Vistos gold: procuradora fala em problema endémico no aparelho do Estado
Juiz Carlos Alexandre decide a 8 de Abril se manda arguidos para julgamento de um caso no qual foram, segundo o Ministério Público, “mercadejados” os alicerces do Estado
A procuradora que produziu a acusação do processo dos vistos dourados, Susana Figueiredo, concluiu esta terça-feira estar perante um “problema endémico no aparelho de Estado”. E recorreu à história de Portugal para traçar a evolução do fenómeno, explicando como as classes dirigentes trocaram o comércio de especiarias e armas de fogo da época dos Descobrimentos pelo “mercadejar dos alicerces do aparelho de Estado ao mais alto nível”.
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A procuradora que produziu a acusação do processo dos vistos dourados, Susana Figueiredo, concluiu esta terça-feira estar perante um “problema endémico no aparelho de Estado”. E recorreu à história de Portugal para traçar a evolução do fenómeno, explicando como as classes dirigentes trocaram o comércio de especiarias e armas de fogo da época dos Descobrimentos pelo “mercadejar dos alicerces do aparelho de Estado ao mais alto nível”.
É essa a convicção do Ministério Público, a três semanas de o juiz de instrução criminal Carlos Alexandre decidir se leva ou não a julgamento os 17 arguidos do processo: que altos dirigentes da administração pública criaram uma teia de cumplicidades criminosas que lhes permitia lucrar ao máximo usando prerrogativas dos cargos que ocupavam. “Percebemos, com este processo, que não existe qualquer casta de puros, e que esta prática é um problema endémico no aparelho do Estado”, observou Susana Figueiredo, para quem este caso abriu uma “nesga” no universo da corrupção de topo.
Um dos arguidos é, de resto, o ex-ministro da Administração Interna Miguel Macedo, que se demitiu na sequência do escândalo. Fê-lo mesmo antes de ser indiciado pelos crimes de tráfico de influência e prevaricação. É suspeito de ter movido influências para o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio – ouvido no processo na qualidade de testemunha – perdoar a um amigo seu 1,8 milhões de euros de IVA, num negócio relacionado com o tratamento de feridos de guerra líbios em Portugal. E de lhe ter passado informação privilegiada sobre um concurso destinado à contratação e manutenção de helicópteros de combate a incêndios.
Do rol de delitos assacados pela acusação aos outros arguidos faz parte a promoção de acções de formação em Angola na área dos registos e notariado, a cobrança de comissões desproporcionadas em negócios imobiliários relacionados com a obtenção dos vistos dourados e a facilitação da emissão dos próprios vistos, obtida em tempo recorde graças à diligência do principal arguido do processo, António Figueiredo. Presidente do Instituto dos Registos e Notariado, este arguido aproveitava, alegadamente, os conhecimentos que lhe propiciava o cargo para se dedicar à intermediação da venda de imóveis de luxo.
Estava sobretudo virado para o mercado chinês. O regime especial de concessão de Autorização de Residência para Actividade de Investimento permite a cidadãos estrangeiros obterem autorização de permanência temporária em território nacional, com dispensa de visto para entrar no país, caso adquiram imóveis de pelo menos meio milhão de euros. Esta terça-feira, durante o debate instrutório do processo dos vistos, uma espécie de pré-julgamento do caso, a procuradora Susana Figueiredo disse ter-se deparado com um “caos regulatório” neste regime legal: “Há leis que são revogadas por despachos e orientações que se cruzam e atropelam”, criticou a magistrada.
Para os advogados de vários arguidos, incluindo o de António Figueiredo, o problema é, porém, outro: queixam-se de a equipa de Susana Figueiredo não ter confrontado os suspeitos com todos os delitos que lhes imputam, e que vão do branqueamento de capitais à corrupção. Por essa razão, defendem que o juiz Carlos Alexandre deve anular o despacho de acusação, em vez de mandar os arguidos para julgamento.
A decisão está marcada para o próximo dia 8 de Abril, mas antes disso António Figueiredo, que se encontra em casa com pulseira electrónica, deverá ficar em liberdade, uma vez que se lhe esgota no final desta semana o prazo máximo de 16 meses de prisão preventiva. O seu defensor, Rui Patrício compara a acusação deduzida pelo Ministério Público às mantas de retalhos feitas pela sua avó: “Usava tecidos de várias cores e dava-lhes a composição que queria”.