Filhos bastardos da tradição portuguesa

Está Dito é o álbum de estreia em que os Marafona se apresentam como fazedores de uma música popular portuguesa fecundada por muitos pais. E dá para imaginá-los como uns Gaiteiros de Lisboa a quem foram apreendidas as gaitas.

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Os Marafona: Daniel Sousa, Gonçalo Almeida, Cláudio Cruz, Artur Serra e Ian Carlo Mendoza Bruno Simão

Para compor um dos temas do álbum de estreia dos Marafona, Artur Serra colocou-se diante de um ecrã a observar um vira, roubando o som à gravação e valendo-se apenas dos movimentos da dança para pedir que a imaginação lhe depositasse uma música nos braços. Um vira bastardo, claro, um vira tresmalhado, arrevesado, que explica este modus operandi do quinteto: os viras, as mazurcas, os corridinhos, as chulas, os fados, as cantigas de embalar ou as valsas, tudo é virado do avesso, chamando a tradição da música popular portuguesa mas soprando-lhe um novo fôlego. Não espanta, por isso, que o final desse mesmo Vira do Avesso tresande aos magníficos Gaiteiros de Lisboa e o grupo volte a martelar nessa referência na assumida homenagem de Traz Paz.

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Para compor um dos temas do álbum de estreia dos Marafona, Artur Serra colocou-se diante de um ecrã a observar um vira, roubando o som à gravação e valendo-se apenas dos movimentos da dança para pedir que a imaginação lhe depositasse uma música nos braços. Um vira bastardo, claro, um vira tresmalhado, arrevesado, que explica este modus operandi do quinteto: os viras, as mazurcas, os corridinhos, as chulas, os fados, as cantigas de embalar ou as valsas, tudo é virado do avesso, chamando a tradição da música popular portuguesa mas soprando-lhe um novo fôlego. Não espanta, por isso, que o final desse mesmo Vira do Avesso tresande aos magníficos Gaiteiros de Lisboa e o grupo volte a martelar nessa referência na assumida homenagem de Traz Paz.

Com frequências, aliás, os Marafona soam aos Gaiteiros de Lisboa se lhes apreendêssemos as gaitas. Em parte porque houve um gaiteiro na formação original, cujas melodias foram, nalguns casos, apanhadas por Daniel Sousa e agora se distinguem como fantasmas no fraseado da sua guitarra. Mas muito mais do que isso, ouvem-se nas harmonias vocais, no aporrear da percussão e nesse escasso pudor em meter a colher na música popular portuguesa e misturá-la com outros sons e outras histórias. Os Marafona são uma ideia antiga de Artur Serra, começada a fermentar após o final dos Bicho de 7 Cabeças (onde se encontrou com Pedro da Silva Martins e Luís José Martins, dos Deolinda), quando finalizou um périplo auditivo de distanciamento do pop/rock. Dos Morphine e dos Velvet Underground partiu para a música irlandesa, galega e outras músicas do mundo, e foi por lá foi estagiando até perceber que acabava por se fartar de cada um desses mundos, sentindo sempre que algo lhe escapava. “Faltava-me a música portuguesa”, reconhece agora.

E se era música portuguesa que lhe faltava, Artur enfiou os ouvidos em recolhas de Giacometti ou Sardinha – durante dois anos, garante, não ouviu outra coisa. Mas apesar da sua formação em arqueologia, não ia à procura de artefactos, mas sim de um contexto original do qual se pudesse desembaraçar em seguida. “Queria fazer música com alguns trejeitos daquilo que ouvia”, explica, “mas como crescemos a ouvir pop, rock, hip-hop, grunge e essas coisas, era difícil ter essa sonoridade cá dentro. Se bem que ela andava cá – por isso é que tinha saudade dela.” Claro que os Marafona não ignoram que antes deles, e antes ainda dos Gaiteiros de Lisboa, houve ainda Banda do Casaco, Brigada Victor Jara, Trovante, havia já José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira ou José Afonso a percorrer essa estrada poeirenta e pouco atalhada em que o quinteto agora se aventura.

Tendo-se cruzado com o percussionista mexicano Ian Carlo Mendoza em arruadas, de bombo ao peito, Artur foi arrebanhando todos os elementos (juntam-se Daniel, Cláudio Cruz e Gonçalo Almeida), primeiro pensando num encaixe tímbrico entre cavaquinho, gaita-de-foles e percussões – “instrumentos que foram tapados pela guitarra e pelo acordeão”, explica – até estacar, há dois anos, na presente formação. Foram estes cinco que começaram a pegar na música tradicional portuguesa ou em cancioneiros populares e a integrá-los no seu quotidiano. Primeiro, no EP Tia Miséria, agora no álbum Está Dito, onde um texto adaptado do romanceiro transmontado do século XVIII se pode transformar numa estimulante canção de evocação medieval e travo arábico (“Justiça do Diabo”). Ou uma marcha arraçada de fado se desenvolve de mão na anca, cigarro ao canto da boca e atitude saiam-me-da-frente com a colaboração de Mitó (A Naifa) e Ana Bacalhau (Deolinda) em “A Improvável Toponímia da Marcha Popular”.

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Marafona é, de certa forma, um grupo de cinco pessoas a reclamar a sua parte na herança, a querer dar uma nova vida a um legado. FOTO: Bruno Simão

A Naifa e Deolinda são precisamente exemplos de projectos que não se vergam ao respeitinho pela tradição, insolência que também ferve no peito dos Marafona. Daniel Sousa compara essa relação com “a casa daquela tia velha cheia de coisas e em que não se pode mexer em nada”. “A velha senhora morreu”, diz, “e eu agora ando por lá, sempre quis mexer naquilo tudo, tenho um mar de coisas para descobrir e fazer minhas. As novas gerações têm de acrescentar o seu cunho, de trazer aquilo que sentem e a forma como olham para a tradição. Isto é nossa herança.” Marafona é, de certa forma, um grupo de cinco pessoas a reclamar a sua parte na herança, a querer dar uma nova vida a um legado e a recusar tanto o lado bafiento da tradição quanto a condição de “colonizados culturais”.

Os pequenos milagres
Se há coisa que os Marafona não fazem é esconder as suas referências nesta “provocação que é agarrar em algo e fazer disso um gesto novo, mais actual”. Nem podia ser de outra maneira. Cada tema de Está Dito soa a uma homenagem clara a todo um passado de música portuguesa, valendo-se de um extenso mapa de referências em que textos populares e citações mais ou menos explícitas apenas engradecem esta ideia de muitos pais a fecundar uma única mãe – a música popular portuguesa. Os Marafona, naturalmente, são o filho daí resultante. Traz Paz soa, sem esforço, aos Gaiteiros de “Velha Bufelha” em diálogo com os Gaiteiros de Lenga-Lenga; mas pelo meio de Já Sei irrompe a figura tutelar de José Mário Branco, “Maquineta” é assaltada pela nostalgia do José Afonso das baladas coimbrãs, Amar Dentro do Peito de Uma Donzela é um fado mascarado de canção mas em que se avista o modo particular de atirar palavras reconhecível a Carlos do Carmo. Daí que gostem da designação “MP3 a válvulas” para aquilo que fazem, pensando em quanto música cabe numa pen e no rádio a válvulas de uma velhinha perdida no tempo.

Artur Serra ilustra esta porosidade a tudo o que é produção com selo português com a história (vertida para Guerra do Interregno, de Tia Miséria) de um miúdo que, brincando com o seu tambor, é instado a tocar desalmadamente o instrumento, levando a que uma batalha entre Portugal e Castela termine com a batida em retirada dos castelhanos, convencidos de que o som produzido pelo rapaz só poderia provir de um numeroso exército. “A história de Portugal é feita destes pequenos milagres e parece quase que somos portugueses não porque quiséssemos ser portugueses, mas porque temos mau feitio e não queremos ser espanhóis, nem franceses, nem outra coisa qualquer”, argumenta Artur.

O som dos Marafona tem essa mesma carga de resistência, de recusa em ceder a culturas alheias e de saber mais instintivamente aquilo que não ser do que aquilo que verdadeiramente almeja. “O que se quer muda todos os dias”, dizem. “O que não se quer é mais definitivo.” E o que não querem é que se faça crer que a tradição é intocável e que, caindo ao chão, se parte e perde para todo o sempre.