira escura eu me vi/ Eu me senti como um refugiado de Cuba/ Numa jangada tentando entrar/ nos Estados Unidos.” Agora os refugiados são outros, as jangadas e os destinos também, mas a situação, em si, não muda. E interpela. E inquieta.

Márcio Faraco, hoje como ontem, continua atento ao mundo que o rodeia. O que canta é disso reflexo. A voz, aconchegante e suave, engana. Porque também traz palavras duras lá dentro. E é por isso que é bom ouvi-lo. Os seus sete discos e respectivos espectáculos (ele é um homem de palco, apesar da aparente timidez) reflectem um Brasil, já um dia se disse, com B grande.

Depois de Lisboa, Márcio Faraco tinha outros palcos portugueses à espera: Coimbra (dia 17, Quintas do Conservatório), Espinho (dia 18 no Auditório de Espinho e dia 19 no Casino de Espinho, às 22h30) e Alcobaça (dia 20, no Cine Teatro João d’Oliva, Alcobaça, às 18h).