O eco de Bert Jansch

A música de Bert Jansch é um eco que nunca ouvimos antes, de um som que conhecemos desde sempre: é essa a marca da sua intemporalidade.

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A intemporalidade de Bert Jansch: Avoncet e Moonshine

Aquilo que nasce de The Cuckoo, centenário tradicional inglês abordado por uma infinitude de músicos, de Richard Thompson a Townes Van Zandt, de Bob Dylan a Joan Baez, de Kristin Hersh a Laura Veirs, valeria por si só a existência desta reedição. The Cuckoo é o mote para Avocet, que abre o álbum homónimo de Bert Jansch, o grande guitarrista britânico, criador livre que co-fundou os Pentangle da folk em diálogo com o jazz e com o rock, mestre desalinhado capaz de se transportar a si mesmo, incólume, para o coração da tradição que abraçou jovem na Edimburgo em que nasceu.

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Aquilo que nasce de The Cuckoo, centenário tradicional inglês abordado por uma infinitude de músicos, de Richard Thompson a Townes Van Zandt, de Bob Dylan a Joan Baez, de Kristin Hersh a Laura Veirs, valeria por si só a existência desta reedição. The Cuckoo é o mote para Avocet, que abre o álbum homónimo de Bert Jansch, o grande guitarrista britânico, criador livre que co-fundou os Pentangle da folk em diálogo com o jazz e com o rock, mestre desalinhado capaz de se transportar a si mesmo, incólume, para o coração da tradição que abraçou jovem na Edimburgo em que nasceu.

Avocet são dezoito minutos de deslumbramento: Bert Jansch, acompanhado de Martin Jenkins (bandoloncelo, violino, flauta) e do superlativo e contrabaixista Danny Thompson (Pentangle, Nick Drake, John Martyn), a dar força telúrica, dramatismo de contista e o poder evocativo da paisagem natural ao encontro dos três instrumentistas. Ao longo dos dezoito minutos, movemo-nos com graciosidade, seguindo a respiração natural entre os instrumentos e as melodias e ambientes que se transmutam.

Tudo vive e tudo se move, da capacidade dramática admirável da entrada do violino às trevas misteriosas em que este se deixa enredar mais tarde. Acabaremos na luz, sem perigo, unos com esse mundo sem tempo que esta música instrumental nos revela. Aqui, o que permanece enquanto tudo o resto se transforma em nosso redor.

Com cada um dos seus seis temas dedicados a uma ave (um avocet é um alfaiate), Avocet foi editado em 1978 na Dinamarca, um ano depois em Inglaterra. Foi editado numa altura em que, na música popular urbana, o punk fazia o seu caminho, a new-wave inventava novas cores para a pop, o pós-punk escavava em busca de material para novas esculturas sónicas. A limpidez desta folk animista, refugiada do bulício citadino, surgia a contracorrente. Ou assim parecia. Estava precisamente onde devia estar. Assim em 1978, assim vinte anos depois, assim neste 2016 em que conhece reedição primorosa — edição em livro, com páginas dedicadas a ilustração e descrição de cada um dos pássaros que baptizam os temas.

Gravado em Copenhaga por insistência do agente dinamarquês de Jansch, não será dos álbuns mais célebres do guitarrista falecido em 2011 e admirado por contemporâneos como Jimmy Page, Neil Young ou Donovan e por nomes mais recentes como Devendra Banhart, Alasdair Roberts  ou Fleet Foxes. Isso se deverá ao ano e ao contexto da sua edição, porque nada do que nele ouvimos, com destaque para a monumental peça de abertura que ocupa todo o Lado A da edição em vinil, justifica a sua posição modesta na obra de Bert Jansch. As cinco músicas que completam o álbum, quer na aproximação à paisagem musical americana em Kittiwake, quer no acolher de um solo de contrabaixo em Bittern, parecem estar aqui para que, depois de Avocet, possamos, lenta e serenamente, sair do seu encantamento e prosseguir com as nossas vidinhas (sensação que não as desvaloriza; serve apenas para acentuar o poder daquela primeira peça).

Cinco anos antes, em 1973, Bert Jansch lançara Moonshine, o seu primeiro álbum a solo após o primeiro fim dos Pentangle, também agora reeditado. O espírito que o anima é o mesmo — a folk britânica, o jazz, o blues americano, a vontade de chegar a uma qualquer essência da vida -, mas a forma como o canaliza surge diferente. Na sua voz cheia e maleável, tanto como a sua guitarra, que escapava à rigidez das regras em favor de maior capacidade expressiva, Jansch canta o eterno ciclo da natureza, canta o amor e canta a morte . Consegue ser indiscutivelmente britânico quando as flautas dobram a sua voz em Yarrow, deixa-se contaminar pelo blues em Night time blues ou na Brought with the rain assombrada por harmónica e resgata a música barroca, entre clarinete e violoncelo, em Moonshine. Ouvimo-lo em dueto com Mary Hopkins, ela perseguindo as suas palavras, ele acelerando no folk-rock em que transforma o clássico The first time I ever saw your face e ouvimo-lo despedir-se com essa “Oh my father”, por onde plana a guitarra eléctrica de Gary Boyle, subindo até à galáxia Jerry Garcia, dos Grateful Dead, com a exuberância de Robert Fripp.

Produzido por Tony Visconti (T. Rex, David Bowie), Moonshine foi gravado com músicos como o baterista Dave Mattacks, conhecido pelo seu trabalho com os Fairport Convention, Dannie Richmond, baterista de Charlie Mingus, ou o supracitado Danny Thompson. É, acima de tudo, um trabalho em que a personalidade musical de Bert Jansch sobressai, límpida na intenção, profunda e irrequieta na interpretação, tão profundamente individualista quanto consciente da sua existência enquanto elo de uma longuíssima cadeia. É nessa condição que se sustenta a marcada intemporalidade da sua música. Avoncet e Moonshine são duas formas de a exprimir. Eco que nunca ouvimos antes, de um som que conhecemos desde sempre.