Licença por maternidade: as aparências iludem
O que não poderá acontecer é desequilibrar mais ainda os direitos individuais das pessoas na vida familiar, com prejuízo para as crianças e para o conjunto dos seus direitos.
Aprecia-se no Parlamento uma petição que quer aumentar para seis meses a “licença por maternidade”, uma vez que a Organização Mundial de Saúde entende que as crianças devem ser amamentadas em exclusivo até aos seis meses de idade.
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Aprecia-se no Parlamento uma petição que quer aumentar para seis meses a “licença por maternidade”, uma vez que a Organização Mundial de Saúde entende que as crianças devem ser amamentadas em exclusivo até aos seis meses de idade.
Parece uma boa ideia, cuja concretização dependeria apenas de viabilidade financeira. Mas apenas o é na aparência, porque, embora se afirme o contrário, iria ou impedir o gozo pelo pai da actual licença parental inicial partilhável — que, para ter duração significativa, depende de que, no total dos actuais 120 ou 150 dias, o pai goze, no mínimo, 30 em exclusivo —, ou elevar a duração da licença ao menos para sete meses. Isso acentuaria de modo particularmente gravoso a assimetria entre mães e pais em matéria de ausência do posto de trabalho para cuidado dos filhos, causa primeira da discriminação contra as mulheres na actividade profissional — acesso, progressão, área de intervenção, rendimentos, pensões — e na participação no processo de decisão, incluindo a política, reforçando o estereótipo de que “cuidar das crianças pequenas é função das mulheres”, implicando danos sérios para o exercício da liberdade de todas elas ao longo da vida, acentuando a sua dependência, diminuindo o seu poder face aos homens e à sociedade e reforçando as condições para que sobre elas se exerça violência de género, por pessoas e por instituições.
Acresce que o Comité das Nações Unidas que vela pela correcta aplicação da Convenção dos Direitos das Crianças sublinha que a convenção enfatiza que:
— ambos os pais têm “responsabilidades comuns na educação e desenvolvimento da criança”, com pais e mães reconhecidos como cuidadores iguais;
— a interpretação do interesse superior da criança tem de ser consistente com a convenção no seu conjunto... e a apreciação do interesse superior de uma criança por uma pessoa adulta não pode ter primazia sobre a obrigação de respeitar todos os direitos da criança reconhecidos pela convenção;
e recomenda aos Estados que:
— interpretem o “desenvolvimento (da criança)” no sentido mais vasto, como um conceito holístico, abrangendo o desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral, psicológico e social da criança, (dado) que a saúde das crianças pequenas e o seu bem estar psicossocial são, em muitos aspectos, interdependentes;
— respeitem a primazia dos pais: mães e pais... (que) têm a responsabilidade primacial de promover o desenvolvimento e o bem-estar da criança.
Relativamente à matéria objecto da petição, nas últimas observações dirigidas a Portugal (2014), o Comité recomenda que tome medidas visando a melhoria da prática da amamentação durante os seis primeiros meses, graças a medidas de sensibilização, incluindo campanhas de sensibilização, e disponibilizando informação e formação às entidades responsáveis, em particular a profissionais que exercem nas maternidades, e aos pais. Não preconiza para o efeito o alargamento da licença a gozar pelas mães.
No que se refere às licenças concedidas por ocasião do nascimento de uma criança, Portugal aplica hoje políticas reconhecidamente positivas para a partilha entre as mães e os pais de responsabilidades familiares, com benefícios para a criança, para a mãe, para o pai e para a sociedade.
O que hoje temos é obra política de todos os partidos representados na Assembleia da República — muitas vezes deliberando por unanimidade — e das suas maiorias governativas, com contributos significativos dos parceiros sociais, em que avultam as centrais sindicais, de várias organizações não-governamentais, da investigação e da persistência técnica e cívica de muitas pessoas em funções diversas e a trabalhar em rede.
Devemos a Zita Seabra — na revisão constitucional de 1982 — o início unânime da mudança de paradigma: a paternidade passa a ser considerada um valor social eminente, em paralelo com a maternidade. E, desde então até ao presente, a melhoria de condições para o exercício da paternidade foi consistente, apesar de lenta:
— em 1984, a Lei de Protecção da Maternidade e da Paternidade trouxe o pai para a visibilidade da actividade económica, reconheceu-lhe o direito a dispensa de trabalho com licença remunerada por morte ou incapacidade da mãe; e permitiu-lhe, como à mãe, a assistência a filhos/as, a trabalho em tempo parcial e horário flexível;
— a revisão desta lei em 1995 reconheceu ao pai o direito a faltar ao trabalho durante dois dias úteis por ocasião do nascimento de filho/a, a partilhar por decisão conjunta e a título de licença por paternidade, a licença não obrigatória da mãe, e reforçou os direitos de assistência a filhos;
— as revisões de 1997 e 1998 voltaram a reforçar para a mãe ou o pai os direitos de assistência a filhos, prevendo a última acções para a reinserção profissional;
— a revisão constitucional de 1997 incluiu a conciliação da actividade profissional com a vida familiar, sem discriminação em função do sexo, nos direitos fundamentais dos trabalhadores;
— em 1999, o reforço decisivo dos direitos individuais dos homens, quando são pais com natureza idêntica aos direitos das mães, garantiu-lhes licença por paternidade paga a 100% (cinco dias), licença parental de 15 dias não transferível e paga a 100% exclusivamente para eles, a título de acção positiva compensadora, e dispensa para aleitação no 1.º ano da criança;
— em 2001, teve lugar a primeira tentativa para tornar obrigatório o gozo da licença por paternidade, mas apenas foi concretizada em 2004, operando na ordem jurídica portuguesa a mudança simbólica determinante para a eliminação dos estereótipos sobre os “papéis sociais” das mulheres e dos homens;
— em 2009, a filosofia e a prática da partilha com duração apreciável das licenças parentais iniciais entre a mãe e pai permitiram que, segundo os últimos dados tratados e publicitados, em 2013, mais de um quarto dos homens que nesse ano foram pais gozassem, sozinhos, licença partilhada;
— em 2015, o aumento para 15 dias da licença inicial obrigatória exclusiva do pai veio reconhecer-lhe um direito de duração superior ao que a directiva da União Europeia reconhece à mãe.
Nada impede e tudo aconselha que se melhorem com reforços normativos, designadamente na linha do que sobre a matéria preconiza a OIT, as condições laborais de exercício do direito de amamentação — a que a lei portuguesa não impõe qualquer prazo e que abrange a extracção do leite materno para oferecer à criança — após o gozo da licença parental inicial pela mãe. Mas o que não poderá acontecer, com a Constituição que nos rege e as obrigações e compromissos internacionais que nos vinculam, é desequilibrar mais ainda os direitos individuais das pessoas na vida familiar, com prejuízo para as crianças e para o conjunto dos seus direitos, e agravando, de caminho, as várias dimensões da desigualdade estrutural entre as mulheres e os homens que ainda perturba o país e que emperra a concretização do Estado de direito democrático.
Jurista, ex-sec. de Estado para a Igualdade